O ramo de louro, antes graveto de tão seco e preto que era já, suspenso à porta, indicava a taberna do Brás.

As vendas, que ainda hoje se encontram, viajando-se as províncias do sul, dão boa amostra do que era ela. O principal repartimento consistia numa espécie de varanda em quadra, primitivamente aberta e agora fechada com tabiques. Fazia as vezes de balcão uma janela bastante larga e rasgada na parede do fundo; ali repimpava-se o judengo no seu trono báquico, feito de um tonel, através de uma cortina de botelhas, almotolias e canjirões.

Sobre a tez vetusta e denegrida que geralmente apresentavam todos esses objetos desde o edifício até a frasca, espontava aqui e ali um ou outro ponto que tinha ar de frescura e novidade. Eram melhorias introduzidas por mestre Brás depois de sua viagem ao reino.

De ordinário só havia na varanda uma grande mesa esquinada, posta no centro e ao comprido; naquela noite porém, como essa não bastasse para a gente da festa, mestre Brás, sempre fértil em recursos, engendrara modos de satisfazer a sua numerosa freguesia. Uma tábua passada da janela a um cavalete, e barris ou quartolas voltados de borco, faziam bom suplemento de mesas, estreitas sim, mas suficientes para o pratel e a malga.

O popular enchia a taberna, e o fluxo e refluxo dos que entravam e saíam agitava a multidão. Um caboclinho de doze anos de idade acudia aos fregueses e ia de um a outro canto, já saltando por cima das mesas com uma agilidade de saltimbanco, já mergulhando como um peixe por entre as gâmbias dos bebedores. Havia na fisionomia desse menino, como em toda a sua compleição, ares de tristeza e abatimento. Na ligeireza de seus movimentos não aparecia a vivacidade alegre própria da infância, mas um certo movimento ríspido e frio como o de um autômato.

Era Martim, o bicho da taberna, e já nosso conhecido.

Mestre Brás, de costume sempre alerta aos menores gestos dos fregueses, estava nessa noite preso de uma preocupação qualquer. Bem profunda e grave devia de ser ela; o giz esquecido na mão inerte já não marcava na folha carunchosa da janela o rol da despesa feita por cada freguês; e coisa ainda mais estupenda, a paga escorregava pelos dedos frouxos, sem o infalível contado e recontado. Se a gente que ali estava a beber e vozear tivesse tempo de reparar nestes sintomas assustadores, acreditara por seguro que o demo dera volta ao miolo do taberneiro.

Afinal, depois de bom esperar, os olhinhos pardos que o judengo tinha pregados na porta, fisgaram-se como dois croques em um sujeito que entrava. O recém-chegado trazia com efeito uma cara de caso. Era homem da plebe, de má catadura e piores obras; parara na penumbra da parte de fora, e apenas viu enfiar-se pelo seu o olhar interrogador e assustado de mestre Brás, levantou a mão direita à altura da face, cerrando-a logo após com o gesto de quem fecha alguma coisa na palma.

O taberneiro pulou no fundo da quartola que lhe servia de tamborete, como se fosse de borracha. Alongou o pescoço por entre os garrafões, e os beiços moveram-se mudamente como soletrando, sem pronunciá-la, uma palavra:

— Filado?...

O sujeito parece que traduziu a palavra pelo simples movimento labial, pois a confirmou com uma flexão de cabeça; e ao mesmo tempo designou com um olhar a Praça do Palácio. Mestre Brás bufou de raiva, armando um murro ao demo; o caboclinho que se achegava na ocasião o recebeu em cheio no estômago e revirou de cambalhota, sem força de soltar um gemido.

— Toma, enguiço de Belzebu, é para o teu tabaco!... Já!... Salta daí! berrou o judengo atirando à criança um pontapé; vai dizer àquele tiro de azêmolas... àquele que ali está restolhando dês trindades, que se ponha ao vento!... Basta de beberrico! A freguesia está farta e refarta de esperar! Deixem a malga aos outros, que também a querem!

— Bem falado, mestre Brás! exclamaram alguns fregueses que estavam de pé.

— É mesmo! acudiram outros. A cada qual sua vez.

Os quatro latagões da camarada, que o taberneiro em sua linguagem pitoresca chamara de tiro de azêmolas, levantaram a orelha; mas ao avesso do que se devera esperar de gente de tal laia, foram de manso desocupando a mesa a que estavam agarrados desde o começo da noite, e esgueirando-se pela porta. No momento em que se aproximaram do balcão, fingindo pagar o escote ao taberneiro, este disse-lhes rápido e em voz quase imperceptível:

— Fila d'Anselmo!... Ide sem detença!

O sujeito do sinal parece que só esperava pela camarada, pois foi-se com ela. Ao sair cochicharam os cinco entre si, e logo separaram-se em direções opostas por entre os grupos de festeiros e populares. Com pouco o murmúrio, que plaina sempre sobre a multidão como o zumbir das colmeias, se fora elevando; vozes soltas soaram mais alto; o popular fervilhou; um primeiro indivíduo correu para a extremidade da rua; depois segundo, logo terceiro; e afinal a turbamulta precipitou-se em cheio.

De envolta com o estrupido dos pés ouvia-se um vozear múltiplo e confuso que parecia dizer:

— Briga na Praça outra vez!...

A onda de povo, que alastrara pelas ruas adjacentes logo depois da briga de Tiburcino com Anselmo, condensando-se agora, de novo refluía compelida pela curiosidade de assistir a outro espetáculo. Quando ela desembocava na praça, ainda se notava um cordão de gente desdobrando-se para o lado oriental, onde se erguia o edifício do Senado da Câmara com a cadeia do conselho. Eram os quadrilheiros que conduziam o Anselmo quase de rastos, e esforçavam havia bom quarto de hora para atravessar o pequeno espaço que medeava entre o lugar da briga e a porta da cadeia. Mas os dignos alguazis da Câmara, além de bisonhos no ofício, tinham de lutar com os repelões do robusto rapaz e com a resistência da turba de curiosos aglomerada na passagem.

Os que formavam a cabeça da serpente popular, e não eram outros senão os cinco homens do Brás, em vez de correr direito ao ajuntamento, resvalaram rente com as casas, de modo a passarem entre a cadeia e os quadrilheiros. A turba coleou e, como eles tinham previsto, veio bater de frente contra o outro grupo, enovelando-se com ele. Houve grande confusão; ouviram-se alguns clamores; e quando a multidão rareou e a ordem se restabeleceu, o Anselmo havia desaparecido.

Mestre Brás ignorava ainda o sucedido, no momento em que o Doutor Vaz Caminha e seu companheiro entravam na taverna; por isso não se há de estranhar que deixasse de festejar, como costumava, a boa-vinda à sua casa de pessoas tão conspícuas. Com efeito o taberneiro cada vez mais preocupado saíra do balcão para vir recostar-se à janela; e aí, todo ouvido e todo olhar para a rua, nem sequer vira entrar o advogado.

Bartolomeu porém, que não desempenhava debalde, e com tanta bizarria, o ofício de mestre de cerimônias, chamou o judengo aos seus deveres de cortesia e hospedagem, do modo o mais expedito. Lobrigando no vão da janela a figura meã do taberneiro que lhe voltava as costas, o cantor estendeu o braço, espalmando a larga manopla sobre a cabeça do mísero, que pensou lhe desabara o teto da casa. Então apertando-lhe o crânio entre o polegar e o índex, e torcendo-o pouco mais ou menos como uma cravelha de rabecão, trouxe-o assim à presença do paciente advogado, que modestamente esperava à porta.

— Não vedes o senhor licenciado que vos faz a honra de entrar em vossa pocilga, mestre cão?

— Deixai! Deixai, amigo Bartolomeu!

— O senhor licenciado!... Mas por Deus que o não tinha visto!... Meu melhor freguês! Bem fizestes de mo advertir, mestre Bartolomeu... Senhor Bartolomeu Pires... Esta minha cabeça... Também é uma algazarra...

Isto dizia o taberneiro desfazendo-se em zumbaias à direita e à esquerda, e encolhendo-se o mais que podia, a ver se fazia-se tão baixo que o não alcançasse segunda vez a formidável manopla do mestre de capela.

— Bom! bom!... Não nos azoineis com o vosso falsete! Segui adiante, e trazei-nos do melhor, que é o senhor licenciado quem bebe, e eu quem paga. Ouvides!

O advogado quis contestar.

— Então, homem! gritou o cantor com a sua mais cheia voz de baixo profundo. Ainda me estais aí feito um estafermo?... Presto!... Em três tempos!

Bartolomeu levantou dois dedos sós para bater o compasso ternário. O Brás eclipsou-se como um relâmpago, e voltou logo com uma candeia na mão direita, pichéis na esquerda e duas botelhas sobraçadas. Abrindo a porta do corredor guiou os dois fregueses a um camarim reservado para as pessoas de condição que não gostassem de se misturar com a gentalha. O taberneiro deitou sobre a mesa as garrafas e os pichéis, feito o que desapareceu pela porta em três profundas reverências.

A espessa crosta de pó e as grossas teias de aranhas de que estavam cobertas as duas garrafas, atestavam sua respeitável idade. Quando mestre Bartolomeu Pires, com a delicadeza e antegosto de exímio bebedor que era, limpava docemente o gargalo para sacar a rolha, o advogado suspirou e esteve algum tempo embevecido a olhar a poeira que se dissipava no ar; alguma porção lhe caiu na manga da garnacha, que o estremeceu com íntimo e recôndito sentimento.

A botelha viera de seu velho Portugal; quem sabia se aquele pó não era ainda da terra natal!

— É do superior! dizia entretanto o mestre de capela dando na língua o estalo clássico. Tão boa tivesse o excomungado do taberneiro a alma, como tem a adega!

O advogado tomou uma prova no pichel:

— Ótimo! disse ele, e melhor ainda mestre Bartolomeu, porque vem do nosso Minho!

— É verdade, senhor licenciado! Se tornaremos lá ainda?

— A mim espero que praza a Deus deixar que me vá restituir o pó destes ossos à terra de que foram amassados; mas a vós bem difícil me parece que lá torneis já agora.

— Por que então, Senhor Vaz Caminha! Cuidais que me não apertem a mim também as lembranças?...

— Oh! que não!... Alma sã e reta vos sei eu, amigo; e nas almas assim a pátria vive sempre presente, ainda que apartado o corpo. Porém esta também é já pátria vossa, por sê-lo de vossa mulher e filhos. Pensais que sejam laços esses para romperem-se?

— Se todos iremos!...

— Eles... E os parentes e a gente deles, e a terra em que nasceram, também irão convosco?... Levareis uns pedaços do coração, mestre Bartolomeu; outros cá ficarão, como nos ficaram a nós lá dalém mar.

— Mas quando falo de ir, não crede que seja por uma feita, não. É negócio de matar saudade e tornar.

O doutor um instante absorvido em suas recordações, reatou logo a conversa, já menos enternecido.

— E vosso ofício? E vosso estabelecimento da ilha? Haveis de sacrificar a um sentimento outro não menos sagrado? Porque desejais como bom filho rever o nosso Portugal, esquecereis como pai a herança de vossa família?

Mestre Bartolomeu era dono da Ilha da Maré; e Gabriel Soares que o conhecera vinte e dois anos antes, deixou notícia dele e de seu engenho.

— Tendes sobras de razão. Mas supondo que já por esse tempo tenha a gente posto de parte algum cabedal, que direis então?

— Se contais com isso, é outro o caso. Ao que parece as pescarias vos têm ido de feição?

— Assim, assim! Sempre deixam alguns reais!

— E quem dirá, que vivendo nesta terra há cerca de vinte anos, ainda não vi a vossa ilha, mestre Bartolomeu!

— Porque não haveis querido. Tantas vezes pedi já debalde, que afinal desenganei. Ainda por São João, que passou.

— É certo; vezes que não têm conta; bem sabeis porém quanto custa na minha idade estar um dia fora de casa. Demais, nunca fui amigo de andar sobre a água.

— Falta-vos o costume. Se uma vez vos dispusésseis, veríeis que é mais cômodo do que andar na terra firme. E tão perto que é! Da ribeira lá com bom vento não gasto eu tanto como numa caminhada a Vitória.

— E tendes vós embarcações seguras em que a gente se possa fiar?

— Que dúvida! Os meus barcos de pescaria. Ninguém os tem melhores.

— Contudo, se o mar estiver agitado?

— Que tem?

— Não haverá perigo?

— Nenhum, vos afianço eu! Ainda que o tempo seja de borrasca, podeis aí estar tão sossegado como em vossa casa.

— Verdade é, dizia Vaz Caminha, que tenho ouvido andarem batelões muitas léguas pelo mar alto, e mesmo virem a este porto alguns de Pernambuco. Mas não anda aí exageração?

— Pois se estão chegando todos os dias de Porto Seguro e Alagoas! E como são esses? Podres e abertos que é um milagre não irem ao fundo.

— Os vossos são fortes?

— Os meus?... São de tapinhoã; e concerto-os cada ano que Deus dá!

— Visto que me segurais a viagem, quero desobrigar-me para convosco de tão repetidas instâncias, aceitando um dia a vossa hospedagem.

O mestre de capela cheio dos vapores do vinho e do júbilo que acendera a promessa do advogado, desandou na porta que lhe ficava ao alcance do longo braço, uma tremenda palmada, que serviu de acompanhamento ao nome do taberneiro solfejado nas sete notas da clave.

— Mais duas!... gritou o cantor apenas sentiu no corredor os passos do taberneiro.

Brás apareceu instantes depois com duas botelhas, como as primeiras, encanecidas pelo pó. Enchendo os dois pichéis do generoso vinho, mestre Bartolomeu alçou a mão com a solenidade das grandes festas da Sé, e saudou o advogado:

— À satisfação da vossa tão esperada e mais desejada visita, Doutor Vaz Caminha!

— Ao hospedeiro amigo! tornou o bom velhinho com sincera expansão.

— Só peço a Deus que cedo nos mande o dia abençoado! acrescentou Pires deitando sobre a mesa o pichel completamente enxuto.

— Breve será. E mais, dizei: quando pretendeis lá ir?

— Domingo, depois da missa.

— Bem pode ser que me tenhais de companhia. Não é certo ainda... Havemos de concertar até lá.

O advogado, começando a prática sob a impressão do momento, a dirigira com a agudeza dos engenhos superiores ao fim que tinha em mira quando convidara o mestre de capela para, de companhia, esvaziarem uma botelha de vinho. De onde provinha o súbito interesse do doutor pela Ilha da Maré, e pelos batelões e pescarias de Bartolomeu Pires, não sei eu. É de crer que ele tivesse suas razões e das melhores, pois era homem que sabia pesar as coisas; mas tão matreiro, que fora difícil ao mais esperto penetrar-lhe as intenções.

Os velhos amigos continuaram a prática, que se prolongou pela noite adiante. Enquanto eles assim discursavam de vários assuntos, outros incidentes ocorreram na taberna.

Voltando de servir o advogado e o mestre de capela, viu Brás postado na porta o mesmo sujeito que pouco antes lhe trouxera a notícia da prisão de Anselmo; mais longe, na rua, apareciam os vultos dos quatro da camarada, tão bruscamente enxotada da taberna. O judengo, do primeiro lanço d'olhos leu boa nova naquela cara espalmada de riso e satisfação. À interrogação muda da fisionomia do taberneiro respondeu o sujeito olhando para o teto.

A casa do judengo tinha uma trapeira, e ele sabia que bons serviços pode prestar essa espécie de porta escusa, aberta sobre os telhados vizinhos. Escapando-se pelo interior, foi abrir a janelinha ao Anselmo, que usurpava essa noite o domínio dos gatos.

— Sempre vos meteis em boas!... disse o taberneiro, a modo de consolação. Até que um dia vos leve o demo à breca.

— Deixai-me cá!... tornou o outro carrancudo. Cada qual tem seu embeleco; e o meu é aquela maldita rapariga!...

— Ah! o caso é esse?... Cuidei mais sério! E perder-se uma noite como esta que veio mesmo ao pintar!... Podia já estar o negócio adiantado...

— Não digo que não; mas ainda se pode remediar.

— Pode, pode, se não houver detença. Aí tendes com que matar a sede e forrar o estômago. Aviai e a caminho! O negro deve estar mais que farto de esperar.

Anselmo estava soturno, lembrando o que lhe acontecera; tinha poucas palavras e nenhuma fome. Virou a malga de vinho, e tomando a um canto o arcabuz de mestre Brás e um punhal, disse:

— Dai aviso aos outros; por mim estou aviado.

— Onde achais que vos esperem?

— No adro de Santa Luzia.

O mariola sumiu-se de novo pela trapeira, e ganhando os telhados até o fim do quarteirão, saltou na rua, escura e deserta nessa passagem; depois dando uma grande volta por detrás da Câmara, foi sair em Santa Luzia.

O judengo desceu à varanda.

Na sua ausência o caboclinho, acudindo afinal aos repetidos sinais que lhe fazia Gil desde a chegada, correu à janela. Ligava essas duas crianças um sentimento, que era gratidão da parte do índio e dó da parte do pajem.

— Que tens tu hoje, Martim, que me torces as ventas quando te chamo? E com que má cara estás! Foi mau-olhado que te deitou a bruxa da velha Eufrásia, aquela arrenegada?...

— Mau-olhado!... mau-olhado!... murmurou o índio. Se o fora!... Bom esmurrar!

— Esmurrou-te?... Ele, o cão do judengo, o focinho de caititu?

— Agora mesmo... Quase me desancou... Tenho todo o corpo moído de pancada... E queres que traga cara de riso, Gil?...

Os meninos ficaram a olhar em silêncio um para o outro. Nisso o taberneiro chegando à porta bispou Martim, e caindo sobre ele como ave de rapina, fisgou-lhe a orelha. Lá foi o pobrezinho de rastros, batendo por bancos e mesas, até o balcão onde o judengo o arremessou como um fardo.

Gil sacara do punhal; saltou na ombreira da janela para correr sus ao taberneiro; o menino ia cego de ira; ninguém sabe o que seria do Brás, se um dos companheiros do Anselmo que viu o movimento do pajem, não lhe obstasse o intento.

— Que é isso agora?... Franguinho já de esporão!... Salta, pirralho!

O sujeito que proferira estas palavras tentou agarrar o braço de Gil, mas este correu-lhe a punhalada tão rápido que ainda arranhou-lhe a mão apesar da ligeireza com que fugira.

— Encolha a munheca, sô barbaças! disse o petulante menino, engrilando o franzino talhe.

Naturalmente o barbaças ia retorquir-lhe a fineza com alguma punhada ou tapa, quando chamado pelos companheiros reuniu-se a eles e seguiram os cinco rua abaixo. Durante a briga de Gil, o taberneiro havia segredado ao ouvido do espia o que fora combinado com o Anselmo na trapeira. Os cinco da camarada iam pois encontrar-se com o carpinteiro no adro de Santa Luzia.

Depois que partiram, mestre Brás mais sossegado e já prazenteiro, voltou ao estado normal, à sua consciência de taberneiro. Cada grupo de fregueses mereceu um sorriso e uma reverência aferida pela soma provável de escote. O giz começou de trabalhar com a costumada presteza e segurança; e os olhinhos vivos e pequeninos, saltando de mesa em mesa, não viram mais senão as escudelas e pichéis que se esvaziavam, e as bocas que se enchiam.

Estava escrito porém que essa noite seria de tributações também para mestre Brás. Outro susto ainda rapou ele, embora passageiro. Foi o caso que mal começou de ser tangido o sino de recolher, assomou na entrada da taberna o negro Lucas. Brás supunha-o àquela hora bem longe daí com o Anselmo e os outros; a inesperada aparição o fez estremecer, pensando que estivesse o caldo entornado. Entretanto o africano, com a calma bruta que lhe era habitual, passeou o olhar pela varanda, e não vendo o que buscava, endireitou para o balcão.

— Que houve? perguntou rápido o taberneiro.

— Nada!

— A que vieste então?

— À festa!... respondeu o negro, cuja face achatou-se com um riso largo.

O judengo teve ímpetos de quebrar uma garrafa na cabeça do negro; mas era homem de suma prudência; reprimiu esse inconsiderado movimento, e consolou-se em coçar a orelha, à maneira de gato; com a diferença de que o gato coça a orelha de satisfeito, mestre Brás coçava de arrenegado. Lucas deu-lhe as costas e foi sentar-se no poial da janela onde chupitou a golo e golo um martelinho de aguardente.

Por esse tempo ressonava de bruços sobre a mesa mestre Bartolomeu Pires, com um ronco de prima de rabecão. Vítimas desse beático sono, jaziam atiradas ao canto as quatro garrafas cujo líquido, com exceção de um pichel que bebera o advogado, passara todo pela musical laringe do mestre de capela ao seu vasto estômago.

Vaz Caminha, do outro lado da mesa, com o cotovelo fincado na perna e o queixo apoiado no polegar da mão esquerda, resumia mentalmente os acontecimentos daquele dia e as longas e laboriosas meditações que eles haviam sugerido ao seu espírito.

Havia muito já que o sino emudecera, deixando nos ares a longa e triste vibração do bronze, que trespassou como um gemido plangente o festivo burburinho da praça. Lembrando-se do emprazamento que tomara pela manhã e que tivera todo o dia presente à memória, o advogado ergueu-se afinal e seguiu ao longo do corredor. Saído à varanda lobrigou o negro que tinha nele cravado o olhar acerado. Vaz Caminha depois de pagar a escote e encomendar o digno mestre de capela aos cuidados do taberneiro, ganhou a rua. Lucas desaparecera; mas o doutor viu-o a alguns passos de distância, que o esperava para servir-lhe de guia.

Ia tomar naquela direção quando Gil, que os espreitava do vão de uma porta fronteira, saiu-lhe ao encontro. O doutor o havia esquecido; habituado a andar sem acostado ou servo, não sentira a falta do menino, e nem lhe ocorrera durante a noite a ordem que Estácio dera a seu pajem.

O primeiro pensamento do doutor, vendo-o, foi que estava sem cear a hora tão adiantada, e culpou-se a si daquela crueldade.

— Ainda estais aqui, Gil?

— Se foi a ordem do Senhor Estácio!

— Tendes razão, rapaz; cumpristes com o que vos mandaram, não eu com o que devia. Vinde cá, mestre Brás vos dará a ceia; depois ide à casa recolher. Não hei precisão de vós.

— Com perdão de V.M., senhor licenciado, livre-me Deus de tocar coisa de comer e beber em que este excomungado taberneiro pôs o gadanho. Quanto ele vende é mal agourado, e não me mataria a fome a mim.

— É que a fome não é grande, filho; senão faríeis como os outros. Visto isto, já ceastes?

— Se vos digo que não! Mas não vos dê cuidado, que eu tenho aqui quanto basta para não dormir pagão.

E o menino mostrou uma naca de pão que trazia no bolso, e na qual havia dado uma ou duas dentadas. O licenciado tranquilo por este lado, bem que admirado da sobriedade do menino, que preferia aos guisados e covilhetes de mestre Brás a pada seca e dura, continuou seu caminho. Lucas, seguia adiante guardando a mesma distância.

Dirigiram-se até a extrema sul da cidade, então

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conhecida por porta de São Bento, em memória das antigas muralhas erguidas por Tomé de Sousa.