Vejamos o que ia pela casa do velho Januário...
Por volta das duas horas da tarde, aparecera Claudina, a filha de Pavia e camarada de Conceição convidando a amiga a ir à casa dela. Januário exultou, vendo que Pavia por seu lado trabalhava para facilitar o negócio. Apressou-se em fazer Conceição sair, admirando-se muito de não ser impedido pela resistência de Emília, com que contava. A nora mudara de modo de pensar... Conceição, muito alegre por haver curado a boa Emília com seus carinhos, achou muito a propósito um passeio à casa da amiga Claudina...
Não se preocupou mais com a doença da nora de Januário.
E foi-se, rindo de prazer, de mãos dadas com Claudina, prelibando as agradáveis surpresas que reservava-lhe o passeio...
Pelo resto do dia, Emília não sentia-se tão boa como esperava. Começou a sentir uma debilidade que dizia-lhe que as melhoras experimentadas haviam sido fictícias... Não quis admitir. A fraqueza progredia e ela resistia-lhe com todas as energias. Não quis afastar-se do serviço em que auxiliava a velha sogra. Trabalhou. Mas a fraqueza continuava, cada vez mais profunda, Reagiu ainda; não pôde com a moléstia.
Ocultou, enquanto pôde, o mal que a prostrava. Afinal sucumbiu.
— Precisava estar boa por amor da minha Conceição! — murmurou ela, ao voltar para o leito...
Com a recaída de Emília, voltaram os cuidados da mulher de Januário em relação ao peso do serviço com que se ia ver atrapalhada, caso morresse a sirigaita...
Tranquilizou-se, porém, com esta reflexão:
— A Conceição já foi... o dinheiro está seguro... Teremos quem nos sirva...
À tardinha, a caridosa duquesa, visitando os moradores da aldeia da quinta, foi bater à porta dos velhinhos do beco.
A mulher de Januário correu a buscar um xale novo e veio pressurosa abrir, enquanto o velho marido ia preparar uma fatiota mais asseada. A duquesa entrou sem repugnância no casebre dos velhos, respondendo com generosas palavras às cortesias que lhe dirigiam os moradores do pardieiro, que elevavam-na à categoria de santa...
— Onde está a senhora Emília? — perguntou logo que os cumprimentos acabaram.
A duquesa sempre se interessara pela pobre Emília. Conhecia-a de muito tempo e não se lembrava de tê-la visto sorrir, senão por triste cortesia, ou em resposta a qualquer coisa amável que se lhe dissesse. Adivinhava que aquela mulher sofrera muito e sofria ainda essa espécie de indiferença dolorida que fica depois dos longos padecimentos morais. Desejava conhecer o segredo daquela melancolia, para ver se podia consolar. Emília tinha, em compensação, uma profunda amizade à generosa fidalga. Sempre que a duquesa apresentava-se era ela a primeira a ir recebê-la e beijar-lhe as mãos.
A ausência de Emília foi que provocou a pergunta da senhora de Bragantina.
-Ah!... a pobre Emília!... Está muito doente, minha boa senhora — respondeu a mulher de Januário. — Levantou-se hoje incomodada, melhorou um pouco durante o dia, mas à tarde recaiu.
— Quero vê-la — disse a duquesa.
— Com licença...
— Qual, não é preciso arrumar coisa alguma... Sabem que eu não reparo, mesmo porque, com os anos, vai-se ficando cega... Diga-me onde está a Emília...
E assim falando, a duquesa, que não se sentara ainda, foi-se dirigindo para o interior da casa. A mulher de Januário precedeu-a e foi mostrando o caminho, fechando portas, para ocultar os quartinhos mal arranjados.
Emília estava acondicionada em uma pequena alcova que dava para a sala de jantar. A escuridão do crepúsculo valia de noite na alcova.
— Acenda uma vela — disse baixinho a duquesa a Januário.
Com o brilho da luz, Emília moveu-se na cama onde jazia.
Estava com o rosto para a parede. O cuidado com que todos entraram no quarto fê-la crer que só entrara na alcova a sogra.
Vendo luz acesa, quis verificar quem era.
De um olhar, reconheceu a duquesa...
— Senhora duquesa! — disse com visível espanto.
— Como vai a senhora? — perguntou docemente a fidalga penalizada de ver o estado da pobre mulher.
Emília tentou erguer-se para saudar a duquesa, mas o esforço perdeu-se-lhe pelo delgado colchão da enxerga...
— Não se incomode! não se incomode! — pediu a duquesa, dando a mão à doente.
Emília, com um movimento custoso, tomou aquela mão e cerrou-a contra os lábios. Uma pequena lágrima imperceptível nasceu no canto das pálpebras da duquesa...
A senhora de Bragantina sentiu que as mãos de Emília, secas como o pergaminho, queimavam como brasa, e os lábios estavam frios.
O quarto de Emília era um insignificante aposento atulhado de caixas e móveis, mais ou menos inválidos. Aqui uma cadeira sem encosto, ali um banco com três pernas, a um canto uma cômoda macróbia, pilhas de caixas e caixões recheados de quanto farrapo pode a miséria acumular... As paredes eram simplesmente caiadas; o tempo e a fumaça tinham-nas pintado de negro. Havia um asseio relativo no lugar. Por uma grande janela, cuja vidraça estava meio suspensa, calçada por uma garrafa vazia, entrava a viração da noite.
Por uma rápida inspeção a duquesa reconheceu que Emília estava mal. Depois de sentar-se numa cadeira que lhe haviam colocado ao pé da cama, a senhora de Bragantina conversou com a mulher de Januário sobre o incômodo que a doente sentira pela manhã.
— É necessário chamar um médico — disse no fim da conversa...
— Não, senhora — disse Emília. — Para que chamar médico?... Eu não sofro nada...
Depois acrescentou:
— É só esta fraqueza... esta fraqueza...
— É por causa desta fraqueza mesmo — disse a duquesa.
E fez um gesto a Januário para que fosse ver o médico.
— Chame-o em meu nome — disse.
Januário saiu e foi à casa de um médico que tinha grande clínica na quinta.
— Então? Não está-me parecendo que a tal minha nora bate a bota?! — disse ele em caminho. — Tenho visto muita gente acabar assim...
— Desde quando sofre esta fraqueza? — perguntou a senhora de Bragantina a Emília.
— Ih!... é coisa velha — disse Emília com uma voz suspirosa e suave. — Há muitos anos que padeço este abatimento, esta perda progressiva de forças... Hoje, depois do acesso da madrugada, que me prostrou muito... hoje foi o dia que melhor tenho passado, de um certo tempo para cá... Passei mesmo muito bem hoje... Acreditei até que estava completamente boa... Não sei por que motivo... aí pela tarde adiante, comecei a sentir um cansaço... que não pude mais... Tanto que desejava conversar com a senhora duquesa...
— Comigo?... Sobre o quê?...
— Sobre coisas muito graves...
— Graves...
À duquesa pareceu lobrigar uma pontinha erguida do segredo da melancolia de Emília.
— São gravíssimas... Eu pretendia dirigir-me a V. Exa., logo que soubesse da sua chegada de Anatópolis... Soube que não tinha partido hoje, mas não me foi possível sair... Deus quis que a caridade de V. Exa. a trouxesse ao nosso casebre...
— Vim passear...
— ...Não quero guardar comigo um segredo que pode causar uma desgraça terrível... A minha fraqueza me faz recear...
A duquesa, até então interessada por uma curiosidade simplesmente generosa, sentiu-se presa de uma necessidade imprescindível de conhecer o segredo de Emília...
A sua imaginação desprendida pôs-se a criar castelos de sangue, mistérios trágicos, crimes ocultos, coisas hediondas de que fora vítima, ou quem sabe? autora aquela mulher calada e sombria...
A duquesa teve medo; mas sentia ao mesmo tempo a vertigem da curiosidade, que arrastava-a para aquele segredo formidável... Além disso, que desgraça era esta que a doente temia?... Seria tudo aquilo delírio. Mas não! A enferma apresentava uma firmeza de ideias que não fazia supor que delirasse...
— A senhora revela o segredo... não é? — perguntou a duquesa, para ver se a resposta da doente destoava das suas primeiras palavras.
— Revelo, senhora duquesa — respondeu serenamente Emília —, mas somente quando aqui não houver gente demais...
A mulher de Januário não ouviu o que disse a enferma, ou fez-se desentendida...
A duquesa voltou-se para ela e disse:
— Tenha a bondade de retirar-se, porque a senhora Emília precisa falar-me em particular...
— Pois não! pois não, senhora duquesa!... Já que ela não quer que esta pobre velhinha lhe conheça os segredos...
— Estamos agora sós — falou a duquesa, vendo sair a velha —, pode contar...
Emília fez um grande esforço e sentou-se na cama.
— Quero falar sentada, sim.
A duquesa amontoou alguns travesseiros, e a doente encostou-se neles, olhando para a janela. Esteve por momentos perdida numa espécie de abstração, sem dar mostras de que lhe fosse pelo cérebro o menor pensamento tempestuoso.
A duquesa encarava religiosamente aquela mulher de faces lívidas, escavernadas, e olhos cheios de um brilho forte, mas calmo como o luar. Parecia-lhe que ia ouvir uma moribunda. A sra. de Bragantina aguardou em silêncio que Emília quisesse começar...
A doente sorriu, como se ouvisse alguma palavra agradável, e perguntou:
— A sra. duquesa não ignora talvez, que há nesta casa uma linda mocinha, afilhada de meus sogros...
— Sei... A Conceição? não?... E onde está ela?... não a via hoje...
— Está fora... V. Exa. não simpatiza com ela?... Oh! Aquela menina é uma pérola... tão boazinha!... tão alegre... Leva sempre a rir... alegrando a gente... Pois não há quem saiba a verdadeira origem desta criança encantadora...
— Ninguém?!...
— Ninguém... menos eu e um indivíduo que mora aí na quinta... Ai! meu Deus, aquilo não é um homem, é pior do que o sapo, é pior do que a víbora...
Emília passou a mão pela fronte e continuou:
— Ninguém mais sabe; ninguém mais pode saber!... É o segredo de uma vergonha... É uma história que arrasta na lama o nome de uma miserável...
A duquesa percebeu que Emília se fatigava, falando...
— Olhe... a senhora está se cansando... não fale mais... quando estiver melhor, a senhora conta...
— Não, sra. duquesa... não paro... Vou contar toda a história... Não me canso, porque, juro-lhe que o peso do meu segredo é mil vezes maior... Quero revelá-lo para ver se durmo... se fico ao menos aliviada... Há mais de quatorze anos que esta história esmaga-me a vida dia por dia, hora por hora...
...Havia em *** uma moça, filha de pais remediados, donos de um pequeno sítio fora da cidade... Um dia passou pelo lugar um grande fidalgo cuja chegada foi ansiosamente esperada na cidade, e chegou no meio de festas e foguetaria... Era um grande fidalgo brilhantemente acompanhado... Um homem maduro, forte, corado de vida, ardente como um mancebo... Uma jovem de populaça, uma louquinha sorriu para o fidalgo ao vê-lo passar na cidade... julgou-se feliz, vendo que não ficara sem ser notado o seu sorriso...
Emília fez uma pausa, e respirou largamente como quem acaba de escalar um monte. Depois, prosseguiu:
— ...Essa louquinha era a filha dos donos do sítio... Fora à cidade por causa da festa... Não me demorarei nas minúcias... Na mesma noite da chegada do fidalgo a moça teve um sonho horrível... Fora deitar-se pensando na atenção que lhe dera o fidalgo... Muita gente dizia-lhe que ela era bonita... aquela atenção parecia confirmar... A vaidade da pobrezinha fora lisonjeada... Adormeceu: via no sono dois olhos do fidalgo fitando-a como de dia na cidade, fitando com uns olhos que pareciam bocas abertas para devorar...
"De súbito, percebeu que suspendiam por fora a vidraça de uma janela do quarto, que dava para o telheiro de uma estrebaria. Por não sei que circunstâncias as abas da janela estavam abertas... A noite estava escura como breu, o quarto tinha a luz indecisa de uma lamparina... A moça viu além da vidraça vultos movendo-se... O medo fê-la enregelar-se no leito... De um momento para outro... a desgraçada viu dois homens embuçados em grandes capas negras, chapéus enormes na cabeça; silenciosos como cadáveres, próximos da cama... ameaçadores... Teve medo; atirou-se para fora do leito... Os dois homens, rápidos como demônios, prenderam-na... Dedos rijos como tenazes seguraram-lhe a garganta... Os gritos de socorro ficaram estrangulados... Então, um dos homens, uma espécie de gigante muito barbado, apoderou-se dela e disse ao companheiro:
"— Deixe-a comigo..."
"A infeliz reagiu, bracejou, arcou com o gigante, cravou-lhe os dentes, deu-lhe com as mãos no rosto, segurou-lhe as barbas, tudo em vão... As dentadas não passaram da lã do capote, e o gigante agarrou a vítima pelos dois braços, vergou-a, torceu-a como se a fosse partir!... Foi um sonho horrível!... A moça, antes de poder soltar um grito, viu-se arremessada sobre o leito d'onde fugira... Foi então uma brutalidade!... A desventurada sentiu faltar-lhe a respiração, e, sufocada, mordida, contusa, esmagada, macerada com se a houvessem arrastado por cima de um chão pedregoso, desfaleceu num estado miserável... miserável, sra. duquesa!..."
Neste ponto da narrativa, Emília inclinou a cabeça para o peito. Uns soluços convulsivos, sem lágrimas, subiram-lhe do peito com uma violência atroz e ferveram-lhe na garganta, imprimindo fortes estremecimentos a todo o corpo como vascas de dor.
A duquesa, sem poder articular uma palavra, cobriu os olhos com um lenço...
Passaram-se alguns momentos.
— Ai meu Deus! — disse Emília com a voz cansada. — Tenho medo de não poder chegar... ao fim... Estou me sentindo muito mal... Faltam-me as forças... é esquisito... parece que estou muito pior...
— Tranquilize-se, minha filha — disse comovida a duquesa. — Tranquilize-se... não se morre assim...
Um sorriso angélico, que não significava alegria, passou como um relâmpago pelos lábios de Emília...
Já havia acabado a exaltação que a fizera soluçar. Com a serenidade ligeiramente queixosa que revelara no princípio a doente recomeçou:
— Dentro de pouco tempo as coisas se encaminharam por tal forma que a vítima daquele horrendo sonho teve de fugir... fugir de casa corrida de vergonha e de infâmia... Um cartão que tinha gravado um nome poderoso e uma coroa ilustre, encontrado casualmente pela moça, era a sua única esperança. Este cartão continha uns oferecimentos que fariam corar, se o caso não fosse extremo... A pobre fugitiva recorreu àquela imunda salvação... Graças ao cartão... a filha dos proprietários do sítio de ***, a vítima daquele sonho brutal, a mísera criatura, que fugia diante da sua vergonha, fez uma longa viagem e veio ter ao palácio de Santo Cristo...
A duquesa estava como que atordoada, sofria duramente com a narração de Emília...
— ...veio ao palácio de Santo Cristo, porque a coroa do cartão era uma coroa de duque e o nome era o do senhor de Bragantina... porque era este senhor o fidalgo viajante que dera à mocinha do povo que sorrira... porque o gigante feroz do sonho fora ainda o senhor de Bragantina...
— O duque?!...
— Ah! minha boa senhora, ela merece o seu perdão, recorreu ao seu marido porque ia ser mãe. Não tinha direito de afogar um filho em qualquer pântano, suicidando-se... Veio pedir abrigo... Teve um cochilo aí no arrabalde...
"...Passados tempos, contratava-se o seu casamento com um sujeito de ínfima classe... Era a proteção generosa do sr. duque... O tal sujeito recebeu indiferentemente a carga que lhe atiravam e uma criaturinha recém-nascida que a mulher que lhe davam criava com muito afeto e cuja proveniência ordenaram-lhe que não indagasse...
Essa criaturinha, improvisada pelo sr. duque de Bragantina, essa excrescência no lar para um indivíduo que não passava de seu humilde lacaio, essa coisa estranha, essa verruga, era a linda Conceição, que a sra. duquesa conhece e a esposa que se dava ao lacaio era eu!...
— A Conceição — exclamou a duquesa — é, portanto, filha...
— Da minha vergonha — murmurou Emília...
A pobre nora de Januário sentiu um desfalecimento profundo. Ao pronunciar a última palavra escorregou pelos travesseiros a que se arrimava e caiu no leito como morta...
A duquesa acudiu assustada. Verificou que fora uma consequência da debilidade da enferma...
— Quer ficar deitada, ou deseja que eu a sente como estava?
— Rogo-lhe que me sente — respondeu Emília, com a voz balbuciante. — Tenho ainda a dizer alguma coisa... quero morrer tranquila... Não peço que mande chamar um padre... porque não chegaria a tempo... E é preciso aproveitar os momentos que me restam... prevenir a desgraça... prevenir a fatalidade...
A duquesa, que se esquecera das primeiras palavras de Emília, por causa da sua curiosa narrativa, lembrou-se de que tudo o que se dissera não passava de preâmbulo ao assunto grave...
— Não quero que se chame um padre — continuava a doente — porque seria perder grandes momentos... sra. duquesa, rogo-lhe que me ouça bem... Sou uma pobre moribunda... Vou confiar-lhe a miserável herança... Recomendo-lhe a minha Conceição, a linda bastardinha inocente... Tenho um filho, o filho do meu infame casamento... É pequenino, mas tem os avós que o adoram... A desamparada é Conceição... É a filha da minha vergonha, mas tem um grande sangue nas veias... Não! não é a filha de um lacaio que aceita por servilismo uma vagabunda sem honra... Nunca admiti que chamassem minha filha, porque eu era a mulher de um miserável... Conceição é a relíquia da minha pureza despedaçada... Eu adorei-a sempre... Agora vou morrer... Não pensava que fosse tão cedo, mas adivinho que não falta muito... Vou deixar a vida... não quero que ela me vá cuspir na cova por eu ter sido a autora da sua desgraça. Aproxime-se bem de mim, sra. duquesa... A voz me vai... faltando de todo... não perca uma palavra...
Sentia-se uma transformação no semblante da moribunda. Percebia-se-lhe nos olhos alguma coisa de fazer calafrios, como se a morte estivesse a espiar por eles.
— Preciso de ar... levante ali a janela...
A duquesa correu à vidraça e suspendeu-a, voltando para junto de Emília.
O ar impregnado de perfumes campestres entrou em turbilhões, fazendo vacilar a luz da vela que clareava o quarto e agitando os cabelos desgrenhados e secos da moribunda...
— Está bom o fresco — disse Emília sorrindo tristemente...
Depois, com grande espanto da duquesa, perguntou cheia de gravidade:
— Conhece Manuel de Pavia?...
— Conheço este desgraçado.
— Diz bem... um desgraçado... Este homem que foi cúmplice do duque na minha ruína... Ah! eu bem o reconheci... Este homem acaba de comprar ao meu sogro a honra de minha filha para oferecê-la ao duque...
A duquesa apertou a fronte entre as mãos para que não arrebentasse. O coração palpitava-lhe com uma violência mortal...
— Ah! sra. duquesa, é um belo presente para um pai!...
— Perdoe-me, pobre senhora! perdoe-me! — exclamou a duquesa abraçando e cobrindo de lágrimas a moribunda. Desatinava como se fosse enlouquecer...
— Mas o duque!... — exclamou com a voz angustiada, sem saber o que falar.
— O duque — disse a doente —, o duque ignora... O perigo é enorme. Rogo-lhe que salve minha filha... Ela está em casa de Pavia... Foi hoje... deixei-a ir, porque enquanto o duque estiver ausente... Salve-a... Entrego-lha.
— Ah! meu Deus! meu Deus! — exclamou a duquesa...
Acabava de ver um tremor agitar os olhos de Emília e a cabeça tombar-lhe para os seios, em toda a flacidez da inércia.
A mãe de Conceição lançara o derradeiro olhar ao retalho de noite que se via pela janela aberta e, fitando saudosamente uma estrela, inclinara a cabeça ao peso da morte.
Na estrela que viu por último, deixou escrito um adeus para aqueles que havia quatorze anos não sabiam dela.