Vaz Caminha era natural da vila de Arraiolos, em Portugal, e descendente de uma família de aldeões, para quem o mundo não existia além do estreito horizonte em que se debuxava o campanário da igreja paroquial.
O futuro legista estava pois condenado a vegetar nos labores campestres, se a natureza deserdando-o da robustez e vigor proverbial na família, não o houvesse predestinado para uma vida espiritual e meditativa: nascera de sete meses e mostrara desde logo que pouco desenvolvimento teria sua organização acanhada.
Os pais sentiam profundo anojo de ver aquele menino raquítico e débil, que tiritando de frio e encolhido a um canto, acompanhava com a vista, nas longas tardes de inverno, os brincos de dois rapagões fortes e rosados a saltarem no eirado da granja.
A mãe especialmente tinha tomado tal desgosto a esse fruto imaturo de suas entranhas, que a não ser a solicitude de uma irmã, o menino não teria decerto sobrevivido à indiferença e abandono em que ela o deixava; mas a Providência parece colocar sempre ao lado das criaturas fracas e desamparadas um coração que as proteja e abrigue; é a folha para a larva do inseto.
Felizmente um monge do Convento dos Loios tomou o menino sob sua proteção, e depois de o haver feito aprender as pueris e gramaticais, mandou-o ouvir na Universidade de Coimbra as aulas maiores de degredos; porém, o moço estudante preferiu dedicar-se à jurisprudência, e seu protetor atendendo às boas disposições que mostrava, não o contrariou.
Vaz Caminha cursou todas as cadeiras, das quais fez exame privado. Defendendo sucessivamente as conclusões magnas exigidas pelo Estatuto da Universidade, tomou um após outro os graus que então havia de bacharel, mestre, licenciado e doutor; e ganhou na sábia congregação de Coimbra a fama de um dos mais profundos romanistas do tempo.
O legista recolheu-se então à sua vila natal; aí, entregue às lides forenses, teve a nobre ambição de ilustrar seu nome obscuro; aproveitando os momentos que lhe deixavam os clientes, como depois fez Lobão, empreendeu escrever um Comentário às Ordenações Manuelinas, obra de plano vasto, em que se investigavam as verdadeiras fontes daquele código do direito português.
Correram os anos. Vaz Caminha concluiu sua obra, limou-a conforme o preceito de Horácio, e sentiu o desejo muito natural de trazer à luz o fruto de suas longas vigílias; mas então a imprensa era um luxo dispendioso, e as cópias em pergaminho, a que se recorria na falta daquele agente da circulação, não custavam menos.
Ora, o foro de Arraiolos era escasso; o advogado poucas economias tinha feito, apesar da parcimônia com que vivia; de modo que a obra estava condenada a jazer na arca de papéis e autos, se um acontecimento imprevisto não viesse dar a seu autor uma esperança de obter a fazenda necessária para a realização de seu grande desejo.
Criara-se em 1588 uma Relação na Bahia; desde que o tribunal começasse a funcionar, o número das demandas aumentaria infalivelmente; no Brasil, terra abundante de ouro e balda de letrados, os provarás e embargos deviam ser pagos por bom preço; um advogado pois que se fosse ali estabelecer tinha todas as probabilidades de adquirir rápida abastança.
Foi esse o raciocínio de Vaz Caminha, e devemos confessar que não pecava contra a lógica; assim embalando-se na ideia risonha de poder realizar o sonho de sua vida, resolveu definitivamente embarcar-se para a cidade do Salvador; deixou algumas economias à irmã que velara sobre sua infância e ainda o acompanhava, e partiu para Lisboa.
Um navio estava a fazer-se de vela, e nele ia um dos desembargadores da nova Relação, Baltasar Ferraz, que encontramos feito provedor-mor da fazenda; o nosso advogado aproveitou o ensejo, e obtendo uma passagem, deixou as terras da pátria, para ir procurar longe os meios de dar-lhe uma prova do seu amor, e de erguer um monumento à sua glória.
Com feliz travessia chegou ele à Bahia, e foi assentar os seus penates, isto é, suas estantes, seus livros, seu telônio, seu manuscrito e a velha Euquéria naquela mesma casinha por detrás da Sé; imediatamente os demandistas recorreram à experiência do novo jurisconsulto, a quem o povo, ignorante das distinções acadêmicas, chamava geralmente — o senhor licenciado.
Vaz Caminha, modesto como era, nenhum caso fez; mas não deixou de lhe causar impressão o caráter especial do foro baiano. O advogado era apenas um conciliador de partes; afora essa tarefa de nada servia; porque os embargos, os agravos e recursos tinham sido substituídos por uma exceção peremptória não consignada no formulário dos praxistas — a adaga ou o arcabuz.
Começavam-se muitos pleitos, porém todos eram decididos extrajudicialmente; os físicos vendiam alguns récipes e os boticários as suas mezinhas; os padres ganhavam frequentes encomendações; mas ao advogado nada rendia esse modo expedito de terminar os processos. Assim Vaz Caminha compreendeu que antes da chegada da Relação nada se podia fazer.
Desde então principiou um hábito que ele ainda conservava na ocasião em que o encontramos; todos os dias ao raiar da alvorada saía de casa, e no seu passeio matutino dirigia-se ao Largo da Sé, de onde se descortinava toda a baía. Ali ficava cerca de uma hora com os olhos engolfados no horizonte a ver se enfim surgia o galeão, em que vinha a desejada Relação.
Ora, esse galeão partira em meado de 1588 de Lisboa, tendo a seu bordo o Governador Francisco Giraldes donatário dos Ilhéus, e os desembargadores nomeados para instalarem o novo tribunal; sucedendo arribar duas vezes, os passageiros tomaram isso como aviso do céu e deixaram-se ficar em Portugal.
Nem mais novas houve da Relação. Vaz Caminha resignou-se e continuou a magra advocacia que pouco mais lhe rendia que em Arraiolos; então lembrando-se de algumas lições de cravo que tomara em sua mocidade, aceitou o lugar de organista da Sé, o que lhe deixava no fim do ano algumas patacas.
A gente que se ocupa da vida alheia chamava-o de avarento; mas ignorava que sublimes sentimentos ocultava aquela restrita economia: não sabia que dos modestos lucros ele mandava dar uma pensão em Portugal à irmã que lhe servira de mãe, e o resto destinava para a publicação de sua obra, o maior serviço que podia prestar ao seu país.
Quando os rapazes que passavam para a escola, vendo-o que se dirigia para o Largo da Sé triste e cabisbaixo, o perseguiam com risos e galhofas gritando — vais? vais, Caminha? — mal pensavam que aquele homem que durante vinte anos, chovesse ou fizesse sol, ia todas as manhãs olhar o mar e o horizonte, não se iludia já com a esperança vã e ridícula de ver chegar o navio que trazia a Relação.
O que o levava lá era a saudade da pátria, a sublime nostalgia do velho que sente o corpo vergar para uma terra, que não é a sua, e em cujo seio talvez descansarão suas cinzas, entre gente estranha, longe do berço; o que ele ia ver não era nem o mar, nem os navios, era sim o horizonte imenso, no fundo do qual os olhos d'alma lhe mostravam o modesto painel de sua aldeia natal.
Que lhe importava que o mundo risse? As dores profundas e grandes se escondem nos refolhos do coração, aí vivem, aí morrem, sem que a compaixão pública as profane; só Deus lhes sabe o segredo, e lhes manda às vezes uma doce consolação na terra, ou lhes guarda um prêmio no céu.
Para o licenciado essa consolação fora um menino.
Três anos depois que chegara à Bahia, em 1590, conheceu Robério Dias, o célebre possuidor do segredo das minas de prata. Corria que voltava da Espanha descontente, porque Filipe II lhe recusara o título de Marquês das Minas, que pedira como prêmio da descoberta, e o nomeara apenas administrador. Viera ele esperar na cidade do Salvador o novo Governador-Geral D. Francisco de Sousa, aproveitando o ensejo para passar algum tempo com sua mulher, de quem andava ausente havia bom par de anos.
Robério sofrera uma grande decepção e era infeliz; não há laço que mais prenda e solde duas almas do que a desgraça; tendo necessidade de consultar o advogado para deixar os seus negócios em boa ordem, achou nele um conselheiro, que breve tornou-se amigo; estabeleceu-se a intimidade, a tal ponto que, partindo para o sertão com o governador, Robério, a quem um pressentimento cerrava o coração, abriu-se completamente com Vaz Caminha e deixou-lhe o cuidado de velar sobre sua mulher e o filho que ela ainda trazia no ventre.
O pequeno Estácio veio a ser um consolo para o legista, a quem a sorte negara o doce sentimento da paternidade; esse menino e sua mãe criaram para o seu coração virgem uma família espiritual, em cujo seio ia esquecer as saudades de sua boa irmã e as lembranças de seu velho Portugal.
Um ano não era decorrido, quando Robério Dias adoeceu e morreu no sertão sem haver revelado o segredo das minas de prata; este fato deixando órfã e ao desamparo aquela criança, ainda ligou-a mais ao licenciado, que sentia necessidade de repartir com uma criatura humana a afeição que votara aos seus queridos alfarrábios.
Cuidar da educação de Estácio foi imenso prazer para ele; ensinou ao menino as humanidades; depois, modesto como era, e desejando dar-lhe uma instrução acabada, entregou-o a mestres de primeira força; na idade de quinze anos o moço começou a frequentar as aulas do Colégio dos Jesuítas, na qual tivera tais adiantamentos, que os padres instavam para que ele entrasse na ordem.
Este projeto porém encontrou séria oposição da parte de Álvaro de Carvalho, que se associara a Vaz Caminha na educação do moço e se incumbira de ensinar-lhe as artes da cavalaria. O velho alcaide sonhava para seu protegido um mais brilhante futuro, que o da roupeta.
Eis como se achavam as coisas no momento em que Estácio, acabando de ler a carta dirigida a sua mãe por D. Diogo de Mariz, dobrava-a tranquilamente sem reparar na alteração de fisionomia e na posição grotesca de Vaz Caminha.
— Podeis dizer-me, mestre, que papel é esse de mor valia, pertencente a meu falecido pai?
O licenciado conseguiu restabelecer-se do abalo que sofrera; atirando-se a Estácio, arrancou-lhe das mãos o papel e leu-o de novo, enquanto o moço olhava-o admirado da singular excitação que pela primeira vez quebrava a pausada e fria gravidade do advogado.
Quando acabou de ler, segurando o papel nos dedos trêmulos, voltou-se para o estudante:
— Não sabeis a história de vosso pai?
— Sei dela o que me tem ensinado a tradição popular; contam que meu pai conhecia o segredo de grandes minas de prata, que recusou descobrir por lhe haver El-Rei negado a recompensa que pedia.
— A tradição mente, filho; Robério era incapaz de uma tal vilania; depois de haver prometido cumpria.
— Mas então por que ainda hoje é desconhecido o segredo?
— Ouvide, filho; o que vou referir-vos foi dito há dezenove anos por Dias na véspera de partir-se para o sertão, de onde um pressentimento lhe advertia que não devia voltar; desde então ficou sepultado em mim, e só agora sai de meus lábios para vossa alma. Assim, é como se vosso pai vos falasse do seu túmulo.