Os sucessos que tiveram lugar junto à Ermida de Nossa Senhora da Graça carecem de explicação.
O matreiro do Fr. Carlos da Luz saindo no dia de Reis da casa de D. Francisco de Aguilar com o cartel de desafio anônimo, fora direito a palácio e solicitara do governador uma audiência para depois da festa, pois tinha a comunicar objeto de importância para o Estado.
D. Diogo de Menezes o recebeu ao sair da igreja. Fr. Carlos apresentou-lhe o cartel de desafio, e abundou depois em largas considerações para demonstrar a inconveniência e perigo que havia em deixar-se à mercê de qualquer espadachim a reputação, sossego e felicidade de uma família principal. Acrescentou que dali podia originar-se um conflito funesto para o Estado, porque os ódios uma vez excitados não teriam mais paradeiro, e a vingança dos parentes roubaria à pátria muitos filhos prestimosos.
— D. Francisco de Aguilar, rematou o frade, é rico e poderoso senhor, de natureza muito altiva e caráter pouco sofredor. Uma vez ofendido em sua pessoa, ou de quem lhe toque de perto, é capaz de tudo.
O frade era homem de paz; além disso o interesse que tinha de ver realizado o casamento de D. Fernando com Inesita, lhe inspirara essa ideia feliz de recorrer ao governador. Afastar o amante da moça, quem quer que ele fosse, até consumar-se a união, era a única medida prudente; e essa com a intervenção da autoridade, que tinha por dever proibir e castigar os duelos, tornava-se de fácil execução. Para mover completamente o ânimo de D. Diogo, que ele sabia ser brioso e portanto mui inclinado aos costumes cavalheirescos, esgotara a sua eloquência demonstrando as consequências funestas, que podiam sair daquele duelo.
D. Diogo, cavalheiro sim, mas rígido observador da lei, não hesitou um momento à vista do cartel de desafio, o qual logo de primeira leitura adivinhou donde vinha, pelo que observara nos jogos do terreiro. Contudo não pôde deixar de dizer ao frade com um sorriso enjoado:
— Vosso amigo, reverendo, é prudente e assisado!...
— Acreditai, senhor governador, que D. Fernando não tem a mínima parte no passo que dei; e para prova vou referir-vos tudo quanto é passado.
Contou de fato o modo por que se achava senhor do cartel; carregando porém mais as cores do painel, quando tratou da ira de D. Francisco e exasperação de D. José. Saído o frade, o governador releu o cartel, e tocando a campainha, mandou que chamassem o capitão de sua guarda.
— Esta madrugada antes que seja dia estareis com os homens precisos no sítio de Nossa Senhora da Graça; prendei da minha parte a um homem que para aí emprazou um desafio, e suponho ser o chamado Estácio Correia! Conheceis-lo?
— Muito, senhor governador!
— Preveni-vos com homens bastantes que possais espalhar por diversos pontos para que vos ele não escape. Ponho o maior empenho nesta diligência.
— Confiai no meu zelo.
Foi assim que se achou Manuel de Melo e seus homens tão a ponto para prender Estácio e impedir o combate.
Fr. Carlos da Luz saíra do mosteiro muito cedo para espiar e ver com seus próprios olhos o efeito da denúncia. Encontrando Estácio na capela, logo suspeitou pelos seus modos que era ele o homem da contenda. Mas surpreendido ficou, reconhecendo D. Fernando de Ataíde a dirigir-se para ali, quando o supunha mui quieto em casa. O frade apesar de esperto não contava com o amor e o ciúme, o que era desculpável, pois nunca os sentira; se fosse negócio de gula, ele leria de cadeira.
Quando Ataíde, descobrindo Estácio, seguiu-lhe as pisadas, o reverendo atravessou-se-lhe adiante, e usou das figuras de retórica mais empregadas nos seus sermões para convencê-lo de que não devia aceitar o desafio de um desconhecido. O moço, que já havia reconhecido Estácio, e à sua vista sentira acender-se um ódio entranhado, não o atendeu. Tudo quanto obteve o reverendo foi demorar seu protegido; mas tanto lhe bastava, pois deu tempo a aparecer Manuel de Melo e prender Estácio. Ouvindo o brado indignado do seu inimigo que o declarava três vezes infame, o fidalgo arrancou e chegou a tempo de responder-lhe dignamente.
Quanto a João Fogaça, cumprindo à risca a recomendação de Cristóvão, partira pela madrugada para a Graça. Ia só, mas bem armado. Ao chegar ao alto de São Bento viu ele passar os homens da guarda do governador embuçados nos reguingotes, e esgueirando-se às ocultas pelas sombras do arvoredo. O capitão de mato desconfiou da coisa, e soltou então o grito da saracura que foi respondido pelos seus índios emboscados nas vizinhanças da casa de D. Luísa de Paiva; estes repetiram o aviso, continuado mais longe e mais até o rancho da sua companhia. O prudente sertanista tinha disposto desde a casa de Mariquinhas até Nazaré um cordão de índios empoleirados nas árvores, e que lhe serviam de telégrafo. Em caso de necessidade, o sinal por ele mandado, passando de árvore em árvore, iria em menos de cinco minutos ao rancho.
Assim sucedeu aquela manhã. Antão Pereira, seu cabo, ouvindo o sinal e conhecendo que ele tinha necessidade de dez homens, despachou-os logo. Estes dirigidos pelo sinal foram direitos aonde os esperava o capitão de mato, que rondando os soldados de longe, os colocou à mão para qualquer emergência. A esse tempo já ele se tinha convencido que a guarda não saíra debalde tão cedo.
Ocupado em espreitar os movimentos dos soldados, não viu João Fogaça a chegada de Estácio à ermida; mas pouco abalo lhe dava já agora o moço, que aliás ele contava encontrar no lugar do desafio. A lembrança de preveni-lo do que se passava, e aconselhar-lhe que fugisse nem bruxuleou na mente do capitão de mato. Era ele dos homens que caminham na vida sempre direito e avante, e só recuam ou desviam quando o rochedo que lhes intercepta o caminho é tal que não pode ser destruído ou acometido. Um desafio fora emprazado; e ele havia de ter lugar, já que o tinham metido naquela dança.
Agora Vaz Caminha.
Na véspera, quando Estácio o deixou bruscamente, o licenciado ficou incomodado com aquela última palavra, que não cessou de virar em todos os sentidos para bem compreendê-la; e acabou convencido de que seu afilhado resolvera bater-se com D. Fernando.
Essa preocupação só o deixou à portaria do Colégio para onde se encaminhou no propósito de gabar aos padres, como merecia, a sua festa de Reis, e dar ao P. Molina seus louvores pelo admirável sermão. É natural que o advogado levasse a intenção oculta de sondar melhor o frade castelhano; mas achou-o impenetrável. De volta a casa, quando embocava na Rua dos Mercadores, viu o doutor na outra ponta seu afilhado, que saía de uma loja. Apressou o passo, para ver se o apanhava; mas debalde; o moço havia desaparecido.
Confronte com a porta donde ele saíra, conheceu sobressaltado o velho que era loja de armeiro; e logo acudiram-lhe as suspeitas e com força nova e maior. Desejoso de tirar a limpo este negócio, entrou na loja sob pretexto de comprar cutelos de mesa, e com a tática e finura que lhe sobravam, veio ao conhecimento de que Estácio mercara poucos instantes havia uma espada em troca de ferragem velha, couras, escudos e adagas.
Apertaram os sustos do velho. Mal engoliu o último bocado do apressado jantar, botou-se para a casa de Estácio. Esperou-o debalde até noite fechada.
— É escusado, Senhor Vaz! O menino depois das festas, não sei que ares o tomaram, que só ao cantar do galo se recolhe; e nem o dia sonha de nascer, já ele anda no mundo grande.
— Rapaziadas, D. Mência. Também nós fomos moços, ainda que já não nos lembra o quando e o como isso foi!...
— E as aulas, Senhor Vaz?... Que contas dará ele de si no caminho em que vai?...
— Deixai isso ao meu cuidado; quando o vejais hoje antes de recolher, dizei-lhe que eu tenho precisão urgente de vê-lo. Em todo o caso virei por ele amanhã ao romper do dia.
De feito no dia seguinte à mesma hora em que Estácio passava a porta de Santa Catarina, o advogado chegava à casa do moço na Ribeira. Soube de D. Mência, por entre a rótula, que o afilhado recolhera muito tarde; mas não obstante ela, que o sentira, se tinha erguido para dar-lhe o recado. Apesar disso, muito antes de haver sinal de dia, já ele estava a caminho acompanhado do pajem.
— Escusai-me de não abrir-vos; mas ainda estou descomposta, Senhor Vaz. Ai, não vos chegueis tanto!...
O advogado, sobressaltado com as circunstâncias que não só confirmavam as suas suspeitas, mas anunciavam a iminência do acontecimento que ele desejava evitar a todo o transe, não atendeu às denguices da velha D. Mência; já ia longe, quando ela acabando de falar e deitando fora da rótula o nariz, como sinal de sua graça, percebeu a evasão do ingrato:
— Sempre é homem de beca! murmurou com desprezo; e bateu o trinco da rótula.
Quanto a Vaz Caminha, ia sem destino, à toa, como homem que deseja dividir-se em muitos para estar ao mesmo tempo em diversas partes. Sabia ele ao menos de que lado tinha Estácio tomado? Quis voltar para indagar da velha; porém logo pareceu-lhe que era arriscar-se a perder tempo sem proveito. Foi andando para onde o levavam as pernas.
Quis o acaso que no Largo da Sé passassem por ele dois vultos, cavalheiro e pajem. No primeiro reconheceu D. Fernando, e sentiu grande alívio. A atitude do fidalgo e seu fâmulo, a fisionomia de ambos e seus passos, tinham um tal aspecto misterioso e ao mesmo tempo decidido, que anunciava empresa oculta e arriscada. O advogado resolveu seguir a pista daquele que sabia ser o adversário de Estácio, e que sem dúvida marchava para o terreno do combate. Após ele passou a porta sul da cidade, e galgou o caminho de São Bento. Aí na bifurcação da vereda que seguia para N. S. da Graça, o advogado já em extremo fatigado, perdeu de vista o cavalheiro; mas foi seguindo a direção por ele tomada. Essa demora deu tempo aos incidentes que passaram.
Falta-nos Tiburcino.
Quanto a este, desde a véspera que o pobre labrego andava arvoado. Arrastado pelo olhar da feiticeira mulatinha, como um touro sob o aguilhão, a fora ele seguindo estupidamente até o meio da Praça do Palácio onde estava então assentado o pelourinho, que mais tarde removeu-se para o Largo do Rosário.
Joaninha voltou-se bruscamente para o carniceiro, e falou-lhe com um tom decidido:
— Tiburcino, veja você em que se mete. Só lhe digo uma coisa. Se algum mal suceder ao Sr. Estácio, sei de onde vem, e o saberá logo o Sr. Ouvidor Brás de Almeida. Portanto, quando ali estiver pendurado, se não for mais alto, não se queixe da risada gostosa que hei de eu dar às caretas que você fizer!...
— Rapariga do demônio!... urrou o magarefe enfurecido, sacando da cinta o manchil. Tomai, e acabai-me aqui a casta de uma vez com este cutelo, antes que estar assim cada dia a picar-me aos pedacinhos!
Joaninha comoveu-se na presença daquela dor de que era a inocente causa. Repelindo com o gesto o ferro, e com o sorriso deitando bálsamo na ferida magoada, tornou compassiva:
— Quem lhe meteu a você na cabeça que ando eu namorada deste ou daquele?
— Não no vi eu a outra noite, e inda agorinha na igreja, com estes olhos que a terra há de comer?...
A mulatinha bateu o pé zangada.
— Mando-lhe eu, sô carniceiro, que não suporto que me andem espreitando! Ouviu? E saiba mais, que em chegando o meu dia de querer a alguém, não será você nem todos os magarefes juntos do mundo inteiro, que me privem do que for muito de meu gosto e vontade!...
Proferindo estas palavras, as narinas rosadas da mulatinha insuflaram-se, e ao sopro ardente o magarefe dessorava estremecendo, como um tronco de jatobá ao sol que o abrasa.
— E não se ponha você com partes; pois bem pode ser que lhe saiam as coisas ao avesso sucedendo isso mais depressa do que devera!...
— Para que estais aí com coisas, Joaninha? rosnou o carniceiro. Se já lhe rendestes o coração.
— Pois o quereis, assim o tendes. Quero-lhe, ao Sr. Estácio!... Estais ouvindo?... E agora tomara eu ver que tenhais o atrevimento de pensar em lhe fazer mal.
Joaninha deixou o magarefe fulminado sob o peso de sua ameaça, mais tremenda para ele do que a excomunhão do P. Molina. Quando saiu do atonismo, lançou-se à carreira pelos campos, como o touro furioso. À tarde, dando acordo de si, voltou à tarefa; ele sabia já onde encontrar Estácio, a quem perdera de vista desde pela manhã. Foi esperá-lo à casa de Mariquinhas.
Na madrugada seguinte acompanhou o moço até N. S. da Graça. Chegava às aroeiras no momento em que os dois adversários se preparavam para o combate.
Tiburcino lembrou-se da recomendação do P. Molina e estremeceu; mas as palavras de Joaninha também lhe soavam ao ouvido, e ele deixou-se ficar tranquilo. Não sabia o que queria; tremia ao mesmo tempo e palpitava com a ideia de que Estácio pudesse morrer no desafio; Joaninha não lhe poderia imputar a sua morte. Mas com a demora produzida pela chegada de Vaz Caminha sofreu o espírito do carniceiro tal inversão que ele correu sobre D. Fernando e o arrebatou com uma rapidez incrível.
Eis os motivos por que se achavam tão imprevistos no vale de N. S. da Graça os diversos personagens desta história.
São já nove horas passadas.
D. Diogo de Menezes, recolhido em seu gabinete, conversa em particular com o sargento-mor do Brasil, D. Diogo de Campos sobre coisas do Estado e governo das capitanias. Findo o conselho, foi Estácio introduzido à sua presença pelo Capitão Manuel de Melo, que nessa ocasião lhe deu parte do ocorrido; chegando ao ponto relativo à intervenção indébita do capitão de mato, o governador o interrompeu severamente:
— Basta, capitão! João Fogaça disse com acerto que os soldados da minha guarda ao vosso mando hão mister que lhes ensine ele a cumprir minhas ordens. Pena tenho eu de que vos não trouxesse atados pelo meio da cidade, como o prometeu, mas dir-lhe-ei de minha parte, que venha a palácio para lhe agradecer a lição que vos deu!...
O oficial retirou-se. O governador e o moço ficaram sós:
— Estácio Correia, quem escreveu este papel?... interrogou D. Diogo desdobrando o cartel.
— Escrevi-o eu, sr. governador, de meu próprio punho, respondeu o moço erguendo a fronte com altiva serenidade; e ocultei meu nome unicamente pelo receio de comprometer a pessoa de quem aí se trata.
— Sabeis que o desafio é um crime?
— Crimes desses prefiro-os eu à infâmia daquele que para fugir deles os denuncia!... replicou o moço ardendo-lhe as faces de indignação.
— Vosso adversário D. Fernando de Ataíde não procedeu como pensais; deveis fazer-lhe essa justiça.
D. Diogo referiu quanto bastava para afastar do noivo de Inesita a pecha de cobarde; depois adoçando a expressão de rigidez e severidade que asselava sua nobre fisionomia, falou de novo a Estácio:
— O esforço e bravura de que destes em minha presença fazem oito dias, tão brilhantes provas, mancebo, não são para se esperdiçarem em coisas pequenas, como desafios e duelos, quando as empresas grandes, em prol da pátria e para serviço d'El-Rei estão com instância esperando pelos corações de vossa têmpera. Não carecem punição esses primeiros assomos da mocidade vigorosa; basta que sejam encaminhados. Quero pois abrir-vos campo às nobres e generosas aspirações.
Estácio inclinou-se respeitoso e corando aos louvores de pessoa tão venerável.
— Há cerca de oito meses mandei Martim Soares Moreno a fundar um presídio na costa do Rio Ceará, muito infestada de franceses e mais desamparada dos nossos. Foi ele acompanhado de poucos homens e baldo de recursos, mas com promessa que lhe fiz de pronto subsídio. Quando chegastes, tratava com o sargento-mor do Estado sobre este assunto, e buscávamos homem, para a difícil empresa. Quereis ser esse homem, vós que estais na altura dela?...
— Sou cativo da bondade que usa Vossa Senhoria para comigo; e aceitaria reconhecido o cargo, se não fora sobejo demais para as minhas forças.
— Desse ponto não sois o melhor juiz; fio mais do meu aviso. Podeis retirar-vos em liberdade, deixando-me em penhor vossa palavra de como não vos batereis em desafio com D. Fernando ou qualquer outra pessoa; e ordenai vossa partida para daqui a oito dias, enquanto se arranja a expedição que deveis comandar.
Estácio empalideceu de leve ouvindo o governador, mas logo recobrou-se:
— Não poderei dar a Vossa Senhoria uma palavra que não saberia cumprir! Quanto à expedição, um negócio muito particular, do qual depende a minha vida, reclama agora a minha presença nesta cidade. A pátria, a quem pertencerá o resto dessa vida, bem pode dispensar-me tão minguada porção de tempo, quando lhe sobram tantos e mais experimentados servidores. Creio mesmo que se me deve essa compensação, pelo muito que perdi.
D. Diogo longe de irritar-se com a firmeza e o tom da resposta, tornou benévolo:
— Sei ao que aludis, Estácio Correia. Tendes um amor desventurado. Quem não os teve na vossa idade?... São como as primeiras flores das árvores que nunca geram fruto, e murcham de si mesmas. Entrastes agora na juventude; essa primeira decepção longe de vos desanimar, deve alentar novos e maiores arrojos. Subi-vos pelos nobres cometimentos à altura a que deveis chegar e não receeis que daí vos recusem a mão daquela que elegerdes para vossa companheira e sócia de vossa existência!...
— Chegaria tarde. Quando voltasse já não encontraria a quem oferecer o prêmio desses serviços.
— Por que não há de o vosso coração sentir e inspirar outra afeição, mais forte e vigorosa, por isso mesmo que se aproximará da virilidade e robustez do homem?
— Falou Sua Senhoria há um instante das primeiras flores das árvores que não vingam em fruto, mas também tenho eu visto às vezes, discorrendo estes campos nossos, algum arvoredo que não dá mais que uma flor; e depois dessa camada seca e mirra para sempre!
O jovem falou com uma voz que saía do coração. D. Diogo conheceu quanto era violenta e indomável a paixão que assolava aquela vigorosa organização.
— Cerremos aqui esta prática. Ela vos deve convencer do grande interesse que tomo por vossa pessoa, mancebo; pois esqueci-me a ponto de discorrer amores convosco. Não enxergai portanto na medida que vou tomar a vosso respeito, excesso de rigor e dureza, senão zelo temperado por alguma severidade precisa. Confessastes há um instante, que não poderíeis conter os ímpetos da paixão que vos arrastou ao desafio com D. Fernando, e vos arrastaria mais tarde a novas loucuras. Sou obrigado pois, bem a meu pesar, não só para cumprimento da lei, como para vosso próprio benefício, a reter-vos preso e encerrado.
— Como a Vossa Senhoria aprouver, respondeu Estácio sentindo gelar-lhe a medula, mas revoltarem-se os brios.
— A menos, disse o governador com intenção, que não estejais resolvido a partir para o Ceará, e me deis a palavra exigida, pois levo a confiança em vossa honra a ponto de não duvidar do seu cumprimento, uma vez dada.
— É impossível, senhor!... Mandai-me encarcerar.
O governador tocou a campainha, e acudindo o reposteiro, mandou que chamasse o Capitão Manuel de Melo.
— Conduzireis o preso ao Castelo de Santo Alberto, com a ordem que vos será entregue por meu secretário, neste mesmo instante.
Na antessala encontraram o Doutor Vaz Caminha que esperava pela decisão, pensativo e triste, mas resignado. Ao abrir da porta, ergueu-se rápido, e aproximou do mancebo. Estácio, ainda sob a primeira impressão dolorosa do golpe que o atordoava, lembrou-se pondo os olhos em Vaz Caminha, que sem a brusca intervenção do velho doutor, que obstara o duelo, estaria ele àquela hora desassombrado do seu maior cuidado, que era o seu rival, e também livre e solto pelo auxílio de João Fogaça.
— Eis o que fizestes, mestre!... Preso, e sabe Deus por quanto tempo!... disse o moço com doce exprobração.
— Não é agora ocasião para as recriminações, filho; mas se não me houvésseis ocultado vosso intento, não acontecera isto.
— Eu sabia que não daríeis o vosso consentimento.
— Razão de sobra para discutirmos ambos o assunto, pois dois conselhos aproveitam mais que um.
— Andei errado, confesso; mas já que não tinha remédio, melhor era decidir logo de uma vez... Ou matava-me ele a mim ou arrancava-lhe eu a ferro o juramento de não casar com Inesita. Viesse embora a prisão, que não vinha, vos seguro eu.
— Esse juramento de D. Fernando ainda podereis obtê-lo, Estácio.
— Agora, tolhido da minha liberdade, e sepultado nalguma masmorra?... Nada mais espero, mestre, senão morrer breve nesta terra onde ela vive, misturando os soluços da agonia aos murmúrios das ondas que gemiam quando da primeira vez a vi, exalando meu último suspiro no seio da brisa para que me ela respire em sua alma, de envolta com o ar. Essa morte, prefiro-a eu à vida e liberdade que me ofereciam pouco há, mas longe daqui, longe dela, nos sertões dalém.
O moço ia contar o que passara entre ele e o governador quando apresentou-se o capitão da guarda com a ordem de prisão na cinta. Vaz Caminha teve tempo de lançar ao ouvido de Estácio estas breves palavras:
— Não desespereis!... Até amanhã talvez!...
No começo apenas da luta que ia travar com seu destino adverso, quando ainda não tinha nem as forças provadas, nem o hábito do sucesso que gera a confiança e o arrojo invencível, Estácio ficou nos primeiros momentos acabrunhado sob o peso da fatalidade que pesava sobre ele. Repassando os acontecimentos do dia, refletia nas vicissitudes que sofrera seu plano tão bem concertado até ser afinal e completamente aniquilado.
Parecia-lhe isso uma zombaria cruel da sorte, que podendo acabar com ele de uma vez, o fazia seu joguete e escárnio.
Mas era da melhor e mais fina a têmpera dessa alma; e se agora dava de si e embrandecia com o primeiro fogo, não tardava que saísse mais rija e adamantina dessa primeira prova.
O Forte de Santo Alberto, sito sobre um lajedo ilhado e fronteiro ao ancoradouro das naus, era pela sua posição também conhecido por Castelo do Mar. Ainda hoje ali existe no mesmo lugar, com o mesmo nome, mas na construção inteiramente outro do que era então. Tinha, ao que parece, naquele tempo cárceres fortes e seguros, pois aí eram guardados os cativos de guerra e presos de estado.
Já Estácio e a guarda que o escoltara haviam embarcado em um batel nas tercenas da Ribeira, e estavam em metade da travessia, quando o moço deu por Gil que o acompanhara desde palácio, e agora de pé sobre a lajem da praia, alongava os olhos no seguimento do batel, para despedir-se de seu amo querido, e ao mesmo tempo saber onde o levavam. O menino enxugava com os dedos as lágrimas que os olhos debulhavam; e tinha desde a manhã um soluço a rouquejar-lhe ao peito.
Avistando-o, o cavalheiro ergueu o braço e apontou para o Castelo do Mar, dizendo ao capitão para disfarçar esse movimento:
— É ali que me levais, capitão?...
— Breve o sabereis! respondeu o oficial que estava de mau humor.
Pouco se deu o moço com a sequidão da resposta. Gil tinha compreendido o seu movimento, pois de repente saltara da lajem e disparara a correr pela ribeira, veloz como um cervo. Onde e a que ia ele desse passo, era o que não podia adivinhar o preso; mas não duvidou um instante que o brusco desaparecimento do pajem anunciasse uma resolução pronta e favorável.
O batel encostou à barbacã do castelo; e enquanto esperava o capitão pelo condestável da homenagem do Santo Alberto para lhe fazer entrega do preso, Estácio encostou-se ao parapeito das baterias. Nessa ocasião ouvia-se do lado das tercenas do Colégio a celeuma de um navio que levantava âncora, e, desfraldando as velas ao fresco terral, singrava barra fora. A atenção do moço foi distraída de seus cuidados por esta cena agradável da vida marítima. Era realmente um belo e soberbo navio, o galeão Santo Inácio, pertencente à Companhia, e construído nos seus estaleiros da Bahia, das melhores madeiras do Brasil, sob a direção dos mesmos padres.
Fazendo-se no bordo do mar, o alteroso galeão passou à fala do forte e tão próximo que se via todo o convés. Ali, próximo à habitácula, com a vista derramada pelos horizontes, estava um frade que voltou-se para examinar o Castelo de Santo Alberto no momento em que passava debaixo de suas baterias. Estácio conheceu o P. Gusmão de Molina; e recordou-se das revelações feitas na véspera pelo Doutor Vaz Caminha. Aí estava diante de seus olhos a confirmação de todas as suspeitas do sagaz advogado: o frade, naturalmente depois de haver sondado na cidade do Salvador a existência dele Estácio, partia para o Rio de Janeiro à busca do roteiro.
Era mais uma esperança que se apagava! De seu lado também o visitador reconheceu Estácio no parapeito do castelo; e sorriu. Soubera ele da prisão uma hora depois por Tiburcino, que deixando D. Fernando na sacristia da ermida e fechando-lhe a porta sobre, voltara ao lugar do desafio e de longe acompanhara a guarda até palácio. Mais tranquilo ainda com este acidente, partia pois o astuto jesuíta, qual novo Jasão, à conquista do velocino de prata.
Estácio acompanhava com os olhos a singradura rápida do soberbo galeão, quando apareceu no terrado o condestável. Era um bravo veterano, que pelejara os mouros na Índia e os franceses no Rio de Janeiro; ríspido de maneiras, mas no fundo bom coração:
— Mancebo, Sua Senhoria me ordena que vos tenha em boa guarda! Dai-me a vossa palavra, e tereis todo o castelo de menagem.
— A minha palavra, senhor condestável, me prenderia mais do que os muros da vossa fortaleza.
— Pretendeis então evadir-vos, mancebo?... Cautela comigo!...
Estácio sorriu:
— O que pretendo fazer, e o que será, Deus o sabe!... Tomai vossas cautelas, e dai-vos por avisado!...
— Irra!... Com seiscentas mil bombas e bombardas!... Quereis zombar comigo!... Pois vereis de que espécie são os cárceres de Santo Alberto. Tenho justamente um devoluto e à vossa disposição, pois morreu-lhe hoje o morador!... Irra!...
O condestável bufando e puxando os bigodes deu três gritos que fizeram saltar diante dele o chaveiro. Estácio foi lançado no prometido cárcere. Era uma cava úmida e infeta, construída abaixo do nível do mar, e esclarecida por duas estreitas seteiras abertas no alto da cortina exterior do forte. No momento em que ele aí entrava removiam o corpo de seu finado antecessor. O moço sentiu apertar-se-lhe o coração, pensando que talvez ele também não saísse vivo daquela sepultura, onde o lançavam.
Mas logo que a pesada porta bateu, e que ele sentiu-se amortalhado na umidade que lentejava das paredes, a vida exuberante que se expandia em todo o viço de sua jovem e robusta organização, reagiu fortemente contra o regelo e torpor do cárcere. Pensou que lhe cresceriam as forças como a Sansão, para abater os muros que lhe tolhiam a liberdade, e a abóbada de pedra que lhe esmagava as expansões da mocidade.