À mesma hora em que Vaz Caminha despertava, erguia-se de seu catre no Mosteiro de Jesus o reverendo P. Gusmão de Molina, ao cabo de um sono curto e agitado.

Depois de curar do asseio de sua pessoa e arranjo da cela, o visitador, que tinha em alto grau o espírito de ordem e método, fez seu exame de consciência. Recapitulando todos os sucessos da véspera e observações que lhe haviam sugerido, traçou na mente a regra para o dia que principiava. Isto fez ele durante a leitura do breviário, para melhor poupar o precioso tempo.

Tomou então de sobre a banca uma correia de chaves, e foi em busca do cartório, onde pouco se demorou. Na volta, trazia sobraçado, mas bem oculto pelo hábito, um grosso volume, digno êmulo do famoso alfarrábio do P. Manuel Soares, a não ser que este tinha uma capa de couro vermelho com o emblema da Companhia em negro sobre o frontispício e uma grande cruz no lombo; de mais guarnecido com fechos de metal amarelo.

O P. Molina escolhendo na correia uma pequena chave de broca, primor do irmão serralheiro, abriu os cadeados e levantou a capa do livro vermelho. No rosto achou o que naturalmente procurava, porque mal demorou o olhar sobre o título escrito em lindos caracteres góticos, o qual dizia assim: — Livro grande do assentamento dos irmãos seculares nesta Província do Brasil.

Já havia o visitador perpassado rapidamente mais de meio volume, quando seus olhos caíram sobre um assentamento que despertou nele a curiosidade; levou o índex da mão esquerda ao lugar da página onde começava a nota, e releu dessa vez com muita lentidão as palavras escritas:


“D. Ismênia de Mascarenhas do Couto Aguilar, esposa de D. Francisco de Aguilar, Senhor de Paripe, dona de jerarquia por descendência, como por aliança. Jurada secretamente aos 15 de novembro de 1599. Enfermou de paralisia que a tem tolhida em uma cadeira, pelo que esmoreceu nas obras, sem contudo arrefecer no zelo, devoção e obediência.”


O frade esteve a cogitar algum tempo com a vista pregada na escritura, ou porque lhe despertasse ela uma série de pensamentos, ou porque estivesse a decifrar naquelas palavras seu verdadeiro e cabalístico sentido. O jesuíta, quando fosse obrigado a escrever, ensinava a Monita Secreta, que escrevesse o menos possível, só quanto bastasse para ser entendido. Ninguém mais versado nessa cabala do que o P. Molina; pelo que não é de estranhar que inquirisse do escrito o que ficara na tenção do escritor.

— Bom!... murmurou sorrindo. Com tão boa âncora, não haja medo que daquele porto garre a barca de São Pedro!

E continuou a folhear o livro.

Aí bateram devagarinho à porta da cela, e uma voz açucarada enfiou pelo buraco da chave:

— Vênia para o irmão despenseiro?

— Entre, irmão! respondeu o P. Molina depois de ocultar o livro vermelho.

O leigo entrou com muitas reverências e gatimanhos, trazendo uma taça de porcelana:

Dominus vobiscum!...

Et cum vobis, amen!

— O reverendo padre provincial manda trazer a V. Paternidade, e saber como lhe foi o passadio da primeira noite nesta casa de Deus.

— Agradecei por mim ao P. Provincial tanta bondade para com seu humilde súdito. Que trazeis aí, irmão?

— É um caldinho quente de cana, famoso para fortalecer o peito e muito necessário nesta terra para reparar da grande perda dos suores.

— Deixai!

Ficando só, o religioso voltou ao exame, interrompido a espaço pelos goles de garapa quente, que sorvia da taça. Depois de algum tempo de novo parou a vista sobre segundo assento, concebido neste teor:


“João Fogaça, capitão de mato, jurado aos 10 de setembro de 1607, no sertão, onde passa todo o mais tempo. É homem forte e destemido, importante de sua pessoa e da banda de cem homens que traz a seu mando; grande sabedor das manhas e ardis do gentio; em uma palavra obrador de grandes feitos e capaz de maiores ainda.”


Neste assento a demora do religioso foi menor; contudo leu-o duas vezes e depois de dobrar o canto superior da página, fez com a unha uma cruz à margem. Correram as folhas sob o impulso do dedo ágil e impaciente do P. Molina; às vezes paravam enquanto ele firmava sobre algum nome a vista que relanceava do alto ao baixo da página. Afinal encontrou o frade o que sem dúvida procurava, porque respirou como ao cabo da tarefa, e erguendo-se foi espiar pela rótula o lindo painel da baía, achamalotada pela brisa e dourada pelos esplendores do sol americano.

Tornando à mesa, esgotou a taça, e fixando no livro um olhar que parecia, de tão poderoso que era, arrancar da página as palavras ali escritas e gravá-las na memória, leu duas vezes uma sobre outra o pequeno assento; feito o que fechou cuidadosamente o misterioso registro e pô-lo sob chave na arca do canto. Para assegurar-se de sua memória repetiu mentalmente o que tinha decorado e era apenas uma nota deste teor:


“Tibúrcio Estêvão, magarefe no curral do Conselho, para cujas bandas mora. Jurou aos 3 de junho de 1605; ainda não provado. Espírito simples e rudo, mas bem procedido; é mui temente a Deus, e o que lhe for ordenado para seu serviço, certo que o fará, com cegueira de entendimento, mas energia de ânimo.”


Nesse momento um leigo cubiculário, que passava pelo fundo do dormitório, ouviu tocar a campainha no cubículo do P. Molina, e acudiu com açodamento à porta.

— Chame o irmão andador que o requer o padre provincial.

Quando o leigo requerido apresentou-se, o P. Molina o tosou da cabeça aos pés, e conheceu que o pobre tonsurado era um bem-aventurado, incapaz do mínimo raciocínio.

— Sabeis onde pousa Tibúrcio Estêvão, cortador de reses? É conhecido vosso?...

— Para as bandas do Curral. É meu conhecido só de o ver e ele a mim.

— Pois ide da parte do padre provincial dizer-lhe que venha falar-me; e o acompanhareis até aqui, ao meu cubículo. Estais entendido? Pois ide rápido.

O leigo desapareceu, cerrando a porta. O visitador recaiu em suas cogitações. Era ele um acérrimo pensador, desses que se afincam a uma ideia, como o vampiro a uma veia, e só a deixam quando saciados.

Ao cabo de alguns instantes murmurou:

— Careço agora um noivo para D. Inês!...

Olhando para a arca onde guardara o livro, acrescentou:

— Mas esse registro nada adiantaria sobre assunto tão delicado. O P. Figueira, que de todos parece mais de sala, informará da mocidade fidalga da Bahia.

Bateram à aldraba; era o provincial, que saudou com respeitosa amabilidade o superior, sem mostra do menor ressentimento. Não era debalde que Fernão Cardim tinha tantos anos de prelatura; avezado ao governo da Companhia, ele possuía ao mesmo tempo a ciência do superior que se faz temido, e do inferior que se faz amável.

— Folgo de ver V. Reverendíssima já refeito das fadigas do mar.

Gratia, padre provincial!... V. Reverência acomode-se para aqui.

— Vênia, P. Visitador. Passei unicamente para saber de V. Reverendíssima, como dormiu e se gosta de caça, porque agora mesmo mandou-nos um amigo e devoto da casa, D. Lopo de Velasco, um veado de sua monteria e dois nambus.

— D. Lopo de Velasco, diz V. Reverência? Vive ele nesta cidade?

— No Recôncavo, cerca de légua e meia da porta do Carmo. No lugar de São Gonçalo.

— Ah! não sabia.

— Conhece-o V. Reverendíssima?

— Vi-o em Lisboa há coisa de ano, quando estava ele a partir para seu desterro do Brasil. Pouco trato tivemos.

— Grande caçador, perante Deus, como Nemrod. V. Reverendíssima julgará.

— Não hoje, que é dia de preceito.

— Mas o abatimento da viagem é razão de dispensa!...

— A regra... a regra antes de tudo, P. Cardim.

Saído que foi o provincial, P. Molina acariciou a barba com um gesto de contente e satisfeito, dizendo entre si:

— Nem feito de encomenda o achara tão próprio. Fidalguia muita, grandes haveres, bem composto sempre e melhor apessoado.

A campainha soou segunda vez no corredor, e o cubiculário acudindo teve ordem de mandar que depois do refeitório selassem uma mula de serviço, pedida a vênia do provincial.

Não cause reparo a sujeição que aparentava o P. Molina; ele continuava a residir no Colégio da Bahia, incógnito como chegara. Embora no capítulo da noite antecedente não fizesse nenhuma recomendação a tal respeito, os irmãos professos não necessitavam dela para guardar o segredo inviolável, que era um dos preceitos do Instituto; ao contrário, para que divulgassem o que passara no consistório, fora necessário ordem mui positiva. Eis por que se os professos o tratavam com a deferência devida ao seu alto cargo, o resto da comunidade continuou a ver no visitador um irmão venerável pelas suas virtudes e acatado pelos superiores, não suspeitando nem por sombras, do grau que tinha ele no Instituto.

Dispunha-se o P. Molina a descer ao poio onde começava de reunir-se a comunidade, quando o irmão andador apresentou-se à porta, precedendo Tiburcino, cuja pata bovina já se ouvia ressoar no soalho. Sentou-se o visitador de novo, e depois de rápida observação, dirigiu a palavra ao magarefe:

— É chegada a ocasião, Irmão Tibúrcio, de empregar-se no serviço da Companhia, que é o serviço de Deus. Lembra-se que tomando a capa de Jesus, jurou duas coisas, obediência primeiro, depois segredo, o que quer dizer que será cego e mudo.

— Os padres podem fazer de mim o que lhes aprouver, porque assim jurei pela cruz, e uma vez a jura feita, está acabado.

— Tivestes ocasião já de ver um mancebo, estudante aqui das aulas do Colégio, que tem nome Estácio Correia?

Tiburcino estremeceu; e esse movimento não escapou ao frade.

— Não têm conta as vezes que o hei visto.

— Que sentis por ele?

— Não sinto nada!

— O Irmão Tiburcino esquece seu juramento. Não é obediência esconder o pensamento. Confesse que o moço Estácio em alguma coisa o molestou, porque sei eu que não gosta dele!

— Como podeis vós saber, padre-mestre, se não vem de mais longe que ontem à noite?

— Sei-o eu, o isto vos baste, para que não procureis iludir-me. Por penitência mando-vos que declareis a ofensa que recebestes.

— Dispensai-me dessa, padre-mestre, ainda que em troca me ordeneis outra mais dura.

— Obedecei!... disse o visitador severo.

Tiburcino inchou como uma untanha; depois de um grande esforço soltou bufando estas palavras sumidas:

— Uma mulher, reverendo padre-mestre, que por meus pecados enfeitiçou-me, e agora me deixa a mim por...

— Seu nome, dizei-o logo!

— Joaninha, a alfeloeira!

O P. Molina refletiu um instante:

— Vejo que é homem de verdade, Irmão Tibúrcio. Aqui tem pois a incumbência para que foi chamado. Neste momento vá à cata do moço, e siga-o por onde for, dia e noite: não lhe perca a pista. À hora de recolher virá aqui dar-me conta do que houver feito. Se entrar em qualquer casa, guarde na lembrança; se com alguém falar, procure ouvir o que diz; porém muito cuidado, em que o não perceba ele, nem desconfie. Está bem entendido?

Tiburcino tinha os olhos no chão.

— Mas, padre-mestre, adverti uma coisa. Já agora sabei o resto: desde ontem à noite que fujo de ver o moço, porque tenho medo se o vir... Pode ser mais forte que eu!... Ora assim um dia inteiro e uma noite após, e a tentação comigo... Então se acertar de ir ter com ele a Joaninha...

O magarefe a essa só ideia rangeu os dentes.

— Melhor é, padre-mestre, me dispensardes de uma tal coisa.

O frade sorriu dos lábios, mas o olhar pesado e austero disciplinou o carniceiro:

— Seja pois essa a punição de haverdes pecado. Fareis o que vos disse; ainda mais, defendereis o moço de qualquer perigo que porventura o ameace. De joelhos!... Jurai-o sobre a cruz!... E a maldição do Senhor caia sobre vossa cabeça, se quebrardes ainda que por pensamento este voto.

Tiburcino ajoelhou automaticamente e estendeu a mão sobre a cruz; quando porém o visitador alçando os olhos ao céu e elevando o braço, descarregou sobre a cabeça a tremenda imprecação, tal foi a eloquência sinistra do gesto e a surda entonação da voz, que o mísero carniceiro tombou com a face sobre o pavimento e ali ficou prostrado nas lajes, trêmulo e beijando a fímbria do hábito.

O religioso ajudou-o a erguer e lhe tornou com bondade:

— Vá o Irmão Tibúrcio na paz do Senhor, que sua alma está fortalecida contra a tentação. Seu salário, como não irá esses dias ao curral, o receberá aqui à noite, do Irmão P. Procurador.

Tocava o refeitório.

O P. Gusmão acudiu ao toque; durante e depois da colação teve com o provincial larga conversa a respeito de várias pessoas da cidade e de outros assuntos relativos aos negócios da Província.

Meia hora depois cavalgava o visitador a mula passeira, seguido de um escravo que trotava a pé, segurando a cauda do animal. Desceram pela ladeira chamada dos Padres, por ficar ao lado do Colégio da Companhia, e ganharam a Ribeira. Junto dos trapiches apeou o frade à entrada de uma casa térrea, de insignificante aparência. Veio à janela e espiou pela parte de dentro da rótula, uma senhora velha, que logo acudiu à porta para receber o jesuíta com muitos agasalhos.

Essa era a morada de Estácio; e a velha, sua tia materna, D. Mência Figueiredo. Com ela teve o visitador uma prática extensa, sobre diversos negócios de devoção e também de família.

Repicava meio-dia, quando o jesuíta cavalgando de novo partiu, tomando um caminho que da praia subia ao arrabalde do Carmo e passava pelas abas do Morro do Calvário, onde estava assentado o convento. Aí chegando, atravessou o fosso na ponte e seguiu campo fora pelo Brejo.

Esse caminho ia dar ao lugar de São Gonçalo a cerca de légua e meia da cidade. Era um antigo engenho, agora desmontado, e servindo unicamente de recreio e morada ao dono e seus acostados ou serviçais. A casa de purgar, a tinham transformado em pocilga de cães, e era habitada pela grande matilha de caça; o resto da fábrica foi pequeno para estrebaria e não cabiam todos os cavalos de sela, sem contar os de tráfego.

O edifício principal destinado à habitação do dono dava mostras de grandes posses, pelo ataviado, espaçoso e bem acabado dele. Ao lado, como duas asas, corriam os comuns, ordenados com muita vista e asseio: nos da direita tinham acomodado a cozinha e ucharia; nos da esquerda os cubículos dos pajens e serviçais, a casa de banhos e outros necessários.

Aí nessa propriedade, consumia os últimos anos da mocidade D. Lopo de Velasco, moço fidalgo da casa real, comendador de Cristo, e da melhor nobreza de Portugal; porque pela linha paterna descendia dos Duques de Aveiro, e pela materna dos Condes de Assumar.

Era um cavalheiro de mais bela presença, e casquilho de roupas, se já o houve algum; mas nunca fizera valer aquelas vantagens a damas. O comendador não era homem de salas; só tivera na sua vida uma paixão, e essa tão valente, que o possuíra todo sem deixar presa a outra qualquer: era a caça. Educado por um tio, devoto acérrimo e inveterado de Santo Huberto, chefe das monterias na casa de El-Rei, ele se formara cedo nessa escola; e em tão boa hora a esse gosto e perícia pela monteria deveu a comenda que lhe deixou o velho fidalgo, com preterição, segundo rezavam, de um filho bastardo. Parece que o orgulho do antigo monteiro-mor abafou o sentimento da paternidade; não lhe sofreu que sua bela coutada coubesse a quem dela não saberia usar, podendo ter por senhor o herdeiro de suas glórias cinegéticas.

O sobrinho porém não foi só o continuador do tio; mas o excedeu de muito no culto pela nobre arte venatória. D. Lopo, longe de se contentar com a rotina, leu os autores de melhor lição assim sobre a monteria, como sobre a altaneria; fez uma viagem à Alemanha para consultar alguns famosos barões, caçadores da Floresta Negra, herdeiros em primeira mão das tradições de Santo Huberto; e por fim tendo feito grande cabedal de conhecimentos especiais, tentou com sucesso alguns melhoramentos nas regras então estabelecidas, sendo os principiais, um sobre a maneira de correr o veado, e outro sobre o momento justo em que se devia dar o golpe de misericórdia ao javali acuado.

Ele cultivava a nobre arte, não só com paixão, mas com galanteria. Nenhum cavalheiro enamorado e bem disposto como Velasco, se apontoava com mais alinho e garridice nem com mais finas galas para mostrar-se à sua dama, do que ele para a caçada, que era no fim de contas sua amante. Se as urzes rasgavam-lhe as sedas, se os ramos amarrotavam-lhe as roupas ou a neve as manchava, ele dizia rindo: “Foram as unhadas, os abraços e o choro da minha dama”.

Mas não há felicidade que dure. Desfrutava Lopo de Velasco a sua comenda de Santo Ivo caçando na coutada secular, e fruindo os pingues foros, quando um fidalgo, seu vizinho, que também se metia a caçar, talvez despeitado com a fama do comendador, desfez na sua ciência e na sua pessoa. Tudo suportou ele evangelicamente; e a coisa não passaria disso, se o tal fidalgo não levasse um dia a imprudência a ponto de declarar em uma roda formais palavras: que César era um podão.

César era o primeiro dos cães das matilhas do comendador, e o melhor, no seu dizer, que havia em Portugal e Castela, o que valia dizer no mundo inteiro. Quando tal soube, logo despachou Lopo o seu monteiro ao fidalgo, pedindolhe reparação da injúria atroz. Bateram-se os adversários, e a honra de César foi desafrontada inteiramente: o seu difamador mordeu a terra e veio a custar-lhe a vida aquela palavra, porque o golpe se arruinou e não houve modo de evitar a gangrena.

A consequência do desafio já é conhecida. O fidalgo teve a vida escapa, graças à proteção dos padres, e veio ver terras do Brasil. Partira de Lisboa com destino a São Sebastião; mas no mesmo navio ia o senhor do Engenho de São Gonçalo que desejava apurar seus cabedais para empreender grandes explorações no interior. As terras do engenho eram abundantes de caça; o comendador entusiasmado com as boas notícias que lhe deu o colono, tratou sem mais demora de fechar a avença.

Quando o visitador passou pelas casarias da fábrica, viu muitos serviçais ocupados no asseio e trato dos animais. Os palafreneiros pensavam as cavalgaduras, ou limpavam os arneses de prata; os moços de trela lavavam os cães ou catavam-lhe os bichos que os perseguiam, e afivelavam as correias à coleira.

Ao chegar ao muro descobriu o padre o grande pátio; aí os fâmulos estavam também atarefados, já escovando as librés de caça, já brunindo os instrumentos, como carabinas, arcabuzes, cutelos e cornetas de chifre com guarnições de ouro. Na ucharia chiavam as frigideiras, e o mestre ordenava as peças de assados para o jantar, enquanto os serventes cuidavam dos covilhetes e outras peças de encher.

Avisado o comendador de que o procurava um padre da Companhia, deu-se pressa em recebê-lo com sentimento de muito gosto e mostras de grande cortesia, vindo buscá-lo à porta da entrada; e porque não havia aí muita claridade, ou por infidelidade da memória, não reconheceu ele o seu antigo comensal do colégio de Lisboa.

— Quando pensara eu naquela manhã, em que depois da colação vos acompanhei ao embarque, que ainda nos havíamos de ver neste mundo, e em que paragem!

— P. Gusmão de Molina!... Que contentamento me dá V. Paternidade!...

Depois das efusões naturais nestas circunstâncias, tornou o religioso:

— Então vossa escolha se decidiu pela Bahia!

O fidalgo referiu o acontecido:

— Mas descansai que vossa carta foi entregue em São Sebastião.

— Graças devo a Vossa Mercê. E como lhe tem ido a vida por cá? Por força que havia de estranhar?

— A princípio não digo que não; mas ao cabo de um ano estava de todo acostumado; e já agora, acreditai que se de Portugal me mandassem dizer que podia tornar, duvido que me aproveitasse do favor.

— Tanto vos agrada a terra?

— Vê, Vossa Paternidade aquele serrote coberto de mato? Pois só ali tenho eu monteria, em abundância tal, qual a não têm as coutadas todas de Portugal. E que monteria? Antas, galheiros, caititus, capivaras, pacas, e tal quantidade de alimária de menos vulto, que é de perder-lhe a conta!

— Assim está o senhor comendador em seu paraíso terrestre? disse o P. Molina com um sorriso.

— Bem acertado nome, não vos parece? respondeu também rindo o comendador.

— E não tem medo que lhe venha tentar alguma serpente?

— Oh! que não!... As serpentes desta terra são venenosas; e não há aqui mulher para dar-lhe ouvido, senão for uma negra velha, que mais parece raça de bugio.

— Mas pode vir de repente alguma moça formosa, como são as tentadoras.

— Não haja receio; por aí não me expulsarão do meu paraíso.

O comendador passou a mostrar ao frade os seus domínios. No atravessar para as cavalariças, encontraram um marachão de terra, com um respaldo de alvenaria e sobre este um chifre enorme de galheiro. Ao lado, espetada em uma estaca, uma caveira de onça.

— Vê o P. Gusmão? perguntou o fidalgo com um suspiro que desentranhou do seio.

— Vejo; mas sem saber o que seja.

— Aqui jazem os restos mortais de César, o rei dos cães de caça. Foi vítima da traição de uma onça, que imolei à sua vingança: ali está a caveira. Este chifre que lhe serve de cruz, foi sua primeira façanha nesta terra; duas horas o teve pelo focinho, enquanto a batida ia outro rumo, tendo perdido o rastro. Bravo César, repousa na terra de suas proezas!...

— Deveis escrever-lhe a biografia, Senhor D. Lopo de Velasco.

— Já pensei nisso, P. Gusmão; mais para diante, quando estiver menos fresca a dor de sua perda. Mas não é vossa cavalgadura, aquela que ali está?

— Assim parece, ainda que não reparei muito nela.

— Olá, bilhostre! gritou o fidalgo ao moço das cavalariças. É preciso que vos mande, para tirardes os arneses à mula, e pô-la ao manjedouro?...

— Por tão pouco tempo, não vale a pena.

— Como, por tão pouco tempo? Não o entendo eu assim, que não vos deixo ir, sem provardes da nossa sopa. Justamente é hoje sexta-feira; fareis penitência!

— Bem agradável, se a obrigação mo permitisse; mas pouca é a demora que tenho nesta cidade, e pois faz-se mister que aproveite os dias e as horas deles.

— Razão de mais, para que não deixe escapar a ocasião. Sabe Deus se nos veremos ainda cá embaixo; a primeira, em que nos conhecemos, juntos almoçamos em Lisboa; a segunda jantaremos aqui na Bahia; talvez ceemos em Cochim ou Angola.

— Tudo pode ser, sem milagre.

— Espero alguns amigos aqui mesmo dos arredores, que muito folgarão com a vossa companhia.

— Depende o ficar do resultado da prática que tiver convosco; pois meu fim, vindo aqui, não foi só fazer-vos minha visita, ainda que esse era de sobra para trazer-me.

— Nesse caso diga depressa V. Paternidade o que posso em seu serviço, para mais breve ter o gosto de satisfazê-lo, e alegrar-me a mim com a certeza de sua companhia.

— Desejo entreter a V. Mercê em particular.

— Vamos até à sala.

Voltaram à casa e entraram em um aposento espaçoso, forrado de lambéis, com cabides de armas nos cantos e troféus pelas paredes. No centro uma banca, coberta de couro com debuxos, e sobre ela aprestos de escrever, três ou quatro livros; um grosso caderno escrito em letras garrafais, com ortografia afonsina, estava aberto quase pelo meio, em posição que mostrava ter-se pouco antes trabalhado nele.

Adiantando ao P. Molina a poltrona, o comendador ainda de pé pôs a mão espalmada sobre o manuscrito:

— Não interrompendo... V. Paternidade veio a propósito para dar-me um aviso, como pessoa tão douta que é!

— Chegando para tanto a minha insuficiência!...

— Oh! que sobra para coisas de maior alcance!... Saberá V. Paternidade, ou talvez não tenha curado destes assuntos profanos, que em Portugal são conhecidas e praticadas da ciência venatória as duas espécies: a monteria, ou caça do monte, e altaneria, ou caça de voo. Ora aqui vim eu achar uma terceira, que muito me agradou pela novidade; é a que à moda do gentio se faz nos rios, em canoas, a qual realmente, deixa as outras muito a perder de vista. Lembrou-me até, por ser arte nova, escrever um tratado dela, e já dei começo como aqui vedes; mas ocorreu-me uma dificuldade, que não é para minhas forças; e foi ela a do melhor nome dessa nova arte, pois nenhum dos outros lhe cabe. Como lhe chamaria V. Paternidade?

— A seguir a derivação das outras devia ser fluminaria, de flumen, como de monte veio monteria; mas eu a chamara antes caça aquática, ou caça de mergulho, pois suponho que a grande ciência está em ferir o animal no fundo d'água, e então essa caça seria justamente o oposto extremo da altaneria ou cetraria, ficando a do monte no centro, isto é, na superfície da terra.

— Discorreis como entendido, P. Molina. É excelente o vosso alvitre, e para que não me escape, vou já aproveitá-lo.

E escreveu no rosto do caderno. — Tratado da arte nova de caça de mergulho, como se pratica nas terras do Brasil, estudada e reduzida a preceito por ***.

Feito o que, fechou o manuscrito na gaveta, e sentou-se defronte do P. Molina, disposto a ouvi-lo com a maior atenção. O frade deu à sua fisionomia mais uma camada de amabilidade e novo retoque ao sorriso insinuante:

— Mal cuidais, senhor comendador, que aquela serpente de que ainda agora falamos, que viria tentar-vos em vosso paraíso, é este humilde frade que aqui está em vossa presença!

— Com que então vindes para tentar-me, P. Gusmão? disse o fidalgo rindo.

— Vim para casar-vos, senhor comendador.

— A mim, P. Mestre?

— A vós, D. Lopo de Velasco.

— Estais então conspirando contra a minha paz e sossego de espírito, que assim quereis meter-me em casa a discórdia?...

— Quero pôr-vos no verdadeiro caminho de que andais arredio como ovelha desgarrada. O celibato sem o voto da castidade não é agradável ao Senhor, que vos manda trabalheis na sua vinha como bom cristão; e como fidalgo ilustre vos deveis à vossa descendência, à qual um dia passarão vosso nome e riqueza.

— Confesso que sou um grande pecador, porém maior me faria V. Paternidade, se me obrigasse a receber mulher, que é fonte de malícia.

— Quando a não santifica o sacramento.

— Embora; sempre ficam restos da peçonha. Quanto ao mais não se afadigue Vossa Paternidade, não há de faltar quem se alaparde com a minha comenda e o pouco que sobrar, quando eu fizer a asneira de ir-me desta para melhor.

— Esse mesmo modo de falar com tamanha indiferença do que o homem tem de mais caro, que é sua honra e família, está mostrando a necessidade que há de tomardes estado. Tocais já a extrema da necessidade; é tempo de cuidar nesse ato indispensável, pois é o complemento da criatura. Sem ele sereis velho, e contudo não tereis a experiência da vida.

— Não vos contesto, padre-mestre. Mas eu dispenso a experiência que se compra tão caro a preço da liberdade.

— Fiai-vos em mim, que tenho mais mundo. Um dia, tarde, vos arrependereis. E para que isso não suceda, resolvi empenhar todas as minhas forças em vosso bem. Ele pode tanto na minha amizade, que apenas chegado ontem e sabedor da vossa presença nesta cidade, tomei informações, e achei já coisa que vos convém em todos os pontos.

— Jesus, padre-mestre!... Já a tendes assim de encomenda? Quem sabe se não a trazeis aí na manga do hábito e mais o ritual para nos desposardes aqui mesmo, de supetão?

— Não a trago, mas hoje mesmo a vereis. Sem dúvida que vos é conhecido D. Francisco de Aguilar, Senhor de Paripe? Pois sua filha é, D. Inês.

— Oh! padre-mestre! Se nunca a vi!...

— Vê-la-eis!... É moça de grande formosura.

— São as piores de aturar!... Cheias de dengos e faniquitos.

— D. Inês é donzela de juízo e muita sisudez; rica por seus pais e nobre. Será boa dona de casa e não vos envergonhará se algum dia, como desejo, a apresentardes na corte de Lisboa ou de Madri.

— Será a nata das mulheres, mas a albardará outro que não eu.

— As terras de Paripe são abundantes de caça, por modos que ainda desse lado vos é vantajosa uma tal aliança.

— E seria mais possível a mim caçar, padre-mestre, quando me lembrasse que dentro mesmo de minha casa estava uma língua afiando-se para descoser-me as orelhas?...

— Assim é ponto decidido. Esta tarde mesmo o senhor comendador irá a D. Francisco de Aguilar, pedir-lhe a mão de sua filha D. Inês.

O comendador soltou uma gargalhada estrondosa, erguendo-se:

— Boa pilhéria!... Vai fazer rir a goelas despregadas os meus amigos!... Creio que são eles que chegam.

O frade deixou rir o fidalgo.

— Este hábito que representa o Instituto no qual também jurastes obediência e submissão, não costuma servir de capa a mascaradas e galhofas. Nem sua cor condiz, nem a gravidade do seu ministério o consente.

— Escute, V. Paternidade, respondeu o fidalgo tornando-se sério. A estranheza da nova fez-me pensar que gracejava como se costuma em amizade.

— É em nome da Companhia, que eu aconselho ao irmão D. Lopo de Velasco esse casamento.

O frade carregou na palavra como se fosse a intimativa de uma ordem.

O fidalgo respondeu ríspido:

— O conselho de V. Paternidade é para mim da maior autoridade; mas versa sobre ponto em que a minha resolução é inabalável.

O sorriso voltou aos lábios do frade e a sua voz amaciou outra vez:

— Sendo assim não tratemos mais de tal coisa. Queria me parecer que essa aliança era de grandes proventos para Vossa Mercê, não sendo o menor o de segurar-lhe o futuro. Tudo neste mundo é precário, ainda o que mais sólido se afigura. Assim a comenda que Vossa Mercê herdou de seu tio... É de pública fama que ele deixou um filho bastardo...

— Certo, mesmo em vida não ocultava de ninguém.

— O nascimento não, mas a perfilhação que lhe fez, essa a deixou tão oculta, que poucos tiveram conhecimento, ignorando-a até o próprio a quem mais interessava. A carta queimaram-na; mas o registro anda nas notas públicas em seu respectivo cartório.

— Sabeis disso com certeza, padre-mestre?

— Ouvi dizer em Lisboa; e a ser verdade, se o moço deserdado, que lá vive pobremente, vier a sabê-lo, tratará de querelar do testamento de vosso respeitável tio.

— Podeis informar-me mais pelo miúdo do mister em que se ocupa ele, e do lugar onde se acha ao certo?

— Em nosso Colégio de Lisboa, onde serve como leigo, por caridade. Os padres ali são todos amigos do peito, com que Vossa Mercê deve contar; mas quem pode evitar que um mal-intencionado desencaminhe o rapaz? E então, se ele achar patronos, que nunca faltam quando a maquia é boa, não sei o que diga!... É certo que Vossa Mercê também os tem e da melhor espécie; contudo deve de estar preparado, e um engenho famoso como o de Paripe, no pior caso, encheria o rombo, que deixasse a comenda de Santo Ivo! Mas Vossa Mercê é tão avesso ao matrimônio!... Fique pois o dito por não dito!...

O frade ergueu-se e foi à janela apreciar a perspectiva do horizonte, acidentado pelas montanhas e florestas, deixando o fidalgo afundar-se mais na meditação em que o deixara já submergido.

Decorreu curto espaço.

— Far-me-eis então a mercê, senhor comendador, de mandar chegar a mula, por que torne à cidade?

— Com perdão de Vossa Paternidade, não consinto nisso, pois prometeu ficar para o jantar.

— Ficaria com sacrifício para ter o gosto de acompanhá-lo à cidade; mas desde que assim não pode ser, vou-me já.

O fidalgo insistiu debalde; conhecendo que o frade não cedia, mandou que trouxessem a cavalgadura. Estavam já nas despedidas, quando o comendador, arrancando-se a si mesmo e à perplexidade em que estava, disse:

— Responda Vossa Paternidade a duas perguntas que lhe quero fazer.

— Quatro que sejam.

— É a primeira: este casamento seria obra meritória para a Companhia?

— Mas decerto, senhor comendador, desde que era em serviço de Deus e bem vosso, que sois filho também, podeis duvidá-lo?

— Outra: qual é vossa autoridade para falar em nome do Santo Instituto?...

— Esta, irmão: a que o Geral me conferiu.

E o frade tirou da manga o pergaminho de sua nomeação. Lopo de Velasco curvou a cabeça.

À uma hora em ponto foi o jantar. Às cinco entrava na cidade do Salvador de guião e em grande comitiva, o comendador, vestido de gala, com toda sua gente de libré mui luzidia e garbosa. O fidalgo montava um cavalo de raça andaluza, com jaezes de ouro e sela de veludo bordada a fio de prata. A seu lado trotava humildemente na mula fradesca o P. Gusmão de Molina.

Ao entrar a porta do Carmo, o jesuíta esgueirou-se por uma rua lateral, e o fidalgo continuou sua marcha triunfal, através da cidade, com grande aplauso e pasmatório dos basbaques da metrópole brasileira. Apesar de ser o fausto e riqueza nessa época mui comuns na Bahia, contudo aquele suntuoso cortejo, de régia pompa, não só pelo número dos escudeiros e pajens, como pelo custoso adereço das roupas e fino trato da cavalhada, era uma festa para a gente de terreiro.

D. Lopo de Velasco dirigiu-se a Nazaré, onde ia pedir a D. Francisco a mão de sua filha, a muito nobre e formosa Senhora D. Inês de Aguilar.