No movimento que abalou a aldeola situada nos terrenos da quinta quando espalhou-se a notícia do roubo do palácio não tomaram parte os moradores daquela casinha do fim do beco, onde já esteve conosco o leitor.
Apenas a velha mulher de Januário esticara o comprido pescoço rugoso por uma janela, para ver qual a causa de tanto falatório, e a jovem Conceição perguntara a uma companheira o que tinha sucedido.
Logo que tiveram uma vaga informação do sucesso contentaram-se com isso. Havia em casa motivo de maior preocupação para eles do que em todos os tumultos de fora.
Era o caso que naquela manhã aparecera gravemente enferma a nora de Januário.
A pobre Emília padecia uma enfermidade que desde muitos anos aniquilava-a lentamente.
Além da moléstia, uma dor violentíssima atormentava-lhe o íntimo d'alma. A razão deste sofrimento era um mistério.
Tinham-na visto, um dia, os mais antigos moradores da aldeia, aparecer casada com um criado do duque de Bragantina.
Já era aquela mulher triste e doentia.
Os anos que rodaram dessa época até os dias da nossa narrativa não lhe furtaram mais que os últimos vestígios de beleza e mocidade que ela trouxera.
Emília passava a existência mergulhada num eterno desgosto.
Tinha, às vezes, uns sorrisos que entristeciam a quem os visse.
Outras vezes, sem motivo aparente, cresciam-lhe as lágrimas nos olhos, e a pobre Emília chorava como uma louca.
Acontecia isto, em geral, quando ela fitava a Conceição, a rir infantilmente por qualquer coisa, ou a trabalhar muito animada na tarefa de crochet que lhe marcava a madrinha.
Assim que Conceição percebia que estavam olhando para ela, Emília voltava o rosto e disfarçava.
Na casa de Januário, pouca atenção davam ordinariamente a Emília. O desespero com que ela se atirava ao trabalho fazia com que a fossem considerando a criada da casa; e, como criada, tratavam-na. Emília não reparava. Demais, que importava isso à viúva de um criado?...
Como tratavam bem ao seu filhinho e Conceição, de quem gostava muito, Emília aturava todos os desprezos com uma indiferença dolorosa, sem reações.
Foi, por isso, extraordinário o movimento de furor com que a vimos no princípio desta história acometer o velho Januário.
Com o ouvido atilado que ela tinha e a prevenção em que andava, não lhe passaram despercebidos uns rumores suspeitos na sala, seguidos do murmúrio de uma conversação em voz baixa.
Emília estava já na cama. Levantou-se e foi, nas pontinhas dos pés, escutar o que se dizia na sala. Encostou-se a um dos portais da última porta do corredor, e escutou...
Falavam dois homens.
Um, o velho Januário, o outro...
— O miserável... — murmurou ela com os dentes cerrados.
Foi ouvindo a conversa.
Trançava-se uma infâmia.
Emília sentiu o peito inchar-se-lhe de indignação.
— Vão infamar uma inocente! — murmurou tremendo.
Cada palavra daquela conversa entrava-lhe no coração como um punhal em brasa.
Era horrível o que aqueles miseráveis combinavam. Um laço de perdição para um anjo. Vendia-se a dinheiro a pureza de uma criança. Um comprava como se fosse uma ave no mercado, e outro vendia, como se a mercadoria lhe pertencesse. Não havia ali só infâmia; havia infâmia e ladroeira. Tinha razão. O açougueiro não consulta a vitela sobre as condições de venda. Torpeza. Não! Ela não podia deixar de intervir...
A conversa acabou. Selaram-se as convenções e uma das partes contratantes retirou-se, muito à vontade e satisfeita com a transação.
Emília não se conteve um instante. Ardendo em febre e em ódio, atirou-se como uma harpia e agarrou Januário com as unhas...
Passou-se a cena violenta do nosso terceiro capítulo e Emília retirou-se para o quartinho, onde dormia, jurando que não se havia de fazer a vontade dos dois perversos.
Caiu na cama prostrada e soluçando. Um cansaço enorme acabrunhava-a, consequência do esforço que provocara a revolução da sua energia, por tanto tempo em letargo.
Sentiu ao mesmo tempo que o fresco da noite fizera-lhe mal.
Um calor intenso de febre escaldava-lhe o corpo. Emília estirou-se os membros por entre os grosseiros lençóis da sua marquesa e ficou a refletir na conversa que ouvira. Repassou na memória cada uma daquelas frases, e a recordação causava-lhe estremecimentos e provocava mais lágrimas.
No meio da escuridão do cubículo, ouvia-se-lhe o respirar ofegante e os soluços convulsivos...
Quando clareou o dia, ainda não conseguira dormir um só instante.
Amanheceu abatida como uma moribunda.
Fez falta ao serviço da manhã. A mulher de Januário foi ver o que ela tinha.
— Estou doente — respondeu Emília com voz cava e fraca.
A pobre mulher tinha as feições cavernosas como um rosto de caveira. Estava lívida e profundamente acabrunhada. Nos olhos, entretanto, havia uns reflexos vítreos, contrastando com o amortecimento do corpo.
A mulher de Januário não pôde conter um movimento de contrariedade.
Doente Emília, ficava-lhe o peso do serviço e ela era tão velha... Ah! Tinha Conceição... Mas Conceição estava atualmente destinada a outro serviço absolutamente indispensável... o diabo!... Era necessário tirar Emília da cama quanto antes!
Por isso é que a moléstia da nora preocupava mais a mulher de Januário que o roubo do palácio.
Conceição tinha uma simpatia especial por aquela mulher a quem o vovô e a Dindinha chamavam de nora e tratavam como escrava. Achava docemente atrativa a tristeza eterna de Emília. As almas ingênuas agradam-se facilmente das almas tristes. No meio de sua alegria gárrula, involuntária, constante, tinha sempre um sorriso especial para suavizar a tristeza dolorida de Emília.
Demais, além da simpatia, tinha motivos de gratidão.
Lembrava-se que, desde muito pequena, sempre recebera afagos daquela mulher. Notava que só era acariciada quando não havia testemunhas e que, quanto mais ela crescia, tanto mais raros eram os testemunhos de amizade que lhe dava Emília. Contudo, sentia que era a mulher triste a única que amava-a, verdadeiramente.
Quando soube que Emília havia amanhecido incomodada, correu a visitá-la.
A prostração da doente comoveu-a em extremo.
Conceição não pôde conter as lágrimas e sentou-se junto do leito a contemplar entristecida o semblante de Emília. A atitude da mocinha desgostou cruelmente a enferma.
Conceição viu-a voltar-se na cama e apertar o rosto nas dobras de um lençol. Pareceu-lhe que Emília chorava desesperadamente.
Naquela ocasião, Emília e Conceição achavam-se sós no quarto.
A mulher de Januário, atribuindo à fraqueza o incômodo de Emília, fora preparar-lhe um caldo.
— Está chorando, mamãe?! — exclamou Conceição, debruçando-se por cima do leito de Emília e cingindo-a entre os braços. — É por minha causa que chora?...
Como que as exclamações de Conceição causaram um prazer dulcíssimo a Emília!
A nora de Januário descobriu o rosto e enlaçou com os ossos descarnados dos braços a cinturinha elegante da donzela.
— Não estou chorando, pobre criança! — disse. — Veja que estou me rindo...
No semblante cadavérico de Emília havia realmente a luz doce de um sorriso, misturando-se às mais ardentes lágrimas em iriações de uma alegria celeste...
Foi um abraço longo...
Emília sentia como um transbordamento do coração, apertando contra o peito aquela mocinha.
Conceição reparou que nunca estivera tão alegre a nora de Januário.
Orgulhava-se generosamente de ter causado tanto prazer.
— Já não chora mais? — perguntou, sorrindo, à doente.
— Agora estou ficando boa... — respondeu Emília, que, depois do abraço, ficara segurando a mão da moça.
Conceição deu uma risadinha graciosa e acariciadora:
— Ah! Está ficando boa com o meu abraço?...
— Foi um santo remédio! — disse sorrindo a doente.
Na verdade era sensível o bem que aquela expansão de amizade fizera a Emília. A voz tornou-se-lhe mais forte e mais clara, um fortalecimento geral percorreu-lhe os músculos.
Quando a mulher de Januário entrou com o caldo no quarto, achou Emília sentada na cama.
— Já está boa, Dindinha! — gritou-lhe Conceição.
— Sim, senhora! Isto sim! — disse a velha com um carinho fingido. — Beba este caldo e saia a passear, que daqui a pouco está boazinha que nem eu...
Emília tomou o caldo e, meia hora depois, estava fora da cama, a andar pela casa, um pouco fraca ainda, porém, sentindo-se mais disposta.
Todos julgaram na boa e Emília mesmo sentiu-se sem a opressão do peito, que tanto a atormentara durante a noite. Tirou da cama o filho e foi à cozinha ajudar a velha sogra, que, por uma grande generosidade, tomara a si a parte mais pesada do serviço daquele dia.
Não fora só Emília que havia passado mal a noite. Januário apenas pôde conciliar o sono pela madrugada. Levara a pensar na agressão inesperada da nora.
Lembrou-se das palavras fatídicas de Manuel de Pavia, quando dissera que tinha medo das mulheres tristes. Depois começou a esgravatar nos recantos do seu velho cérebro uma razão para o procedimento da nora.
De fato. Emília não mostrava grande amor à Conceição. Ao menos ele nunca a vira fazer-lhe agrados... Emília não gostava que Conceição a chamasse de mãe, e, afinal de contas, a rapariga não passava de uma enjeitada, trazida para casa pela generosidade de seu filho...
A que vinha a raiva daquela jararaca triste, por um negócio que não lhe dizia respeito?...
Dava que pensar...
E Januário pensou toda a noite; e a madrugada veio surpreendê-lo a pensar ainda...
Por isso acordou-se muito tarde.
Quando abriu os olhos e lembrou-se do acontecimento da véspera, julgou que tivesse sido vítima de um pesadelo. Depois de levantar-se, vendo na gaveta o dinheiro recebido de Pavia certificou-se de que foram muito reais os trambolhões que lhe dera a nora.
Ao sair de sua alcova mastigava nas desdentadas gengivas um plano de vingança: mandar incontinenti a rapariguinha à casa do Pavia...
— Hoje vosmecê levantou-se muito cedo, meu garoto — disse-lhe a mulher em tom de chacota. — São horas de almoço....