III.
A igreja estava apinhada.
A nave sepultada em meia obscuridade servia de moldura ao retabulo da capella, a qual scintillava com a luz dos cirios e os reflexos metalicos das alfaias e galas que cobriam os altares.
No centro da esphera luminosa, nublada pela fumaça do incenso, que exhalava da caçoula de prata lentamente embalançada pelo turiferário, destacava a cruz negra do martírio, de onde a imagem do Cristo dominava a multidão curvada e respeitosa.
Eram sete horas e meia quando soaram os atabales do terço postado no largo.
Chegava o Governador D. Diogo de Menezes, conduzido debaixo de pálio pelos juízes e vereadores do conselho, e acompanhado por D. Diogo de Campos, sargento-mor do Estado do Brasil, pelo Alcaide-Mor da Bahia, Álvaro de Carvalho, provedor da fazenda, o Desembargador Baltasar Ferraz, ouvidor, escrivão dos contos e mais gente do serviço de El-Rei.
O cabido saiu fora a recebê-lo com as etiquetas do formulário, e o conduziu ao setial colocado do lado do evangelho; no mesmo plano estava o assento forrado de damasco branco dos oficiais da Câmara; vinham depois o ouvidor, alcaide, provedor e os outros ministros.
Do outro lado via-se a poltrona episcopal, vaga pela ausência de D. Constantino Barradas, que se achava de visita na Capitania de Pernambuco; seguiam-se as dignidades da Sé e o coro dos cônegos; no fim havia um banco de veludo roxo que devia ser ocupado pelo provincial dos jesuítas à direita do dom abade de São Bento e do custódio dos franciscanos.
D. Diogo de Menezes era um verdadeiro fidalgo no porte senhoril como no caráter egrégio; achava-se então no vigor da idade, no período de transição dos quarenta para os cinquenta anos, em que então os homens daquela têmpera chegavam ao perfeito desenvolvimento de sua organização, e adquiriam a robusta virilidade, que ilustrou a história de tantos feitos brilhantes.
O grave parecer esclarecido por um espírito superior era o documento do passado honroso e o prenúncio da carreira ilustre que ainda tinha a percorrer; a severidade não excluía a afabilidade das maneiras e a polidez do trato, que caracterizavam o fino cavalheiro.
Homem de governo, escravo do dever, para quem a lei era religião, e a honra culto; conhecia-se contudo que ele compreendia, e talvez mesmo sentisse ainda, o entusiasmo heroico e cavalheiresco, que iluminara as lendas e os romances da Média Idade, e já então apenas lançava os frouxos clarões da luz que bruxuleia ao extinguir-se.
Apenas o governador, fazendo uma cortesia geral, sentou-se na cadeira alcatifada, ouviu-se o temperado de garganta sonoro e clássico do mestre de capela, que do alto de seu trono regia a orquestra; quase imediatamente a larga tira de papel pautado, tangida pelo braço robusto, assentou no respaldo da grade do coro a palmada estridente e simbólica.
Era o sinal para começar a missa cantada; primeira pancada de compasso que abria o solfejo de velho in-fólio colocado sobre uma estante.
O mestre de capela, cheio de sua importância, meneava aquela tira de papel pautada com a galhardia de um general brandindo a espada vitoriosa em frente ao seu exército no momento da batalha.
Os meninos do coro tomaram seu lugar; uma exígua figura, coberta de longa capa de raso preto, saiu do esvão da torre, e dirigiu-se lenta e compassadamente para o teclado do órgão, sobre o qual estava aberto um grosso alfarrábio das solfas do P. Manuel Mendes.
A cor lívida, os olhos profundos e cingidos de uma orla de bistre, as faces encovadas, davam àquele semblante um aspecto triste e lúgubre; os cabelos grisalhos e revoltos caíam sobre a testa vasta e proeminente; o hábito do estudo lhe acurvara o corpo emagrecido, diminuindo aparentemente a estatura raquítica, que pouco excedia de cinco palmos craveiros.
Tal era o licenciado Vaz Caminha, o mais sábio letrado da cidade do Salvador, que apesar de suas elucubrações forenses e da gravidade do ofício, fazia ao mestre de capela a mercê de tocar órgão na Sé, por ocasião de grandes festividades, mediante a espórtula de um tostão em prata e o jantar na mesa do senhor bispo, quando este se achava na Bahia.
O discípulo de Bártolo e Scoto endireitou a tripeça, sentou-se traçando as perninhas em forma de cruz grega, e apoiando o queixo sobre o polegar da mão esquerda, sestro que lhe era familiar, esperou o segundo sinal.
— Sua senhoria acaba de chegar, disse o mestre de capela. Podemos dar começo, se vos praz, senhor licenciado.
— Por mim não se espere, mestre Bartolomeu.
— Atenção! exclamou o chefe da orquestra, voltando-se para os meninos do coro. Atacar o ut com presteza, subito, compasso quaternário.
E erguendo a braço hercúleo, e volvendo uma última vista em torno, assentou com o rolo de música um segundo estalo, que foi o prelúdio da mais tremenda algazarra jamais ouvida em templo cristão.
Os gritos agudos e esganiçados dos meninos do coro, impelidos com toda a força dos pulmões feriam o ouvido como o estrídulo metálico do canto da uiraponga; no meio do alarido troava, mugia, a voz de baixo profundo do mestre Bartolomeu, que com uma só nota enchia o vasto âmbito da catedral.
O monstruoso concerto durou cinco minutos em formidável crescendo; baixando afinal de tono em tono, reboando pelas altas abóbadas, expirou como o trovão que rola ao longe pelas nuvens, ou o oceano encapelado quando geme sob a refega do vento.
No entanto o licenciado Pero de Campos, deão, que oficiava na ausência do bispo, revestido dos guisamentos sacerdotais, subia ao altar acompanhado dos dois acólitos; e o cantochão desafinado dos cônegos respondeu dignamente ao desafio musical da orquestra.
O mestre de capela, à guisa de alguns cantores modernos desempenhava ao mesmo tempo dois papéis, o de baixo e o de contralto; cerrando pois as largas queixadas, expeliu pelo nariz uma voz de tiple, fanhosa e esguichada, que meteria inveja ao mais alentado eunuco da Capela Sistina; era um alegro predileto do grande solfista.
Assim, apenas terminou, ainda com as bochechas insufladas e o suor a correr-lhe pela touta, voltou-se para Vaz Caminha que feria as teclas com a mesma gravidade que teria, se estivesse consultando um texto do Corpus Juris ou arrazoando um agravo para a Casa da Suplicação.
— Que dizeis deste solo, senhor licenciado? É solfa deste vosso servo.
— Optime! respondeu o letrado cortesmente.
Era a vigésima vez que o bom do Bartolomeu cantava aquele trecho e terminava pela pergunta referida, à qual o advogado com a regularidade dos homens sisudos e pensadores respondia pelo mesmo advérbio.
A ponto que isto passava no coro, e a missa cantada prosseguia, muitos sentimentos diversos e bem estranhos à cerimônia sagrada agitavam os atores principais da cena.
D. Diogo de Menezes vendo a cadeira do provincial dos jesuítas vaga, sorrira de um modo significativo; compreendera que a ausência não motivada, no dia em que celebravam a sua chegada, era um primeiro manifesto de guerra que lhe lançavam os aliados do Bispo D. Constantino.
Embora fosse toda mental e íntima a reflexão, o fidalgo ergueu a cabeça com expressão de energia, como se aceitasse o desafio e se preparasse para a luta; depois lembrando-se onde estava inclinou diante de Deus a fronte que trazia sempre alta em face dos homens.
Mais longe, as duas meninas, logo que começara o sacrifício, haviam cessado a conversa e emudecido no santo respeito que lhes inspirava o sublime mistério da religião cristã; mas o espírito de Elvira, rebelde e tenaz, voltava às suas preocupações, apesar de todos os esforços que ela fazia para afastá-lo de tais ideias e trazê-lo à oração que os lábios balbuciavam automaticamente.
A donzela lembrava-se das festas que deviam ter lugar à tarde, festas que a haviam feito sonhar tantas horas, e iam passar enfim sem que as gozasse; sua fantasia revoava por todas aquelas imagens brilhantes e esquecia a realidade para viver ainda alguns instantes de esperança; mas a ilusão desvanecia-se breve e tornava ainda mais pungente a decepção.
Às vezes em sua cólera infantil, a inocente fazia protestos de querer mal à sua mãe por causa da crueldade com que a condenava à solidão no momento em que todos haviam folgar e rir; eram ímpetos passageiros, como as faúlhas que saltam das chamas e se apagam no ar.
Por fim acabava pedindo à Virgem perdão para o mau pensamento que tivera; e resignada à sua desventura, enfiava por entre o véu um olhar longo e apaixonado, que penetrava até o coração de Cristóvão, e voltava de lá mais sereno e consolado.
Inesita, essa estava inteiramente absorvida pela oração; o espírito de Deus a dominava; e só de espaço em espaço, nos momentos em que a alma saindo da meditação lembra-se que tem um corpo, a tímida menina sentia-se viver pela recordação do lugar onde estava e da proximidade de Estácio; então sem ver, adivinhava que o olhar do moço a envolvia em um raio de amor, e estremecia com a sensação de gozo inexprimível.
Mas o que ela não podia adivinhar era a angústia que confrangia a alma do moço, ajoelhado junto à grade e tão pálido, que o oval de seu rosto iluminado por uma réstia de sol, destacava entre as roupas negras como um relevo de alabastro em medalha de ébano.
Estácio descobrira a alguns passos D. Fernando de Ataíde, que não tirava os olhos da menina; bastou para que uma suspeita cruel entrasse em sua alma; lembrou-se que talvez o olhar de Inesita fosse dirigido a seu rival, e desejou até que ela não erguesse mais a vista, nem se voltasse de seu lado.
O moço era pobre e modesto; aqueles que como ele amaram um dia, compreenderão o martírio que sentiu pensando que D. Fernando de Ataíde, nobre e rico, podia depor aos pés de sua amada um belo nome e soberbas prendas, enquanto que ele apenas tinha um coração leal a oferecer.
A dama desconhecida e velada não tirava os olhos de Estácio, senão para volvê-los a Inesita. Por vezes inclinara-se para a gorducha de sua companheira, como se lhe quisesse falar e disfarçava; até que afinal a palavra retida escapou-lhe dos lábios:
— Sabeis, Brásia, quem seja aquele cavalheiro que agora ajoelha perto à grade, bem em frente a nós?...
— Vejo dois, D. Marina, tão gentil um como outro! De qual falais?
— Do que traja negro.
— Não sei, não, dona; mas não faltará quem o saiba.
— Pois indagai, e onde mora.
A velha estabeleceu logo um cochicho que percorreu toda a longa fila de beatas estendida pela nave da catedral.
A festa prosseguia, o coro e o cantochão continuavam alternando, quando foi ouvido na porta da igreja um ligeiro rumor causado por muitas pessoas, que voltavam o rosto para ver alguma coisa que estava passando fora.
O objeto que tanto excitava a curiosidade, a ponto de distrair assim a atenção do ofício divino, era um navio de alto porte que encoberto pelas sombras da noite se avizinhara de terra, e aos raios do sol nascente aparecia à entrada do porto com as velas enfunadas pela fresca viração da manhã.
D. Diogo acenou ao capitão de sua guarda:
— Manuel de Melo, inquiri da razão deste rumor! disse-lhe à puridade.
Nesse tempo ainda não se tinha desmoronado o tabuleiro que ficava em frente da Sé, a pique da montanha, com uma vista soberba para o mar; por isso daquela posição distinguia-se já perfeitamente o navio que velejava demandando o porto, e o casco, e a mastreação, e a bandeira espanhola a flutuar na popa. A não escassear o vento, era natural que em menos de duas horas estivesse fundeado.
A notícia transmitiu-se rapidamente. Há uma espécie de corrente elétrica nas grandes massas de povo; dois minutos depois de ouvir-se o rumor na porta da igreja ninguém já ignorava a grande nova.
— É uma fragata espanhola, ao que parece procedente do reino, que entra a barra, informou ao governador o capitão da guarda.
Este fato que hoje não tem muita importância pela sua frequência, naquele tempo de raras e difíceis comunicações entre o Brasil e a metrópole, era um acontecimento do maior interesse. Para os governadores e empregados no serviço real queria dizer a solução de altas questões da administração do novo Estado; para o povo exprimia talvez o deferimento aos pedidos das Câmaras sobre redução de impostos, extinção dos estancos e servidão dos índios; para os mercadores de grosso trato significava o recebimento de cabedais ou de gêneros de tráfego; para os particulares era o provimento da mercê que haviam requerido, ou a reforma da sentença de que tinham agravado; para as mulheres, além da parte que tomavam no que dizia respeito a seus pais, irmãos e maridos, havia a curiosidade, sentimento poderoso em todas as filhas de Eva.
Já se vê pois, que desde o Governador D. Diogo de Menezes até a última das beatas escondida em algum canto, todas as pessoas, que se achavam na igreja, desejaram intimamente ver acabada a missa; os cônegos acordando salmeavam o cantochão como se cantassem um solau; o licenciado apressara o compasso; o deão saltara por engano uma página do missal; as velhas correram duas contas por cada padre-nosso.
No meio da geral preocupação só ficaram estranhos, Elvira e Inesita, que continuavam as suas orações; Cristóvão, Estácio e Fernando, para os quais o mundo se resumia nas duas meninas; D. Luísa de Paiva, imóvel em seu êxtase religioso; finalmente o mestre de capela, que apesar dos cônegos, do salto da página, do toque do órgão, apesar de tudo, solfejava um andante com imperturbável sangue-frio, sem engolir uma nota ou falhar uma pausa.