No meio do populoso arrabalde de Santo Cristo, abre-se uma espaçosa superfície de terreno coberta de arvoredo e de grama, arrebicada de quantos prodígios possui a arte e quantos esplendores a natureza pode ostentar.

Há por aí florestas escuras por onde circulam virações perfumadas, ricas de oxigênio e de poesia; avenidas de bambus por onde fogem amores e murmúrios suaves de folhagens; cascatas e grutas que têm por lambrequins os volumosos cones estalactíticos e por telhado zimbórios de pedra e incrustações de cimento; a água corre com a serenidade dos sonhos gostosos e vai insensivelmente passando por sob o arqueado das pontes.

O sol brinca como um menino nesses lugares. Recreia-se brejeiramente no alto do arvoredo, requeimando os brotos novos, e escorrega para o chão a dar cintilações coloridas aos bichinhos e a aquecer os camaleões vivazes e ariscos.

Se atira-se aos lagos, cobre-os de palhetas de luz; se passa pela pulverização da chuva das cascatas, pinta arco-íris no ar e leva o dia na faina.

À noite... se não há lua, uma treva compacta, cheia de aromas acres, penetra os balcedos e derrama-se pelos declives relvosos que se vão espalmando para a beira dos lagos; formam-se pirâmides sombrias no lugar das casuarinas e dos eucaliptos; avolumam-se negros maciços nos bosquetes de mangueiras e nos cerrados de bambus. Todas essas negruras, entretanto, têm vida. Quem alongar a vista pelas várzeas, distinguirá sombras deslizando em segredo através da noite. Quem escutar a voz das lezírias ao pé dos agrupamentos de árvores há de perceber palavras que voam deliciosamente por entre as begônias.

Dos antros trevosos das grutas escavadas na pedra não partem rugidos dos monstros apocalípticos das cavernas. De lá do fundo sobem ruídos semelhantes aos da bolha de ar rebentando a flor das águas; parece estar-se ouvindo o rumorejar de beijos. São umas trevas encantadoras aquelas das noites sem lua, nessas paragens.

Se vem o luar... tudo se multiplica. Em vez de negrores, flutua pelo espaço toda a transpiração da terra banhada de fosforescências argentinas. A meia-luz deleitosa invade os recantos do jardim; passa devagarinho como uma nuvem de sílfides por meio dos fustes das palmeiras, voa por cima dos gramados, levando no vôo todas as borboletas notívagas; estende as roupagens alvacentas por entre os renques de coqueiros; balança indolências nos liames de cipó recurvado em festões; entra nos riachos e mostra aos céus a sua nudez casta e branca.

A floresta goza uns estremecimentos sensuais, que passam-se em silêncio como o adejar das corujas. Os poucos lampiões que se acendem por aí parecem olhos fitando com inveja os poemas vivos que correm de todos os lados...

Também como nas noites escuras, estas noites claras do parque não são vazias nem ermas. As ruas areentas, desenroladas como alvos tapetes através do campo, não estão desertas. Há casais passeando, com os olhos pregados no céu e os braços em amplexo; as sedas roçam as casimiras, produzindo choques magnéticos da eletricidade de Cupido.

Nos bancos, escondidos, à sombra recôndita de qualquer copa frondosa, repetem-se episódios do paraíso.

A vida real desses lugares é verdadeiramente à noite. Os dias se passam, radiosos, iriados, entregues ao sol e aos insetos; as noites correm no meio da escuridão ou dos luares, entregues a Vênus e ao silêncio.

No âmago desse jardim vasto e delicioso levanta-se sobre um oiteiro, como um templo antigo, o vulto monumental de um palácio. A luz das auroras despedaça-se de encontro aos vidros de suas mil janelas, envolvendo-o pela manhã numa atmosfera rutilante; os seus torreões empinam-se vitoriosos no cimo de largas muralhas alastradas de heras, os seus pára-raios vão espetar as nuvens como lanças enristadas para o infinito; o seu todo é grande, imponente, majestático.

Muitas vezes, à noite, o palácio toma uma fisionomia fantástica; ostenta as paredes de trevas e janelas de fogo. Supõe-se que seja um incêndio. É um baile. Ao clarão de mil bicos de lustres rodam nas valsas reputações e galanteios, marcham nas quadrilhas temeridades e finanças...

Aí não mora Sardanapalo.

Esse parque e esse palácio pertencem ao duque de Bragantina. O duque cede esses domínios aos prazeres da numerosa roda de fidalguia que o cerca a todo instante.

É por isso que, quando o duque de Bragantina está ausente, esmorece completamente a febre silenciosa e fecunda das noites da quinta. Faltam os fidalgos.

Aos fundos do palácio, para a banda do norte, como sabe o leitor, ficam as habitações da vassalagem imediata do duque. Aí é que mora, pois, o velho Januário e sua gente.

Deixando a casa de Januário, Manuel de Pavia encaminhou-se para as proximidades do palácio do duque. Não caminhava à toa. Seguia devagar, mas com um destino certo.

Acompanhou a espécie de estrada margeada de espaçados lampiões, que vai dar a um dos portões da quinta, junto do qual está o famoso retiro reservado à jovem afilhada de Januário, mas, antes de lá chegar, dobrou para a direita e em linha reta para o palácio.

Na linha dos muros que guarnecem a colina sobre a qual foi construído o edifício, o excursionário noturno parou.

Examinou o lugar e murmurou:

— Não há ninguém... Mas é muito cedo... Ele não pode ter chegado... Também não há pressa...

Pôs-se então a passear ao longo dos muros, muito preocupado com ocultar-se na sombra que a elevação deles espalhava por volta.

Por fim sentiu passos. As estrelas davam luz bastante para se ver o necessário. Pavia distinguiu o vulto de um homem que se avizinhava.

Um vago sentimento de temor estremeceu-lhe o sistema nervoso. Aquele vulto não podia ser ele.

Se não fosse ele, se fosse um inimigo, se Inácio o tivesse traído?... Aquele vulto podia ser o espantalho de sua fortuna. A riqueza fabulosa, que ali de cima mesmo, daquelas janelas, parecia sorrir-lhe nos reflexos luminosos das vidraças que dominavam o muro, ia talvez fugir-lhe por causa daquele homem...

Manuel de Pavia, que não era suscetível de medrosas palpitações, ao menos dentro dos limites da quinta, sentia que o coração abria-se-lhe em violentos diástoles...

— Aqui estou - disse o vulto a pouca distância.

— Oh, Inácio! - disse Pavia.