Na manhã do dia antecedente, em que se contavam nove de janeiro, o Doutor Vaz Caminha saiu de casa com destino à morada nobre de D. Fernando de Ataíde.
O gesto e o passo do advogado mostravam muita tristeza e gravidade maior da costumada. Quem o vira assim avançando lentamente havia de conjeturar que ia a alguma visita de pêsames, tal era o ar pesaroso e compungido que tinha sob a garnacha rapada.
No dia da prisão de Estácio e depois que o levaram ao Castelo do Mar, o advogado ficara ainda em palácio, esperando modestamente que chegasse a sua vez de ser admitido à presença do governador para requerer-lhe em prol da soltura de seu afilhado. Nisso entrou impetuosamente pelos paços D. Francisco de Aguilar, acompanhado do filho e do futuro genro. Os fidalgos foram logo introduzidos, como pessoas das mais qualificadas da terra.
O advogado suspeitou do motivo que os trouxera, mas não acertou com o fim a que vinham. Pensava ele que sabedores da prisão do moço, vinham para lhes fazer ainda maior carga, e piorar a sua condição; a verdade era outra. Revoltados os seus brios com o procedimento do frade bento, D. Francisco, apenas lhe referiu Fernando o acontecido, correu a palácio para arredar de si e dos seus a mínima solidariedade naquele ato; e ao mesmo tempo pedir ao governador com instância a soltura do moço. O orgulhoso castelhano não queria dissessem que se temera de um miserável rapazola, a ponto de valer-se para sua segurança da autoridade régia.
— O braço de El-Rei, dizia ele a D. Diogo, nada tem que ver nestas questões de honra.
— É escusado a insistência, Senhor D. Francisco! respondeu o governador enchendo a voz e dando-lhe um tom de inabalável firmeza. O mancebo permanecerá na prisão para onde o acabo de enviar, e pelo tempo que eu julgar conveniente.
O letrado, de junto do reposteiro onde se abancara, ouviu essas palavras e estremeceu. Compreendendo o motivo por que os fidalgos podiam desejar a soltura de Estácio, quase estimou a sua prisão; lembrando-se porém quanto carecia ele da liberdade, e que amargores estava àquela hora curtindo no cárcere, desanimou com a resolução do governador e a energia de que a revestira ele.
— Uma das minhas esperanças que se desvanece! murmurou. Que será das outras?
Retirados os fidalgos, e depois de boa espera, chegou enfim a vez do advogado. Vaz Caminha ia recheado de textos e armado de sua formidável dialética; falou primeiro em nome da lei, depois em nome de seus sentimentos. O governador o ouviu com a deferência devida aos seus créditos e saber: mas a resposta foi cortês e delicada apenas, não favorável.
— Sossegai, Doutor Vaz Caminha. Estimo pelo que valem a energia do caráter e a grande fortaleza de ânimo que descubro em vosso afilhado. Mas é necessário dobrar-lhe o orgulho, que pode eivar tão nobres qualidades. Em um ano vo-lo restituirei melhor do que é.
— Ao menos, me permitirá Sua Senhoria ir vê-lo à prisão?...
— Pesa-me negar-vos; mas há ordem positiva de conservá-lo no maior segredo. Talvez vos pareça nímia severidade; não pensareis assim quando souberdes que ele recusou a menagem do castelo, dizendo que sua palavra o acorrentaria mais que todas as masmorras de El-Rei!
— Oh! eu o reconheço nesse dito!
— Concordais então que procedo com justiça. Crede, doutor, que o voto de pessoa tão avantajada em saber como vós, satisfaz-me em extremo.
D. Diogo prezava as letras; a fineza era sincera. Quanto ao seu rigor para com Estácio, ele explicava-se não só pela altivez do mancebo e sobranceria com que se portara na prisão, como por uma razão oculta. O governador se agradara do jovem cavalheiro; e desejava abrir-lhe uma carreira brilhante; as ponderações de Fr. Carlos sobre as consequências funestas a que podia dar lugar o desafio com D. Fernando, não passaram desapercebidas; veio confirmá-las o açodamento com que o Senhor de Paripe insistia pela soltura do preso. O governador lobrigou em tudo isso a ameaça de uma vingança, que o amor de Inesita e o arrojo de seu amante lhe mostravam infalível; pelo que resolveu proteger a vítima fraca contra os poderosos inimigos. O único meio de que dispunha era a prisão, a qual tornou-se assim castigo ao mesmo tempo que proteção.
Vaz Caminha saiu desanimado de palácio. Começava a recear que tivesse comprometido a sorte de seu afilhado, impedindo pela manhã o duelo e a resistência já operada com a intervenção de João Fogaça. Foi desse passo ter com Álvaro de Carvalho, a quem referiu a prisão do moço.
O velho alcaide esbravejou de ira, e arrancou à força de puxá-los, um molho de pelos ríspidos do grisalho bigode.
— Eis aí em que deram as vossas bugiarias de frades e conventos, Vaz Caminha. Se me deixásseis o rapaz cá a meu modo, não havia de suceder isso. Estaria agora com um olho vazado, ou algum braço decepado, mas preso!... Com a breca juro-vos que não!... Preso!...
Caminha deixou passar a trovoada. Havia entre esses dois homens, de gênios tão diversos e profissões tão encontradas, uma solidariedade de sentimento em relação a Estácio. Tinham-lhe sido ambos pais desde a mais tenra infância: um fora pai do espírito e do coração, outro pai do corpo e dos dotes físicos. Cada um porém sentia não possuir mais que metade dessa criatura, e aspirava ao domínio absoluto; daí cenas tumultuosas que se originavam, intermináveis disputas, em que o velho soldado atirava contra a lógica inflexível do advogado, os pelouros e bombardas de suas juras e imprecações.
O advogado triunfara afinal, e devia, porque a sua força estava no coração; ele amava aquele menino como o filho de sua alma, enquanto que o velho alcaide tinha apenas por ele a afeição da afinidade realçada pela vaidade de se reviver no discípulo. Estácio para ele era a encarnação de sua mocidade; mas para o advogado era a concentração de uma existência inteira de sentimento, a transfusão de sua alma.
— Acabastes afinal, sr. alcaide? perguntou com serenidade o advogado.
— Se acabei!... Um dia inteiro não bastará para tudo quanto vos teria que dizer sobre este assunto. Conseguistes vosso intento; arredastes de mim o rapaz, primeiro para clausurá-lo num ninho de frades, depois para trancafiá-lo na cadeia! Tirai-o agora de lá!
— A esse respeito vim eu falar-vos!
— Ah! já careceis de mim?... Já o soldado velho presta para alguma coisa?... Aviai-vos como puderdes!... Eu não me meto nisso!...
— Mas escutai!...
— Não! não! não!... Trinta mil vezes não!... vociferou o velho com uma voz de bombarda.
— Quem vos diz o contrário? acudiu o advogado com o tom macio. Por dizer que vos vinha falar, não penseis que é para soltar o menino! De modo algum! Se eu estou com o senhor governador que ele precisa de uma lição boa!...
— Heim?... Que estais aí rosnando?... Lição por quê?
— É pouco andar por aí desafiando-se com gente poderosa, por não sei que amores...
— Então parece-vos isso?... disse o velho tremendo a cabeça branca como um camaleão.
— Pois decerto.
— Pois... pois... pois, calai-vos daí que não entendeis dessas coisas! Ide aos vossos alfarrábios. Fez muito bem! E eu vou dar-lhe um abraço.
— Heis de dá-lo!... retorquiu Vaz Caminha escarnecendo.
— E quem me há de impedir?...
O velho soldado precipitou-se pela porta afora, como uma torrente, e com poucos instantes irrompeu pelas escadas do palácio. Lá estava porém o rochedo frio, onde se devia pulverizar a onda dessa cólera impetuosa. O governador habituado àquele caráter indomável, o fez voltar manso como um cordeiro. Do mesmo modo que a riqueza e poderio de D. Francisco, ou a lógica e saber de Vaz Caminha, o arrebatamento de Álvaro de Carvalho nada conseguiu.
O advogado recolheu muito pesaroso e tão alheio de si, que apesar do recendente cheiro de alho que trescalava, deixou esfriar a sopa, com tanto desvelo preparada pela velha Euquéria. Todo esse resto do dia levou o bom velho em incessante cogitação; parecia que dentro dele se travara uma luta entre dois sentimentos, e o triunfo ora pendia para um, ora para outro. Afinal decidiu-se a vitória; o advogado ergueu-se com a energia de sua resolução, e disse:
— Perdoe-me Deus se faço mal!
Abriu a arca dos papéis; procurou em um dos escaninhos de segredo um velho pergaminho lacrado como um testamento, e depois de olhá-lo por muito tempo, sentou-se ao telônio, e cobrindo-o com outra capa, escreveu no rosto:
Declaro, eu Vaz Caminha, doutor pela Universidade de Coimbra e advogado nesta cidade do Salvador, que receando qualquer desgraça que me possa acontecer, deposito este papel no cartório do tabelião Belmude, para ser aberto depois de minha morte.
Na manhã pois desse dia se encaminhava o bom velho para a casa de Fernando de Ataíde. O fidalgo o recebeu de mau humor, com um modo descortês.
— Que quereis de mim, senhor? perguntou-lhe com rispidez. Não vindes por certo cumprir a promessa que fizestes de restituir-me o adversário na hora em que o exigisse eu!...
— Cesse a força maior que lhe impede a liberdade, e vo-lo restituirei ao menor aceno!...
— Bem vistes, pois estáveis em palácio, que nos empenhamos com todas as forças pela sua soltura; haveis de reconhecer quanto a desejava?...
— Oh! sei!... Mas nada conseguistes?...
— Nada, infelizmente.
— Pois, Senhor D. Fernando, disse o advogado usando do remoque em represália, já que tanto vos interessais por esse mancebo, animo-me a confessar o motivo de minha vinda. O que me trouxe foi a intenção de fazer-vos uma súplica em seu favor.
— Quereis divertir-vos à minha custa, senhor doutor? disse o fidalgo arrebatado.
— Não fostes vós quem primeiro lançou o remoque, e sobre uma afeição legítima e sincera?... Avaliai do que havia doer-me pelo vosso desgosto.
— Escusai-me; e se nada tendes mais que dizer-me... atalhou o moço erguendo-se.
— Tenho muito, ao contrário. Disse que venho fazer-vos uma súplica; repito, e crede que vos falo seriamente. Venho suplicar-vos uma graça!...
— Perdeis vosso tempo. Entre mim e esse homem só pode haver de comum, bem sabeis, o ódio e a vingança!...
— Estácio Correia nada quer de vós, e nada pede, Senhor D. Fernando. Não vos falo no seu, mas no meu nome... Ele não sabe, nem saberá nunca do passo que dei!
— Mas enfim, o que pretendeis de mim? Declarai-o de uma feita, senhor.
— Já vos satisfaço, disse o velho calmo e acenando ao fidalgo para sentar-se.
D. Fernando resignou-se a ouvir calado, como expediente para concluir mais depressa a prática.
— Os cavalheiros e homens de guerra, como vós, Senhor D. Fernando, costumam decidir seus pleitos e ganhar empresas com as armas na mão, em combate leal. Este que tendes em vossa presença, pobre velho acabado dos anos, é homem de paz, e escolhe para suas contendas armas mais tranquilas. O coração do adversário, que procurais trespassar com a ponta da espada, se esforça ele por tocar somente com a palavra. Não leveis a mal pois que venha eu, por tantas e tão fortes razões estranho aos vossos favores, falar-vos de objeto mais que muito delicado para ambos.
— Os prólogos são por demais longos!... atalhou o impaciente fidalgo.
— Em chegando ao epílogo talvez não penseis assim, retrucou o advogado.
Vaz Caminha revestiu-se de um ar de nobre franqueza. Uma expressão de sensibilidade derramou-se em sua fisionomia, como se sua alma terna se desdobrasse pelas rugas pálidas do semblante.
— Tenho setenta anos, senhor, e dessa longa existência mais de dois terços foram consumidos no rude labor da profissão. Arrancado cedo à família pelo estudo, sequestrado depois pelo trabalho, não tive tempo nem de amar, nem de ser amado. Deus me reservava essa ventura para consolo da velhice, dando-me um filho espiritual, e encarregando-o órfão aos meus desvelos. Não sabeis, nem avaliais, senhor, do que seja esse amor; é a procriação do espírito; tem ao mesmo tempo de pai e mãe; parece que esse tenro espírito desenvolvido e bafejado por nós saiu das entranhas de nossa alma; parece que o nosso pensamento lhe gera as graças infantis, depois as prendas da juventude, afinal as virtudes da idade viril. É a felicidade desse filho querido, única família minha, que vos peço de joelhos, senhor!... São estas cãs humilhadas a vossos pés, estas rugas surcadas pelas lágrimas, as minhas armas! Rendei-me o nobre coração, D. Fernando!...
As lágrimas corriam ao longo das faces do velho ajoelhado; e o moço sorria de desdém, sem fazer o mínimo gesto para erguê-lo.
— Sois moço, fidalgo, rico de bens e nobres prendas. O caminho da vida se abre para vós semeado de flores; basta-vos estender a mão para colher a mais formosa e mais altiva. Ele, moço como vós, mas deserdado dos bens da fortuna, descido do que foram seus pais outrora, órfão e infeliz, de tanto que vos sobra, nada lhe coube em partilha. Um amor grande, que ele não buscou, mas lhe foi do céu enviado, é toda sua riqueza e ventura. Deixai-lhe esse óbolo ao menos, e Deus abençoará vossa caridade tornando-vos em abundância essa esmola feita ao pobre velho e pai!...
D. Fernando que ouvira até então pasmo da estranheza do pedido, disparou em um riso sardônico.
— Oh!... Vosso pupilo, afilhado, ou o quer que seja, não está todo soberbo de ser amado e querido?... Que lhe posso eu dar, eu desprezado e escarnecido?...
— Não zombeis dos amores contrariados, que talvez breve os pranteeis e bem amargamente! disse o velho com o tom profético.
— Tendes usado e abusado da minha paciência, meu velho. Não vos parece que já é tempo de terminar a farsa?...
— Deveis-me uma resposta, senhor: a cortesia pede que a deis, boa ou má, porém comedida e urbana.
— Quereis uma resposta?... Eu vou dar-vo-la, e tal que há de satisfazer-vos.
O fidalgo aproximou-se do velho rangendo os dentes:
— Entre mim e este homem, já vos disse, só há, só pode haver ódio. Não vos coloqueis entre nós, velho; a espada que há de traspassar-lhe o coração bem pode de um revés aparar-vos as orelhas, que não cabem no barrete.
A fisionomia austera do advogado cobriu-se de luto e dó; ergueu os olhos ao céu, invocando talvez a assistência divina, e logo após abaixouos sobre o fidalgo, duros e severos como olhos de juiz supremo que condena.
— Eu vos agradeço, senhor, por me haverdes falado a linguagem do rancor e da maldade. Destes-me a força, que eu não teria talvez, se vos achasse a alma boa e bem intencionada. Destes-me a força de punir-vos a soberba!
— Estais louco, velho?... gritou Fernando.
— Sentai-vos e ouvi-me. Eu vo-lo ordeno em nome daquele de quem trazeis o nome.
— De meu pai?... acudiu o moço escarnecendo.
— E com a autoridade que me dá o seu testamento!
Essa última palavra foi de efeito mágico; o fidalgo demudou-se inteiramente; da mofa e escárnio passou à ansiedade.
— Naturalmente vos disseram, quando chegastes à maioridade, que vosso pai declarara na hora da morte ter feito seu testamento; mas que esse não foi encontrado.
— Como se acha ele em vossas mãos? E por que até agora o não apresentastes?...
— Breve o sabereis; e então julgareis melhor da falsidade de certo boato que naquele tempo correu!
— Qual boato? murmurou Fernando trêmulo.
— De vos haver vosso pai deserdado!...
— Restituí-me esse papel! Onde está ele?...
— Paciência, nobre senhor. Antes de desempenhar o encargo que me foi cometido, devo referir-vos uma história que foi passada há bem anos. Ouvi-me sem interromper, por mais estranhos que vos pareçam tais sucessos à vossa pessoa: a explicação virá depois.
O velho arrastou a cadeira para se chegar do fidalgo e começou de narrar com a voz surda, como se temesse acordar os ecos adormecidos nos recantos daquela habitação.
— Vivia nesta cidade no ano de 1586 uma donzela de nobre linhagem, ainda que pouco favorecida da fortuna; mas tão avessa lhe fora a sorte em bens, como pródiga se mostrou a natureza em prendas e graças. De todos os mancebos de então era a qual mais lhe admirasse a formosura e lhe gabasse a gentileza, mas só um teve a dita de cativar-lhe o coração, e bem o merecia. A gente o chamava o Donzel pela nobreza de seu parecer e gentileza de suas ações; ninguém o conhecia que o não prezasse.
“Mas era pobre, como a donzela; o que não impedia que se quisessem ternamente e se jurassem em segredo eterna fé e amor. Ricos das esperanças e afetos que lhes enchiam os corações, com esse tesouro desafiavam o futuro e volviam os dias sorrindo e cada vez mais embebendo-se um em outro, de modo que já não eram duas, mas uma só alma repartida por dois corpos.
“Não sabiam os pais desses afetos e nem por sombra os suspeitavam. Como seu maior desejo era a felicidade da filha, e cuidavam que essa era a da riqueza e estado, mal chegou aos dezessete anos trataram de achar-lhe marido nessas condições. Facilmente o tiveram; para tão formosa dama e tão prendada não era preciso buscar, senão escolher, pois se apresentavam a cada instante dos melhores. Escolheram um fidalgo de avultadas riquezas e nome ilustre, mas a quem já os anos haviam crestado a flor da idade. Não souberam a que açor iam entregar a tímida e inocente rola.
“Quis morrer a donzela quando lhe anunciaram os pais as próximas bodas; lágrimas, soluços, súplicas e rogos, tudo foi baldado: a palavra estava empenhada; a honra exigia. O Donzel não disse palavra; não sorriu mais; encontravam-no às vezes pelos ermos cruzando a passos lentos, e murmurando palavras surdas e entrecortadas. Chegou o dia do noivado; a festa foi suntuosa; levaram a donzela quase de rastos ao altar, lívida e exânime como uma virgem finada.
“O Donzel assistiu a toda cerimônia, embuçado, metido num canto escuro da igreja; e dizem que seus dentes rangiam mordendo as carnes do braço, enquanto os ossos da mão estalavam apertando o cabo da adaga.
“De volta da igreja estiveram os desposados no sarau até tarde da noite, em que recolheram às casas preparadas para os receber. Vinha a noiva de palanquim, pelo respeito de sua extrema fraqueza; o noivo montava um fogoso ginete de batalha, que ele manejava com destreza. Mas no dobrar a rua o animal empinou de repente, e arremessando longe o cavalheiro de encontro à parede, disparou pela rua afora como um raio. Houve grande confusão; baralhou-se o cortejo; apagaram-se as tochas, e durante algum tempo ninguém se entendeu com a balborda. Falavam todos à uma do acidente; no dizer de alguns fora um vulto embuçado, que surgira por davante, a causa da disparada do ginete; outros atribuíam aos fachos o espanto do animal.
“Enquanto isto passava, o corpo fraturado e sangrento do noivo era levado à casa em andas de braços; e trás ele, seguiu o palanquim e o cortejo, que mais parecia agora saimento fúnebre, do que companhia de bodas. Os pajens contavam no dia seguinte, benzendo-se, que na estrada tinham visto cruzar a porta e sumir-se pelos corredores o mesmo vulto embuçado de negro, à vista do qual se espantara o ginete; e inventaram a tal respeito não sei que conto de almas do outro mundo.
“Aplicavam os físicos o primeiro aparelho ao enfermo esposo, prostrado em leito de dor, quando do outro lado do edifício, em vasta recâmera, a linda esposa conchegava-se nas vestes nupciais trêmula ainda e palpitante, como a avezinha escapa às garras do gavião se encolhe no ninho ofegante e arrufada de susto. Coitada dela! Hesitava se devia agradecer a Deus a desgraça que retardara a sua desventura; e ao menor rumor de fora estremecia cuidando ver assomar-lhe por diante a figura sangrenta e lívida de seu marido que viesse tomar possessão dela.
“Nisto ouviu passos cautelosos; o coração congelou-se; as pálpebras caíram desfalecidas.
“A porta se abrira silenciosamente; e à frouxa luz da lâmpada velada surgiu um vulto negro e sinistro. Mas caindo o manto no instante em que os olhos da senhora descerravam, reconheceu ela seu namorado. Grito de alegria travado de pavor, escapou-lhe do seio; sufocou-o nos lábios a mão rápida e prudente do cavalheiro:
“— Juraste ser minha, Violante.
“— E fui e sou tua! Mas roubaram-me a ti para dar a outrem!...
“— Tu me pertences na vida e na morte! respondeu o cavalheiro.
“O silêncio da noite sepultou no mesmo antro os gemidos da dor e os suspiros da ventura. No dia seguinte havia mais uma pecadora que não pudera, na frase do Cristo, atirar a pedra à mulher adúltera. Ela enterrara nessa noite fatal três coisas: sua virgindade de donzela, sua honra de esposa, e sua legitimidade de mãe.
“Três meses levou o esposo enganado a restabelecer-se; três meses durou a felicidade dos dois amantes. Eles não tinham outro confidente mais que a treva da noite; a desoras uma escada de corda descia do balcão; um vulto subia ligeiro como sombra fugace; a janela cerrava-se e o anjo dos puros amores batia as asas e voava ao céu gemendo.
“Uma noite o cavalheiro não viu descer a escada, e ficou até a madrugada imóvel, olhando o balcão solitário. Outra noite, e outra, e outra, e muitas mais seguiram pelo mesmo teor. Era já passado cerca de um mês, quando ausentando-se o marido, ele tornou a penetrar ainda uma vez na câmera nupcial profanada. Vinha taciturno e sombrio; esteve muito tempo de pé sem proferir palavra, nem levantar os olhos. Afinal arrancou do seio a voz angustiada e ao mesmo tempo o punhal da bainha:
“— Mulher, tu vais morrer. Cumpra-se o juramento, que traíste. Serás minha na morte, já que o não podes mais ser em vida! Este punhal nos reunirá no céu!...
“A amante pôs nele os olhos serenos e doces:
“— E nosso filho?...
“Tudo compreendeu ele! O juramento que lhe dera de nunca pertencer ao marido, e morrer se fosse preciso para escapar-lhe, não tivera ela ânimo de cumpri-lo sentindo nas entranhas o filho do amor adúltero.
“O cavalheiro enterneceu-se e chorou; seu lábio procurou o lábio dela; não achou mais do que um soluço e esta palavra acre:
“— Não me toques, que já não sou digna de ti!
“Ele ergueu-se; abençoou-lhe o ventre e partiu sem mais palavra. Ninguém soube nunca onde foi, pois não houve mais na cidade novas dele.
“Meses passados, o marido da dama empreendeu uma exploração. Durante essa ausência nasceu o filho, de modo que a mãe pôde encobrir a época exata do nascimento. O fidalgo não concebeu a mínima suspeita; e na volta foi para ele um júbilo apertar aos braços o gentil infante.
“Decorreram anos; o menino cresceu em tamanho e prendas. O marido da dama sentia por ele mais que amor, adoração. Por esse filho dera quanto tinha e o mundo inteiro, se o tivera; agradecia a Deus não lhe conceder mais prole, para não ser obrigado a repartir com ela seu imenso amor de pai. A maior dor que já sentira fora a de separar-se dele, quando fazia a viagem do sertão, que costumava no meado de cada ano.
“Sucedeu que uma vez, tornando dessa viagem, chegasse à casa sem ser apercebido. Deixara atrás a comitiva; escoteiro apressava o passo ao cavalo para surpreender a esposa que o não esperava tão breve, e mais cedo abraçar o filho. Apeou no pátio; subiu aos saltos a escadaria, e foi direito aos aposentos da dama. Lá estava ela sentada numa camilha forrada de damasco, com o braço apoiado no reclinatório, e a mão espalmada na face mimosa. Seu filho brincava no chão com as figuras do tapete.
“Esteve o fidalgo da porta a rever-se um instante nesse quadro formoso de sua felicidade conjugal; ia já lançar-se para envolver esposa e filho num só abraço, quando um projetil impelido com força da parte de fora, veio cair no meio da sala. O menino soltou um grito, a dama ergueu a fronte espavorida e precipitou para o escrito; mas descobrindo com esse movimento a figura lívida e estática do marido, recaiu exânime sobre a camilha.
“O fidalgo fez-se medonho: o semblante fulo da atrabílis que a ira derramava; os olhos fundos e enterrados pela tumescência grande das faces; o riso mau da hiena; tal era o aspecto temeroso do esposo traído. Ele avançou e o passo era tão hirto, que lhe estalavam as juntas; chegando em face da dama apresentou-lhe o escrito aberto ante os olhos pasmos. Não o leu ela que a vista se lhe escurecia; deixou-se cair aos joelhos do marido, murmurando.
“— É chegada a minha hora, senhor. Ouviu a confissão desta infeliz.
“Enquanto o menino continuava a folgar a um canto, balbuciava a esposa trêmula ao ouvido do fidalgo a narrativa de tudo quanto passara. O esposo a ouvia com a cabeça vergada e a barba fincada no peito, imóvel, e embotada a consciência ao sentimento da tremenda verdade.
“— A escada de corda?... Onde está?... perguntou o marido.
“Passaram à recâmera. A dama abriu um cofre de charão, onde ficara intato desde a noite da separação, aquele instrumento de sua vergonha. Já então caíra a noite sombria; o fidalgo fechou as portas, foi ao balcão e deixando pender a escada, recolheu à sala. Com pouco assomou à janela um vulto embuçado, que saltou no aposento. Era o Donzel.
“Violante assistira a toda a cena, com uma serenidade de mártir; foi com um sorriso já celeste e imortal que saudou seu amante.
“Este mostrara surpresa encontrando ali um homem e reconhecendo nele o marido que desonrava. Ambos meteram mão da espada a um tempo: do terceiro bote a justiça de Deus punira o amor adúltero; entretanto poucos eram os cavalheiros capazes de resistir ao primeiro ímpeto do Donzel no combate. Quando o coração desfalece, afrouxa o mais valente punho.
“A dama atirou-se com uma velocidade espantosa sobre o cadáver do amante, e colheu-lhe nos lábios o último suspiro. Depois, com a boca tinta no sangue querido, voltou-se para dizer ao esposo:
“— Agora a mim!...
“Rangeram de sanha os dentes ao fidalgo; um instante ele tripudiou no frenesi da raiva; travando dos longos e finos cabelos da formosa senhora, que fazia girar em torno, com o punhal suspenso na outra mão sobre o níveo colo, ele ansiava ferir e hesitava lembrando que a frágil criatura não tinha mais que uma vida, e lhe eram precisas mil para o rancor tamanho que sentia dentro de si.
“De repente passou-lhe de relance no pensamento uma ideia horrível que o fez rir, um riso de carrasco.
“— Tu hás de viver!...
“Atirou a um canto o corpo da esposa, e fechando por fora as portas, despediu os lacaios a vários lugares para os afastar durante a noite, proibindo aos criados subir ao sobrado. Feito o que embuçou-se e saiu apressado, caminho da ribeira; chegou às tercenas onde desembarcam os negros das costas da Mina e Guiné; apesar da hora obteve que lhe mercassem um que pagou a peso de ouro. Escolheu o mais boçal; disforme arremedo de gente, imundo, comido de lepra e infeccionado da cruel enfermidade do escorbuto, que trazem de África.
“Segredou o fidalgo com o língua algumas palavras que o fizeram arregalar os olhos de espanto:
“— É uma aposta que fizemos, alguns cavalheiros e eu!... Queremos rir à vontade!
“O língua parece que compreendeu, pois nada mais observou; e voltando para o escravo começou de falar-lhe no dialeto africano. O negro arregaçou os lábios mostrando os dentes, num sorriso que parecia grunhir. Seguiu com o trote miúdo do cão o fidalgo que estugava o passo; breve chegaram ambos à porta da casa, que entraram silenciosos e desapercebidos. Já eram dez horas; a cidade dormia.
“Chegados à porta da recâmera, o fidalgo empurrou o monstro e fechou a porta. O que se passou dentro daquela recâmera onde jazia a dama inanimada, ninguém o soube; deve de ter sido uma coisa horrível. O marido correra como louco até a porta da rua; e de lá voltara ainda mais rápido e delirante. Quis entrar; caíra-lhe a chave no corredor escuro. Então bateu como um furioso com o crânio e o peito de encontro à porta, até que a despedaçou. A dama estava inanimada sobre o tapete; o cadáver estendido do outro lado; e o negro acocorado a um canto como um cão de guarda.
“A um gesto do fidalgo, ele tomou o espojo do cavalheiro e desceram ambos ao horto. Cavaram toda a noite; a cova recebeu dois cadáveres, o do cavalheiro morto e o do africano vivo. No dia seguinte, da cena lúgubre, que se representara nessa casa, não apareciam vestígios.
“A dama perdera a razão; meses depois a recuperou com a consciência de uma dor maior, se é possível, de que sofrera. Sentiu que um ente vivia em suas entranhas; e recordando a noite fatal e o sonho horrível que a precipitara na demência, só o heroísmo da maternidade pôde jungi-la à vida ignominiosa que lhe fizera a brutal e espantosa vingança do marido. Viveu para esse novo filho do ódio, como dantes vivera para o filho do amor. E, como são impenetráveis os arcanos do coração!... Essa criatura, fruto de uma quase bestialidade feroz, ela a adorou com extremos de ternura, ainda antes de nascer! Quando o instante do livramento aproximou-se, suspeitando que o marido quisesse ainda estender sua insaciável vingança à mísera criatura, com o auxílio de uma escrava dedicada a enjeitou.
“O fidalgo rugiu de cólera com o desaparecimento; porque essa criança contava ele que fosse o instrumento de sua atroz vingança, recordando vivamente à mãe a cada instante a infâmia a que ela fora arrastada. Foi então que assolado pelas paixões odientas, consumido pela contínua tortura e sentindo aproximar-se sua última hora, concebeu esse homem rancoroso a ideia de prolongar à vítima o suplício, e estender além-túmulo a tremenda punição que infligira à esposa adúltera, castigando-a até na geração espúria.
“Escreveu no seu testamento a história que ora vos refiro sem nada omitir; e concluiu deserdando aquele que passava por filho seu de todos os títulos e haveres, transmitindo-os para esse enjeitado, fruto da união brutal; porque dizia ele: “Esse, meu filho é, filho da minha vingança. Gerou-o o ódio meu”. Mas o requinte da crueldade se revela mais ainda nas circunstâncias que acompanharam essa disposição de última vontade. Quis ele que seu testamento só fosse aberto quando o deserdado chegasse à maioridade; nessa ocasião se convocariam os parentes e pessoas principais, e em presença de todos se faria a leitura solene. Pensava ele que assim já moço e afeito ao fausto e esplendor da vida fidalga, sentiria mais o deserdado o golpe, do que se o recebera na infância.
“Ao mesmo tempo anunciou à mísera mulher a feitura desse testamento horrível, não esquecendo advertir-lhe que o deixava como o espectro de sua vingança, que a seguiria na vida, podendo aparecer a cada instante, e torturando-a sob essa constante ameaça. Para esse efeito ficaria depositada em mão segura, ignorada por todos. Essa foi a do seu letrado, de quem fiou tão horrível depósito.
“Quando estava a decidir, pediu que lhe chamassem o letrado; então lhe prescreveu que guardasse em seu poder o testamento até que fosse chegado o momento de proceder à sua abertura; e caso executasse fielmente a incumbência, seria recompensado com uma avultada quantia, legada em codicilo. Suspeitou o advogado desse mistério, e exigiu para encarregar-se do mandato as razões do estranho proceder.
“— Vou confiar-vos este terrível segredo, respondeu o fidalgo; tanto mais quanto é necessário que vos compenetreis de minha vontade para bem representá-la na terra, quando nela já não estiver. Este testamento é minha alma que vou abrir aos vossos olhos.
“Mostrou então uma cópia do horrível testamento, que o letrado leu horrorizado.
“— Rasgai, senhor, rasgai este abominável parto de vossa estulta vingança. Julgais estar falando a um algoz, ou a um homem da lei e advogado da justiça?...
“— Por isso mesmo que sois advogado da justiça, não permitireis, que logre o filho adúltero o nome e a fazenda do esposo traído!...
“— Este direito tendes de deserdá-lo; mas invocai a lei, não a infâmia.
“— Invoco a verdade que devo a Deus e aos homens. Se fiz mal, vou ser punido. Quanto a vós, sois depositário do meu testamento, e eu virei do outro mundo tomar-vos conta do modo por que o heis de cumprir.
“Debalde o letrado esgotou razões e conselhos; tudo foi baldado; correu a casa em busca do papel; já o enfermo tinha expirado sem quitá-lo do tremendo depósito. Mas se o guardou inviolável, condenou-o logo a eterno silêncio. Talvez teve a viúva alguma suspeita, porque várias vezes procurou-o para falar-lhe do assunto; mas sem trair o segredo de que era depositário, conseguiu dar-lhe consolo e ânimo para educar seu filho, e deixá-lo feliz e estimado.”
Acabou assim o doutor a história. Diante dele, esmagado pela tremenda revelação, D. Fernando estava inerte e estúpido. A princípio, quando o advogado começara a narração, a sua ansiedade crescera até que a luz se fizera em seu espírito; e veio a prostração e o aniquilamento.
— Sabeis quais foram as figuras dessa lúgubre tragédia? perguntou o velho.
O cavalheiro mordia nos lábios o soluço rebelde: a sua pungente atitude respondia por ele.
— A cena foi nesta mesma casa. Aquela porta é a da câmera nupcial; desta janela vê-se o horto...
— Calai-vos, demônio!... gritou o moço com os cabelos erriçados.