Sete anos esteve o P. Molina residindo nos colégios de São Sebastião e São Vicente; e ao cabo deles recolheu à sua província de Portugal, onde se ia preparar para receber o quarto e último grau da ordem.
Embarcara no galeão Rosário, navio de licença, que partiu do Rio de Janeiro por fins de 1607, em demanda do porto de Lisboa. Tendo feito escala por Pernambuco, bordejava na altura da Assunção, às baforadas de uma fresca brisa que salteava a cada instante de um a outro ponto do quadrante.
Era noite escura e alta.
O frade, que estivera praticando no tombadilho com o comandante do galeão, agora absorto em cogitações largas, sentara-se em um rolo de calabre contra a amurada. Correu o tempo; entrara há pedaço o quarto da modorra. Ninguém mais, à exceção do jesuíta, havia àquela hora adiantada sobre o convés de popa.
Entre o coaxar das ondas batendo os flancos do navio e os estalos da armação, ouvia-se por momentos, trazido pela brisa, um murmúrio de vozes abafadas, que vinha de estibordo. Na posição do P. Molina, a sota-vento, as palavras embora proferidas em tom soturno, deveriam chegar bem perceptíveis; não as escutava ele porém, tão alheio estava de si naquele instante.
Uma exclamação mais viva perturbou porventura as cogitações do religioso, que aplicou o ouvido e conhecendo donde partia o murmúrio das vozes, aproximou-se manso e manso, tomado de alguma curiosidade, porém mais do desejo de qualquer preocupação que o arrancasse ao turbilhão de seus íntimos pensamentos.
Junto do mastro grande, no espaço deixado entre uns caixões servindo de galinheiros e gaiolas de animais, estavam sentados quatro sujeitos, apostados a quem esvaziara mais depressa uma grande escudela cogulada de chanfana e uma meia dúzia de botelhas, que surdiam dentre os massames de corda na ocasião precisa, e lá sumiam-se de novo depois de larga libação. Era essa uma medida de prudência para o caso de surpresa.
O acaso, o mais engenhoso dos fabricadores de dramas, juntara ali, na tolda de um navio perdido na imensidade do oceano, esses quatro indivíduos, que nunca anteriormente se tinham visto, e talvez não se reunissem mais nunca neste mundo, finda a jornada que os associara.
Um deles era o gajeiro, mestre Antão Gonçalo, que preferia fazer o seu quarto em boa companhia a vigiar só e desconsolado. Outro tinha ares de mariola de praça, e não passava dos seus vinte anos. O terceiro, grisalho já, mas bem fornido de bigodes e pera, retratava mui ao vivo um tipo daqueles tempos, que ainda hoje existe, mas profundamente modificado pelo espírito do século, o tipo do soldado aventureiro e mercenário, ao serviço de todas as empresas boas e más, conforme a paga; de menos as armas e de mais a trapaça, é o moderno cavalheiro de indústria. Finalmente completava o quadrado uma figura suína, que tinha todos os visos de mercador das colônias; era ele quem pagava o pato, e talvez por isso o que menos falava e menos consumia. Mastigava o seu dinheiro, isto é, a sua carne; de resto parecia bastante enjoado.
O bródio fora ajustado entre o marujo e o soldado. O colono deixara-se depenar, pensando granjear assim os bons ofícios do marujo a bordo, a proteção do soldado em terra, e a confiança do mariola.
O aventureiro vinha de São Sebastião; o mercador e o mariola, ambos da Bahia, tinham embarcado em Olinda, por não haver no porto do Salvador navio de licença a partir, nem ser tempo da frota.
Rolava a prática sobre o tema de ocasião, os trabalhos que esperavam a quem passava ao Brasil para tentar fortuna, os malogros de muitos e os avultados lucros de alguns. Cada qual contava como lhe fora a sorte, e todos tinham dela as queixas mais acerbas.
— É tal qual vos digo, Antão gajeiro! repetiu o espadachim. Aforrado como me vedes podia estar hoje nadando em ouro! Assim não fora eu mal-aventurado!
— Escapastes de fisgar o arpéu nalguma boa presa, capitão? perguntou o marujo.
— Não faltam elas naquela terra excomungada!... observou o rapaz.
— Não faltam, não, muchacho! O diabo é não haver justiças que guardem as costas de um homem!... tornou o soldado. Quando a gente é atacado pela frente e lealmente, o juiz é a espada; morre-se em boa guerra! Pero, isso de estar um cristão à mercê de gentio e outros que tais degradados, a tremelicar sem saber de que, vendo a hora que uma seta o manda desta para melhor!...
— É assim mesmo!
— Isso não é terra em que se viva! Melhores juízes lhe ponha El-Rei, se quiser que lá medre a boa gente de espada para o seu real serviço!
O aventureiro empinou a botelha e afogou o suspiro com uma formidável golpada.
— Deixai em paz esses urubus, D. Aníbal, disse o gajeiro, e dizei-nos como o caso foi. A gente cá do mar gosta de saber histórias...
— Qual caso?
— Do como... vos desarvorou a nau antes de entrar a bom porto. Não dissestes que a fortuna pregou-vos um logro?
— E grande. Ninguém me tira de que estive com a mão mesmo em cima daquelas maravilhosas minas de prata... Sabeis?
— Umm!... fez o rapaz a modo de exclamação.
O traficante que tinha pendido à direita com o balanço do navio, dera um estremeção.
— Orça! acudiu o marujo rindo.
— Sangre de Cristo! tornou o cavalheiro. Ainda me ferve o meu lembrando!...
Fora essa exclamação castelhana, que despertara o P. Molina. Quando ele, sem que o pressentissem, veio sentar-se por detrás de uma das caixas de pinho, o soldado já havia começado a narrativa.
— Foi um certo Fernão Aines, de São Sebastião, quem me pôs na pista... Mas primeiro devo referir... Certo dia apareceu morto na Ladeira do Castelo um sujeito cosido a facadas, e a mulher pouco lhe faltava para isso com as três que alapardara. Muita gente foi ver o acontecido e até eu acertei de passar... A mulher só fazia engrolar uma ladainha com este dizer: “O papel!... o papel!...” Que ali havia rasca, suspeitei eu logo.
— É mesmo!... disse o gajeiro. Aí andava mouro na costa.
— Ele parece que sim!... acudiu o rapaz. Ainda eu não estava em São Sebastião quando isso foi, mas ouvi rosnar como coisa fresca.
— Pois a semana não estava acabada, quando veio valer-se de mim o tal dito cujo de Fernão Aines para fazer uma entrada no sertão. Estava ele de luto pelo finado, que era seu parente, ao que me disse. Cá para mim é negócio líquido que o amigo foi quem aviou o outro. Apesar de beato...
— São os piores!
— De pedaço a pedaço estava-me ele a rezar numa cruz grande de pau-santo que trazia ao rosário!... Um dia, já oito eram idos depois que nos partíramos de São Sebastião, o cujo desembuchou. A coisa era esta. Íamos à descoberta de umas minas de prata de que só ele sabia o rumo, por lho ter ensinado um índio manso. Era preciso que os companheiros não dessem pela coisa, o como carecia de um sócio, me escolhera a mim. Havíamos de deixar os outros em certa paragem, tirar o que se pudesse de metal, e escondê-lo longe do lugar, para depois fingir que o achávamos à toa.
— Pelo jeito, o mano não era nenhum sandeu!
— Fino era ele, como azougue; pero, a D. Aníbal, o diabo, seu mestre dele, não embaçaria. Aquela ladainha da mulher andava-me parafusando na cachola!... Sangre de Cristo! disse cá comigo! Não há dúvida! O papel... Tem-no o birbante, e nele está o segredo. Pois o tomarei eu à ponta da espada!
O traficante fez um gesto de susto e murmurou baixinho:
— Tomar per força!...
O aventureiro olhou fito o mercador, que embuchou o resto da frase; era uma simples alusão à Ord. do liv. 5.º, tít. 61, que punia o roubo.
— Alguns pícaros, continuou D. Aníbal, seriam capazes de chamar roubo a isso!... Não sabem os parvos, o que seja o direito de conquista. Os reis conquistam lá seus reinos, nós cavalheiros conquistamos os duros e os reales. Cá para mim, tudo que for necessário à vida, mulheres, pecúnia, boa pitança, tudo é despojo de guerra!
O mercador encolheu-se; os dois outros companheiros deram sua aprovação tácita à teoria conquistadora do cavalheiro.
— Decidido pois estava a oferecer combate leal ao amigo, quando chegamos a um pouso, onde devíamos falhar um dia para repousar. Maldita lembrança foi essa! Voltando à noite de uma caçada, retardados pela borrasca, que havíamos de achar?...
— Um bando de selvagens! disse o colono.
— Pior foi a desgraça. Um raio partira o pícaro do Fernão!...
— Um raio!...
— Desconfiei da história e vou-me a ele! Já estava morto e bem morto. Nas algibeiras, nada. Pero, a tal cruz estava atirada ao chão em pedaços!... Sangre de Cristo! Era oco o pau. O papel ali estava escondido.
— Ah!... fez o gajeiro! Era essa a devoção do marreco.
— Mas o papel que sumiço levou? perguntou o rapaz.
— Tinha-o levado um frade que confessara o tal.
— E o frade?
— O frade... Só se o não encontrar neste mundo, ou mesmo no outro. Ele mo pagará. O pícaro! Roubar-me o que tinha de ser meu, e com que sem-cerimônia!...
— Pois deixai que vos diga, replicou o rapaz, que mais perdi eu, senhor capitão.
— Calai-vos daí, rapaz, mais do que as maravilhosas minas de prata?
— Qual!... Se era possível, Anselmo? Vede bem!
— E se vos eu disser que estive no caminho da cidade encantada, onde as ruas são calçadas de prata e as casas de ouro?...
— Ah! então!...
— Como! Se ainda ninguém a achou?
— Menos aquele que deu a notícia dela.
— Esse, morto é.
— Morto será, que isso nada faz ao caso, se deixou a rota escrita, para lá ir quem a tiver, tornou o Anselmo.
— E esse escrito onde para?
— Sei-o eu?...
— Fazeis segredo disso?...
— Tanto não faço que vou-me a Madrid queixar-me a El-Rei de quem à força me privou do que muito meu era! Um letrado e bom letrado da Bahia, o licenciado Vaz Caminha... Heis de conhecê-lo, mestre Brás?
— Se o não conhecera eu!... Pois é freguesia minha! bocejou o mercador entre dois engulhos.
— Pois deu-me boa fiança de meu direito.
— Também eu pesco o meu tantinho da rabulice, acudiu o mercador. Se quereis, posso dizer-vos como me parece da vossa justiça.
— Os bons avisos nunca sobram, e com o vosso me fareis mercê. Conheceis um D. Diogo de Mariz, fidalgo, que é provedor-mor da fazenda em São Sebastião?
— Não me é estranho esse nome, mas que o conheça não digo.
— Conheço-o eu mui bem! disse D. Aníbal.
— E eu que até já fui portador de uma carta, que ele mandava à mulher do tal descobridor das vossas minas, senhor capitão! disse o marujo.
— A mulher de Robério Dias? perguntou o mercador. Uma D. Clara?...
— Por aí assim!...
— Essa dama já é falecida! observou Anselmo.
— Pelo menos estava para ir a pique, quando lhe fui levar a carta, que o comandante mandava. Recebeu-a um grumetezinho deste tope...
— Havia de ser o filho, o estudante, observou o mercador.
— Que se chama Estácio, cuido eu, concluiu o gajeiro.
— Pois esse D. Diogo de Mariz é o próprio da minha querela. Com ele fui há coisa de três anos, acostado à banda que levou para socorrer seu pai. O homem tinha sido atacado pelo gentio Aimoré, lá para as bandas de Paquequer, e o filho veio de rota batida em busca de gente. Chegado era eu a São Sebastião, para me passar a São Vicente. Falava-se tanto no ouro dos paulistas, que a fama me tentou.
— Esse ouro dos paulistas é como o da vossa cidade, muchacho! ponderou o capitão.
— Não duvidareis, quando ouvirdes tudo. Enquanto esperava, aproveitei o ensejo de ganhar boa paga e lá fomos. Trabalho perdido. O gentio arrasara tudo. Só encontramos as pedras da casa e gente queimada! Aí ficamos uns tantos dias para enterrar aquela carvoagem de ossos.
— Então o gentio pôs fogo ao redor da casa toda, que não puderam fugir?
— Assim parece.
— E os selvagens já tinham abalado?
— Nem notícia deles. Andando a pesquisar no mato que ficava pela redondeza, chegamos a uma clareira, onde sem dúvida tinham dado combate. Estavam ali duas filas de ossadas, que os urubus tinham limpado, e uns trapos de roupas. Espetando com a ponta da espada levantei uma coisa, à feição de cobra. Mas não era. Vedes esta cinta?
Dizendo isto o rapaz desatacou uma cinta que trazia, tecida com finas malhas de aço, formando interiormente duas bolsas. Os outros a examinaram.
— Pois era isso; com a diferença de estar recheada...
— De boas coroas?
— Hupa!... Tinha dentro umas folhas de pergaminho a modo de um livro de rol. Pus-me a olhar aquelas letras vermelhas graúdas, como boi para palácio, quando sinto uma voz dizer atrás de mim: Roteiro. Era D. Diogo; tomou-me o rolo, esteve lá resmungando, e acabou por guardá-lo no peito do jaleco.
— Que tal o mano! E era fidalgo!
— Não tínheis a vossa espada ao lado? disse o aventureiro.
O rapaz levantou os ombros:
— Um homem contra cinquenta!...
— Ainda que foram cem!
— Mas exigistes dele que vos restituísse?
— Sabeis com que me tornou? Que aquilo era um tesouro e devia ser restituído ao seu próprio dono.
— Bom modo de ficar-se com ele.
— E ficou-se; ainda que já em São Sebastião teimando eu que me voltasse o meu achado, disse-me que já avisara o dono para o vir receber. Mas isso não passava de uma história.
— Quem era o tal dono, não lho perguntastes?
— Fez-me orelha mouca!
— E deixou-vos tocando leques com bandurra!
— Sempre deu-me uns dez marcos de prata, como espórtula!
— Vejam que tal era a ganância!
— Mas então esse papel cuidais vós que fosse o roteiro?... disse o soldado.
— Da cidade encantada. Não podia ser outro.
— Também estou nisso! afirmou o gajeiro.
— Talvez não passasse de algum diário de descobertas! replicou D. Aníbal.
— Há muitos anos que isso foi?
— Três, se tanto. Seria pela Assunção.
— Dormistes no caso. Bem pode acontecer que já seja tarde.
— Que queríeis que fizesse? Faltava o melhor. Tornei à Bahia, e só agora ajuntamos, eu e a mãe, alguns reais para a jornada.
— Contanto que o cujo não tenha já evaporado a coisa.
— Que vos parece do caso agora, Senhor Brás? Não pensais que a justiça esteja toda de meu lado?
O mercador teve segundo estremecimento, de quem era arrancado ao valente cochilo:
— Hem!... Dizeis?...
O rapaz repetiu a pergunta.
— Ele não deixa de ser intrincado, continuou o mercador bocejando. Achastes uma botija de dinheiro...
— Estais sonhando?... Um papel, vos disse eu!
— Um papel, sim!
— Mestre Brás parece que está com o porão muito carregado; o leme não governa!
— Nada! É este balanço...
— Carga ao mar!
— Uhah!... uhah!...
O mercador estirou-se. Os outros foram tratando de recolher. Com pouco a sineta de bordo anunciou que entrava o quarto de prima.
O P. Molina ainda ficou no tombadilho. O vento rondara e o navio singrando rumo direito, corria agora ligeira bolina sobre o mar sereno. Como esse barco, o espírito do religioso enleado em cogitações, corria agora impelido pela ambição sobre um oceano de ideias. A lembrança apagada das cartas que lera na cela do P. Cunha avivara-se em sua mente.
No dia seguinte o jesuíta prolongando até a proa seu passeio habitual, engendrou um encontro casual com Anselmo. Trocadas as primeiras palavras, o rapaz o acompanhou até as amuras, onde tiveram longa prática. Carecia o sacerdote de um moço de serviço, e a propósito de informações sobre o procedimento fez-lhe uma infinidade de perguntas relativas, não só a ele, como a outras pessoas da cidade do Salvador.
Entrou enfim o galeão Rosário a barra de Lisboa.
Poucas horas depois de lançar o ferro no ancoradouro, o aventureiro D. Aníbal e o mariola Anselmo foram presos por familiares do Santo Ofício em virtude de denúncias depostas na caixa secreta. O P. Molina interveio em favor do criado; mas tudo quanto obteve foi que ele voltasse imediatamente, em um navio que estava a levantar a âncora com destino à Bahia. A Santa Inquisição ainda tolerava os cristãos-novos nas colônias, terra para degredos; na metrópole por forma alguma.
Não ficou muito contrariado por isso o frade e consolou o rapaz, dando-lhe de conselho que não boquejasse mais sobre certo caso acontecido com D. Diogo de Mariz, pois era homem poderoso, e contava amigos por toda a parte. Partiu-se pois o Anselmo, inteiramente desabusado das cidades encantadas e dando graças à Providência que o livrara da Inquisição. Já Belém sumia-se pela popa do navio, quando D. Aníbal sofria perante os inquisidores do Santo Ofício o primeiro interrogatório.
Entretanto achava-se o P. Molina recolhido à sua casa de Lisboa, depois de oito anos de ausência. Ainda ali vivia o P. Mestre Cunha, que recebeu de braços abertos seu antigo discípulo e fâmulo; o gordo jesuíta estava muito acabado do reumatismo gotoso; e já não viçava na sua robusta pessoa aquela florente velhice, que tanto admirara Vilarzito em Sevilha. O recém-chegado não quis receber a hospitalidade de outro que não seu primeiro mestre, o qual de sua parte muito estimou tê-lo por companheiro de cela.
No primeiro momento favorável, Molina passou busca ao armário, onde outrora descobrira o maço relativo às minas de prata. Ainda ali estava ele, muito aumentado com a continuação da correspondência, porém atirado ao canto e desprezado, senão esquecido, a julgar pela espessa crosta de poeira que o cobria. Não nos é possível copiar a íntegra das cartas do P. Manuel Soares, apesar do muito bem lançado delas, pois ocupariam largo espaço. Basta dar aqui a suma da correspondência.
Quando o filho de Robério Dias chegou aos doze anos de idade, se aventou seriamente em família a questão de fazê-lo entrar para a Companhia de Jesus. Como contava o P. Manuel Soares, houve firme resistência da parte de Álvaro de Carvalho, apoiado na repugnância do menino pela carreira a que o destinavam. Vaz Caminha não se deixou mover pelos argumentos do soldado; mas as preces do afilhado enterneceram seu coração. Assegurou-lhe que ninguém, senão ele mesmo, Estácio, decidiria de sua sorte, esperariam pelos vinte anos, idade em que poderia conhecer a sua vocação, e decidir-se por um estado.
Com esta certeza entrou Estácio a cursar as aulas do Colégio como simples escolar. Os jesuítas tinham então a seu cargo a instrução primária, especialmente nas colônias, onde eram raros os mestres particulares; em remuneração de tal serviço, bem como da obra da catequese, recebiam eles do Real Erário uma côngrua de quatro mil cruzados.
Não agradou ao P. Manuel Soares o desfecho do negócio, e pois de combinação com o provincial tratou de solver a dificuldade inesperada. Recorreu à astúcia, tantas vezes empregada pela Companhia, com bom êxito. Sob pretexto de tomarem a Estácio termo de matrícula nas aulas, lhe deram a assinar um auto de noviciado, que Álvaro de Carvalho em boa-fé subscreveu.
Seguiam-se outras cartas relativas à memória das minas de prata em que o P. Manuel Soares trabalhava com fervor; em cada missiva dava ele uma resenha de seus esforços e pesquisas no desempenho da importante tarefa que lhe fora cometida; em uma das últimas da coleção anunciava o infatigável cronista a importante descoberta que fizera de uma testemunha, cujo depoimento punha feliz remate à sua obra.
Sem dúvida não partilhavam os padres de Lisboa a fé que mostrava o Rev. Manuel Soares em suas laboriosas investigações, pois nada resolveram apesar das repetidas instâncias, e afinal deixaram sem resposta as suas cartas. Não desanimara contudo o denodado cronista, e de vez em quando dava cópia de si, reiterando ao provincial de Lisboa suas rogativas para que se tirasse o fruto dos esforços de tantos anos.
Como acabava Molina a interessante leitura, caiu a noite.
Tratou o jesuíta de acender a candeia na lâmpada do corredor; conservava ele ainda na mão a carta em que P. Manuel Soares falava da testemunha de vista que acompanhara o pai de Robério Dias na descoberta das minas de prata. Sem dúvida por inadvertência e distração, machucou-a e acendeu na lâmpada para transmitir a chama à candeia; quando deu por isso, estava o papel reduzido a cinza.
Nessa mesma noite, depois da reza, impetrou o P. Molina do provincial permissão para seguir sem demora a Roma, na pia intenção de beijar o anel de Sua Santidade e a mutra do vigário-geral da Ordem. Não desejava professar no 4.º voto, sem ter feito essa pia romagem.
Estava nessa ocasião agasalhado, ou melhor, homiziado, no Colégio de Lisboa, um fidalgo de nome D. Lopo de Velasco, comendador de Santo Ivo, a quem perseguiam as justiças de El-Rei por certo duelo muito extravagante. Amigo dos padres, e deles protegido, asilara-se o fidalgo na casa da Companhia; não pôde esta apesar de todo seu valimento obter o perdão completo do delito, porque o adversário morto pertencia a uma família poderosa; mas alcançou a comutação da pena em alguns anos de degredo.
A vice-rainha mandou ir ao Paço o comendador e ali fez-lhe sentir que seria muito conveniente uma viagem ao Brasil; observando-lhe o fidalgo que não possuía terras nas colônias, retorquiu a princesa, que devia comprar:
— Quando Sua Majestade D. Filipe III tanto se ocupa com suas possessões do ultramar, não é muito que o ajudem seus fidalgos a povoar aqueles domínios.
Em vésperas de partir, D. Lopo de Velasco aproveitou a recente chegada do P. Molina para colher informações seguras a respeito da terra. O fidalgo era grande caçador, e não se emendava; apesar de ter sido essa paixão a causa de achar-se em lance tão difícil, queria fixar sua residência na capitania mais abundante de caça.
Bem se vê que o fidalgo não conhecia o Brasil, onde, e especialmente naquele tempo, as matas regurgitavam de toda a espécie de monteria e os ares coalhavam-se de volateria. O P. Molina porém não hesitou em lhe aconselhar a cidade de São Sebastião, onde ele acharia reunidas boa gente e boa caça.
D. Lopo acedeu.
— Então aproveito o ensejo para escrever por algum criado de Vossa Mercê duas linhas a uma pessoa que me encarregou de certo negócio.
— Pois escreva, padre-mestre. Com muito gosto me farei eu mesmo portador de suas letras, respondeu o fidalgo.
No momento de partir entregou de feito o jesuíta a D. Lopo de Velasco uma carta assim sobrescritada: — Para S. Mercê o Sr. D. Diogo de Mariz, Provedor-Mor da Alfândega de São Sebastião.
O jesuíta, senhor agora de todo o segredo do roteiro das minas do Prata, e convencido de que o manuscrito ainda se achava no poder de D. Diogo de Mariz, só tinha um receio; era que Estácio, ou alguém em seu nome, se apresentasse a reclamálo antes que ele, P. Molina, tornasse a S. Sebastião.
Para prevenir esse caso, escrevera o jesuíta a D. Diogo o seguinte:
Muito nobre senhor meu.
Fui encarregado pela pessoa que V.M.cê bem sabe, de receber o objeto de grande preço que se acha em seu poder. Motivos ponderosos me têm impedido de cumprir esse procuratório, de modo que só lá para o ano vindouro aí poderei estar.
Como porém se perdesse a carta de aviso que V.M.cê escreveu, e é possível com ela se apresente algum aventureiro burlão a reclamar o que lhe não pertence; por isso julgo prudente que esteja de prevenção, para não fazer a entrega senão a este que se assina,
de V.M.cê
o mais obediente servo
P. Gusmão de Molina.
Lisboa, aos 27 de outubro de 1607.
Quando voltava o jesuíta de acompanhar à Ribeira D. Lopo de Velasco, lobrigou de longe o matreiro do mestre Brás, seu companheiro de travessia, que muscava-se mui sorrateiramente de um belo palácio onde residia D. Francisco de Sousa.
Que fora ali fazer o mercador das colônias? Solicitar o poderoso fidalgo para patrono de algum requerimento? Dar conta de alguma incumbência das colônias?
Dias passados chouteava eclesiasticamente o P. Gusmão em mula de aluguel, caminho de Espanha. Na recova a que se juntara para fazer a jornada, ia também o Brás. Tratou logo o jesuíta de entabular conversação com o mercador; mas era impossível com semelhante criatura a menor prática.
Não tinha agora o taberneiro o enjoo como a bordo do Rosário, mas em troca o terrível chouto da mula o amassava na sela como lêvedo de pão. Saltando com os solavancos da andadura e jogando de uma a outra banda, ia o judengo encolhido todo e agarrado ao gancho do selim. A ladainha de lamentações, que servia de acompanhamento ao trote da besta, era apenas interrompida pelos gritos de espanto, que soltava o taberneiro cuidando cair. Chegado ao pouso aquela massa inerte de carne e osso caía sobre a enxerga como uma pedra.
Em Sevilha perderam-se de vista os dois companheiros de viagem.
Quarenta dias depois entrava o P. Gusmão a cidade eterna, e alojava-se na casa da Companhia. Houve entre o humilde frade e o prepósito-geral, Cláudio Aquaviva, longa e secreta conferência. Ao cabo de três horas descia Molina as marmóreas escadas do grande consistório, escondendo na manga do hábito um pergaminho. Era a sua nomeação de visitador na Província do Brasil; trazia essa nomeação a data em branco, porque só depois de jurar o frade o quarto e último voto da ordem, podia ela ter efeito. A qualidade de professo e por conseguinte o assento em capítulo era, segundo o Instituto, condição essencial para a prelazia.
A tempo que isso passava em Roma, no mesmo dia e hora, a centenas de léguas, em outra capital europeia, na cidade de Amsterdam, mestre Brás batia à porta da casa onde habitava o cidadão Usselincx, e entregava uma carta coletiva de que era portador, dirigida pelos judeus da cidade do Salvador ao ilustre chefe do partido da guerra e um dos fundadores da Companhia das Índias Ocidentais.
A missiva hebraica foi o fomento da famosa guerra que durou vinte e tantos anos. Os judeus ameaçados pelo Santo Ofício, chamavam os holandeses, como outrora seus antepassados em Babilônia haviam chamado em suas preces Ciro, o conquistador, para libertá-los da escravidão. Os holandeses vieram, como o herói meda, não suscitados por Deus, mas açulados pela cobiça, poucos anos depois, em 1621.