Deu uma hora da tarde.
Na vasta sala da biblioteca, pouco antes deserta, andava um frade, que percorria o aposento a passos vagarosos, com o movimento automático e maquinal do homem absorvido em funda meditação.
Às vezes parava em face do quadro de Santo Inácio de Loiola; erigia então a alta estatura, fitava no retrato o olhar ardente, e rastreando na tela as linhas das feições nobres e expressivas, trocava com a imagem inanimada um sorriso de orgulho.
Quem o observasse nesse momento, compreenderia o que passava em sua alma.
Aquela fronte larga e proeminente, cobrindo como uma abóbada de mármore os olhos fundos, onde a pupila negra brilhava na sombra com reflexos de um fogo vulcânico nas trevas da noite; o oval do rosto que terminava na ponta de uma barba saliente, o nariz aquilino, as faces longas, a boca fina e cerrada; todos esses traços enérgicos pareciam cinzelados pelo molde do busto, que o artista havia desenhado no quadro suspenso em um dos panos da biblioteca.
Era tal a semelhança, que à primeira vista se julgaria que o vulto do fundador da Ordem de Jesus destacara da moldura, e encarnando-se, passeava pela sala deserta, a revolver na mente os destinos futuros da poderosa criação de seu espírito, esse apostolado que devia conduzir a humanidade dos umbrais da Idade Média ao pórtico da civilização moderna.
Mas passada essa primeira ilusão, conhecia-se que entre aqueles dois homens, o que revivia no quadro e o que contemplava, havia mais de um século: separava-os o túmulo de duas gerações; um nascera com a descoberta do Novo Mundo, em 1491; o outro apenas contava trinta anos de idade.
Não era portanto um retrato em face do original, como a princípio parecia; era sim uma recordação, um tipo conservado pelo artista, que a natureza por uma misteriosa coincidência caprichara em reproduzir, e que talvez o artifício inspirado por oculto pensamento tratara de aperfeiçoar.
Depois de rever-se um momento naquela imagem, como em um espelho moral, onde se reproduziam as suas ideias, o frade continuava seu passeio, perlongando o aposento.
Então já não era o mesmo homem; o talhe acurvava-se; a cabeça inclinando obscurecia os traços da fisionomia; os olhos afundavam quase ocultos pelo cenho carregado; as faces se contraíam, e a boca ainda mais cerrada, repuxando os músculos faciais, abria rugas precoces naquele rosto que antes parecia expandir-se em toda a robustez da idade.
Nessa ocasião representava mais dez anos; era quase um velho, gasto pelas vigílias e macerações de uma prática ascética, arrastando com o passo já meio trêmulo uma existência atribulada, expiando talvez no jejum e penitência os erros da mocidade desregrada.
Qual dos dois homens era o verdadeiro? Qual das duas fisionomias era a máscara que disfarçava a outra?
A mocidade não se finge; o fogo do sangue, que borbulha nas veias e ferve no coração, depois que os anos o gelam, não há mais aquecê-lo; essa expansão da vida no momento de sua florescência, uma vez passada, nada a faz voltar.
Se pois havia máscara na fisionomia desse homem, era a velhice prematura, que desaparecia quando o espírito distraído por algum pensamento grave esquecia a matéria que ele escravizava, deixando o corpo, livre da pressão, reivindicar sua atividade e desenvolver-se de repente com o impulso da vigorosa constituição.
Havia apenas três horas que o P. Gusmão de Molina desembarcara e achava-se no convento; ninguém sabia ao certo o que o trazia ao Brasil e quem o enviava; mas era natural que tocado do mesmo fervor de Nóbrega e Anchieta, viesse apostolar entre os selvagens e plantar a cruz nos desertos, cingindo-a com as palmas do martírio.
Assim pensavam todos e o mesmo provincial, a quem o recém-chegado nada comunicara a respeito de sua viagem: apenas no momento de beijar-lhe a mão, dera-lhe o toque simbólico do grau de professo, e tanto bastou para que o superior não lhe dirigisse uma só pergunta e o acolhesse como filho da casa.
Rodeado pela comunidade que estava ansiosa por saber notícias da Europa, Molina satisfez a todos e ao mesmo tempo informou-se do estado das coisas no Brasil; daí a uma hora ficou ao corrente das questões importantes da Ordem, na Bahia; não porque lhe houvessem os padres revelado segredos que ignoravam, mas porque a sua perspicácia lera a verdade nas notícias vagas que lhe ministravam.
Quando a sineta do refeitório tocou, o recém-chegado, que desejava estar só, mandara pedir dispensa ao provincial; e depois de tomar na cela uma açorda confortante e um cálice de vinho de relego, dirigiu-se à biblioteca então completamente deserta.
Aí, seu primeiro cuidado foi passar um exame minucioso nos papéis que os padres haviam deixado sobre a mesa na ocasião de irem à refeição; leu um trecho ou uma página de cada um destes trabalhos, e fez o seu juízo a respeito da capacidade de seus autores; pela escolha das matérias deduziu observações que deviam servir-lhe para conhecer o caráter daqueles homens.
Depois de ter assim interrogado esses objetos e lido em seu aspecto tudo que eles exprimiam, como pouco antes havia lido no espírito dos frades, Molina deixou-se levar pelos pensamentos que de tropel lhe assaltavam o espírito e o transportavam a outras regiões.
É nessa ocasião que o encontramos medindo a passos lentos a sala da livraria, até que a comunidade voltando da refeição o veio interromper em suas elucubrações.
Fernão Cardim e Vaz Caminha entraram em último lugar. O provincial tinha o rosto ainda mais prazenteiro e o gesto ainda mais vivo e animado. O licenciado conservava o sério imperturbável que nunca o abandonou; a ventura lhe negara uma das expressões características da fisionomia humana; seu lábio não sabia sorrir.
Atravessando a sala os dois encontraram-se com o P. Gusmão de Molina, que continuava seu passeio:
— V. Paternidade já repousou dos incômodos da travessia? perguntou Fernão Cardim.
— Quanto basta para cumprir as ordens de V. Reverência, disse Molina com humildade.
— As ordens do nosso Instituto, P. Molina, replicou Fernão Cardim. Mas para isso ainda é cedo; mal chegastes, e ninguém conheceis na cidade do Salvador.
— É verdade; ninguém que eu saiba.
— Pois quero que vosso primeiro conhecimento seja o melhor. Aqui está o Doutor Vaz Caminha, principal advogado da terra, homem de boas letras e melhores virtudes, com quem gostareis de praticar.
O frade e o licenciado cortejaram-se cerimoniosamente.
— Agradeço a V. Reverência o favor que me depara; porém receio que pessoa de tanto saber não se desagrade da companhia de um pobre servo de Deus, ignorante nas coisas que deleitam o espírito.
— V. Paternidade bem sabe, respondeu mansamente o doutor, que as aves de altanaria antes de erguer o voo rastejam com o chão para desentorpecerem as asas; aos homens de grande engenho sucede o mesmo, descem muito para subirem mais.
O frade lançou um olhar rápido sobre o velhinho. Adivinhou ele que essa crosta rude e grosseira cobria delicada polpa e um espírito elevado?
O provincial tinha-se afastado alguns passos para inspecionar o serviço de um donato que preparava o jogo de xadrez, colocado junto à janela sobre um bufete; vendo todas as peças enfileiradas em seu lugar, voltara-se para o licenciado.
— Não façamos esperar aos reis, doutor! disse Fernão Cardim apontando para as figurinhas chinesas e sorrindo de seu trocadilho.
— Não sou capaz de tal descortesia; aqui me tendes.
Fazendo uma reverência ao P. Gusmão, o licenciado foi tomar o seu lugar à direita do bufete e defronte do provincial; este esquecendo o mundo concentrava sua atenção no tabuleiro, cujas casas pretas e brancas se lhe afiguravam posições estratégicas de dois exércitos inimigos no começo de uma grande batalha.
— Toca-vos a mão, Vaz Caminha, disse o provincial depois de tirar a sorte.
— É justo, replicou o letrado; aqui são os peões que primeiro saem.
E dizendo isto empurrou um trebelho, que fez o jesuíta erguer a cabeça e olhá-lo espantado.
— Que é isto, doutor! Jogais o peão do roque?
— Omnis variatio delectat, padre provincial. Quero experimentar jogo novo.
— Não creio que vos deis bem com a lembrança.
— A experiência mostrará.
Fernão Cardim desconcertado em seus planos com a saída do parceiro, levou o anelar à testa e refletiu profundamente no lance, até que ao cabo de cinco minutos resolveu-se a fazer a primeira jogada.
A biblioteca a pouco e pouco ficara deserta; os padres acabando o trabalho, desciam à cerca do convento, e aí à sombra das árvores prosseguiam na leitura de alguma obra; outros saíam ao cumprimento de seus deveres religiosos e apesar de ser o dia de festa iam, como confessores que eram de diversas casas, à cura das almas.
Entretanto a partida de xadrez se travara; o provincial completamente absorvido não dava fé de coisa alguma; porém Vaz Caminha dividia a atenção entre o jogo e os importantes acontecimentos daquela manhã, que vieram perturbar a calma e doce monotonia de sua existência.
Não lhe saía da memória a carta que Estácio lhe mostrara; quanto mais refletia, maior vulto tomava a suspeita de que as últimas novidades políticas do reino tivessem alguma conexão com o destino de seu pupilo. A estas preocupações vinha ligar-se a lembrança do misterioso emprazamento daquela dama desconhecida que dizia precisar do seu conselho.
Também não deixava de impressioná-lo a presença do jesuíta recém-chegado, que continuava a passear de um canto a outro da sala.
O ar de excessiva humildade do P. Molina não o tinha iludido; adivinhara que sob aquela aparência enganadora se escondia o superior, o qual não tardaria a revelar-se.
Nisto o jesuíta aproximou-se do bufete e esteve alguns instantes a contemplar o jogo, que se complicara em suas variadas evoluções. Segurava então o provincial uma das peças, e assentando-a de chapa na próxima casa exclamou com ar de triunfo:
— Xaque ao rei!
O licenciado era um hábil jogador; com um volver d'olhos apreciava a posição do parceiro, e opunha uma defesa invencível, ou preparava um ataque decisivo; descobria todas as manhãs do adversário e previa os mais bem combinados lances.
Ele tinha porém estudado o parceiro e conhecido seu fraco; por isso como homem que sabia viver, perdia sempre, e sacrificava a gloríola de jogador de xadrez à vantagem real e positiva de conservar um amigo, que lhe podia servir de muito em caso de necessidade.
Assim quando o provincial, pensando que ia ganhar a partida, soltou o primeiro grito de triunfo, já o seu parceiro, que desejava ainda por algum tempo disputar a vitória, tinha prevenido o ataque e inutilizado todo o plano, cobrindo o rei com um cavalo.
— Ah! tínheis esse cavaleiro à mão! disse Fernão Cardim desconcertado.
— Se V. Reverendíssima em vez de xaquear de longe aproximasse sua dama do rei, não sucederia isso, disse o P. Molina, em tom condoído; e na segunda jogada daria mate.
O provincial mordeu os beiços de despeito:
— Não sabia que V. Paternidade era forte no xadrez.
— Pouco entendo deste, como de outros jogos.
— Entretanto tem avisos prudentes que não são de principiante, mas de mestre.
P. Gusmão sorriu:
— Tais avisos não os aprendi nesse tabuleiro de sessenta e quatro casas, porém em outro maior a que chamam o mundo, padre provincial. Se eu quisesse atacar um governador, digo, um rei, não o ameaçaria de longe para que ele se prevenisse; aproximar-me-ia ao contrário para conhecer-lhe o fraco, e dar mais certeiro o golpe.
O licenciado volveu a furto os olhinhos para o frade e admirou a expressão de energia que realçava a inteligente fisionomia; o provincial embebido em novos cálculos não deu atenção ao incidente.
Ouviu-se no Terreiro a música das charamelas, adufes e pífaros em concerto com o vozear alegre da multidão.
O P. Molina dirigiu-se a uma das janelas que abria sobre a praça; por entre as rótulas pretas enfiou o olhar rápido e incisivo do homem observador.
Entretanto os dois enxadristas continuavam impassíveis. O convento poderia tombar sobre suas cabeças, que o estrondo da queda não perturbaria o provincial na elucubração profunda do xaque-mate, e o paciente doutor no quilo do jantar e das ideias que ruminava desde a sua chegada.
Si fractus illabatur orbis,
Impavidum ferient ruinae.