Na véspera ficava Estácio no seu cárcere, coacto sob a impressão poderosa da carta de seu mestre e amigo. A liberdade era sem dúvida coisa de muito preço para que a desejasse ele ardentemente; mas o seu coração liso e a sua razão direita não podiam ficar surdos à voz austera do velho advogado, falando em nome da honra e virtude.
— Sossegai, mestre!... murmurou como se Vaz Caminha o ouvisse. Não sairei daqui assassino.
Escondeu entre o corpo e a camisa os objetos que lhe enviara o velho, e apagando o rolo, estendeu-se sobre a pedra, como na véspera, não para dormir, mas para meditar durante as duas ou três horas que faltavam para meia-noite.
Vaz Caminha lhe pedia a procuração para ir ao Rio de Janeiro receber o roteiro e pô-lo a bom recato. Recordando a partida do P. Molina, Estácio compreendia de quanta urgência era prevenir, se ainda fosse tempo, as maquinações do frade. Mas ao mesmo tempo temia, já pelo advogado a quem semelhante viagem seria por demais penosa e arriscada, já pelo tesouro guardado apenas por um velho débil e desprotegido de própria ou alheia força.
Os assomos de uma impetuosa impaciência borbotavam-lhe no coração e subiam-lhe à cabeça abrasada: sentia-se sufocar naquele cárcere, pequeno demais para conter os ausos de sua coragem.
A declaração jurada de D. Fernando, que o advogado pensou devesse amainar o seu desespero e impaciência, ao contrário mais os insuflaram. Reanimado outra vez nas doces esperanças de seu amor, que o impossível como que esmagara, o mancebo ansiava agora por conquistar nome, posição e riqueza para oferecer a Inesita.
Enleado nestas cogitações revolvia-se ele sobre o frio lajedo, quando o mesmo sussurro de vozes que na véspera o surpreendera, veio outra vez distraí-lo. Ou súbita inspiração, ou necessidade que sente o espírito fortemente ocupado, de uma diversão, o mancebo ergueu-se e obedeceu ao impulso de curiosidade que espertara nele. Bateu o fuzil, acendeu o rolo, e examinou atentamente o lugar por onde as vozes pareciam sair do chão. Retirando o toro de pau, descobriu então à claridade da candeia o que a dúbia luz da seteira não lhe deixara ver durante o dia. O cimento da laje onde repousava a cabeça, fora todo aluído; com o auxílio do prego introduzido nas fendas pôde levantar um canto da pedra.
Nisso lembrou-se que a luz o podia denunciar; ficando no escuro, ergueu de todo a laje que era grossa e bastante pesada: imediatamente refrescou-lhe o rosto uma baforada de ar encanado. Estácio era um espírito observador; e pois essa circunstância lhe indicou logo que o buraco tinha outra boca, e que não estava fechada naquela ocasião. De repente ocorreu-lhe que o seu antecessor de cárcere ali falecera depois de muitos anos de prisão; e era bem provável fosse ele quem preparasse aquela mina para uma evasão que não conseguira efetuar.
— Sem dúvida ele se comunicava com os vizinhos.
As vozes tinham emudecido. Estácio sondou a mina com o braço, e nada encontrando de suspeito, arriscou a cabeça, depois os ombros, e afinal todo o corpo. Formava a solapa um arco de círculo que se estendia através do alicerce por baixo do pavimento do vizinho cárcere. A suposição do mancebo não era, como sabemos, destituída de fundamento; ele estava na mina aberta por Staed.
No momento em que Estácio chegava ao ponto de intercessão onde se reuniam os três ramos comunicando com a galeria e os cárceres vizinhos, Beltrão erguia a laje e chamava por Hugo. Entre ambos teve então lugar a prática sabida, de que Estácio não perdeu uma só palavra. Imediatamente concebeu ele não só a ideia de sua evasão, como o plano de fazer abortar a fuga dos dois prisioneiros.
Quando pois a palavra do santo foi transmitida por Beltrão aos prisioneiros, o mancebo que a ouvira, ganhou a galeria logo após os flamengos, passou incólume entre as sentinelas, e chegou às ameias onde encontrou o indivíduo que parecia adormecido. Esse era Esteves, bem acordado, e esperando a hora de meia-noite para acabar com a incumbência que lhe dera Vaz Caminha. Reconheceu o pescador a Estácio quando este o apalpava, e felizmente foi tamanha a surpresa nele de o ver ali, que embargou-lhe o menor gesto ou palavra. Era o tempo em que o estudante também o reconhecia:
— Silêncio!...
E pendurou-se à ameia para escorregar ao longo do muro. Esteves que de manhoso se embrulhara na adriça, passou a ponta dela ao mancebo, e instantes depois estavam ambos no mar, nadando de mergulho, para que os não descobrissem do barco.
Vogavam o Anselmo e sua gente pouco avante, seguindo na direção das tercenas. Os nadadores cortaram em linha reta; ao pisarem terra, surgiu-lhes Gil que esperava a volta de Esteves, e cuidou morrer de alegria reconhecendo seu querido amo e cavalheiro.
Seguindo a praia deitaram-se a correr para esperar os fugitivos no lugar do desembarque. Estácio deixou Esteves de espreita ali e seguiu com Gil até a Rua da Palma a pista dos fugitivos. Entrados que foram estes, o estudante passando revista à casa, deparou com a corda suspensa à janela por onde havia descido o Anselmo, quando partira a toda pressa para o Castelo de Santo Alberto.
Em qualquer outro caso, Estácio teria escrúpulo de penetrar furtivamente na casa alheia; mas tratava-se de graves interesses da república, e pois não hesitou. Foi bem compensado de sua fadiga; as palavras trocadas entre o rabino e os flamengos lhe revelaram uma e a mais terrível parte da trama dos judeus, por ele ainda ignorada: o plano da rendição da Bahia aos holandeses.
Estácio sentiu ferver-lhe o sangue de indignação. Deixando Gil de alcateia em frente à casa do judeu, deitou a correr para a morada de Mariquinhas dos Cachos. Sabia pelo que ouvira que tinha diante de si três horas; mas a impaciência dava-lhe asas. Não encontrando Cristóvão, foi ter com ele perto da casa de D. Luísa de Paiva onde se achava com João Fogaça.
Que serviço ali prestou ao amigo e como dele se despediu, é já sabido.
Entrando na cidade, Estácio e sua gente subiram a Ladeira da Palma. O vulto de Gil desentrouxou-se do vão de uma porta onde estivera agachado.
— Ainda não voltou?
— Ainda não! respondeu o pajem.
— Houve coisa de novo?
— Um defunto que atiraram lá, no meio da rua! balbuciou o menino trêmulo e benzendo-se.
— Onde?
— Seguindo deste mesmo lado, quase à esquina.
— Espera que volte o outro!... Eu estarei na praia.
Estácio deixou um índio com Gil, e seguiu rua acima. No lugar indicado viu o corpo de que lhe falara o pajem, e pelas roupas, mais que pela fisionomia, julgou reconhecer o alferes; ele não tinha porém tempo para esperdiçar em investigações que reservou para mais tarde. Chegou acompanhado de sua gente à ribeira, perto dos trapiches. A sombra de Esteves destacou-se de uma pedra com a qual formava uma massa compacta.
— Dormem? perguntou Estácio.
— Sono velho!... Se esvaziaram o odre!
— Onde estão as cordas?
O pescador mostrou um rolo de cordoalhas de barco.
— Bem; esperarás aqui por Gil.
Estácio voltou a seus homens e transmitiu-lhes em termos breves as suas determinações, mostrando-lhes a tiro de berço da praia a chalupa de Pedro que as ondas balouçavam docemente. Logo foram todos despindo lentamente as roupas e armas pesadas, que deitavam dentro da canoa de Esteves ali arrastada como por acaso.
Nus, com a adaga nos dentes e uma corda amarrada à cintura, escorregaram pela praia e nadaram para a chalupa. Saltar pela borda, cair de chofre sobre os nove remeiros adormecidos, amarrá-los e tirar-lhes as roupas como quem descamisa espigas de milho, foi para Estácio e sua gente negócio de minutos. Os surpreendidos estremunharam seu tanto, soltaram arres e juras, mas a adaga que lhes reluzia ante os olhos, ou a palavra que lhes soou ao ouvido, aquietou-os por encanto.
— Se mexes ou falas, morto és! disse cada um ao seu vencido.
Efetuada a captura da tripulação do barco, foi esta, com exceção de Pedro, transportada para a praia, a uma distância considerável, e enfileirada como toros de madeira sobre a areia. Aí os deixou Estácio guardados por um dos índios e por Gil:
— Se alguém der o menor sinal de querer bulir ou falar, apertem-lhe o gasnete, e mergulhem-no dentro d’água.
Ouvindo a recomendação e o gesto com que a recebeu o índio, os oito malandros atados de pé e mão morderam a língua para tirar-lhes a vontade de fugir, se tal tentação o diabo lhes metesse.
Daí despediu Estácio o pajem, apesar das súplicas que ele fez para acompanhar seu cavalheiro naquela empresa:
— Não, Gil: tua presença nos trairia.
— Posso me encolher num cantinho!...
— Demais, é preciso que fiques para contar ao doutor o que é passado. Diz-lhe que amanhã nos veremos!
Força foi ao menino ceder.
De volta ao barco Estácio ordenou a Antão, Esteves e aos índios que vestissem as roupas dos pescadores e guarnecessem a cinta com as armas que tinham trazido e as que acharam no barco.
Pedro, amarrado como os companheiros de pés e mãos, tendo na boca uma mordaça de pano que lhe introduzira o Antão, jazia estendido no fundo da catraia e por baixo dos bancos. A um sinal de Estácio, os índios o puseram em pé, diante do mancebo.
— Pedro!
O pescador fez um gesto de surpresa.
— Admira-te que saiba teu nome?... Coisas piores sei eu a teu respeito, que contadas ao senhor governador agora, te fariam amanhecer pendurado na forca do Rosário!
Pedro levantou as mãos engalfinhadas e súplices.
— De combinação com outros, destes escapula a dois flamengos, presos de Estado, que estais aqui esperando para conduzir a Itapoã, onde se acham os navios de sua nação com quem passais contrabando!
O mísero fungou pelas ventas um soluço, único sinal que ele pôde dar de sua aflição.
Estácio armou um laço na ponta de uma corda, e passou-o ao pescoço de Pedro.
— Ora bem; abri os ouvidos e escutai. Tendes a escolher entre duas coisas; este baraço amanhã na forca e mesmo aqui esta noite, conforme a vossa impaciência; ou a escapula, e por cima a bolsa de um dos flamengos, que há de vir fornida de boa chelpa pelo velho judeu. Qual preferis? A corda?...
Pedro abanou fortemente com a cabeça.
— Ah! sois homem de juízo; agrada-vos mais a segunda! Pois está em vossas mãos. Ides responder com verdade às minhas perguntas, na certeza que a mais pequena mentira custar-vos-á a vida.
O mancebo voltou-se para Antão:
— Tirai-lhe a mordaça; mas caso ele levante a voz meio tom além do que é necessário, apertai o baraço sem dó.
— Estais ouvindo, malandro?... Tento com a língua!
Logo que o pescador teve a boca desentupida, começou o interrogatório:
— Qual o sinal para os navios flamengos?
— Em chegando a tiro de falcão, um grito.
— Dai o tom desse grito; mas cuidado! Sem levantar a voz.
O pescador obedeceu.
— Isso é o grito da gaivota!
— O mesmo.
— E por que não o dissestes logo? Estou vendo que serei obrigado bem contra meu coração a mandar-vos enforcar.
— Mas eu não menti!... murmurou o rapaz trêmulo.
— Se não mentiste de palavra, mentiste de pensamento, subtraindo parte da verdade. E depois, ao aproximar dos navios?
— Três salvas de remos na distância de um cabo.
— E para atracar?
— Nada! Eles me conhecem.
— Estais mentindo. Não se entra a bordo de navio armado em guerra, sem trocar uma senha. É o mesmo que em um forte. A senha?...
— Nenhuma, já disse!...
— Apertai o baraço, Antão! disse o mancebo.
Quando a corda já o sufocava, o pescador levantou a mão, com gesto desesperado e borbotou esta palavra:
— Moisés!...
— É esta a senha?
— Senhor, sim.
— Quantos são os navios flamengos?
— Dois.
— De que lote?
— Um bergantim e uma escuna.
— Qual é a tripulação de cada um?
— Não posso saber ao justo!
— Orçai pelo que viste.
— O bergantim há de ser sessenta e a escuna trinta!
— Onde estão os navios?
— Além de Itapoã.
— A âncora ou a vela?
— A unha d'âncora; prontos a partir.
Estácio refletiu:
— Como se chama o homem que acompanha os flamengos?
— Anselmo.
— Ele fica na praia, ou embarca com os outros?
— Embarca.
— Conhece-te ele?
— Muito!
Estácio refletiu um instante, ao cabo do qual ordenou a Antão que de novo amordaçasse o pescador e o deitasse no fundo da catraia.
— O prometido?... balbuciou o pescador.
— Quando chegarmos ao ajuste de contas.
— Hã!... Cuidavas tu, marreco, que te havias de pôr ao fresco tão depressa!... exclamou rindo-se o Antão.
O mancebo pôs Esteves ao leme; segurou no croque, e ganhou a proa, onde esperou de pé, encostado ao fuste, e com os olhos pregados na Ladeira dos Padres que ficava de esguelha:
— Armai os remos e pronto ao primeiro sinal! dissera ele ao Antão.
Os oito remos, quatro por banda, encaixados nos toletes, ficaram com as pás erguidas, como as asas abertas de uma gaivota prestes a cortar as ondas.
Não tinha decorrido um quarto de hora, quando desembocou na ribeira pela rampa um grupo de cinco pessoas. Eram uma dama e quatro homens; destes Estácio reconheceu os dois holandeses e o Anselmo que lhes servia de guia; o último dava mostras de judeu pela roupa talar. Estácio fez o sinal a Antão, e os oito remos fendendo cadentes as águas, impeliram com velocidade a catraia para a praia. Receando que a falta de Pedro pudesse dar suspeitas ao Anselmo e fazer gorar todo o plano o mancebo resolvera afastar esse obstáculo. Abicar à praia, quando lá chegassem os flamengos, incutir-lhes o terror de um imaginário perigo, disfarçando com uma bebedeira o pretendido sono de Pedro, e finalmente embarcar de supetão os dois fugitivos, largando a catraia a tempo de deixar em terra o filho da Eufrásia, era o expediente ousado de que se pretendia servir o estudante. Caso falhasse, a força supriria o ardil.
Já tocavam terra, quando do lado da Vitória apareceu o vulto de um homem, que parecia nu, a correr ao longo da praia na direção da barca, e gritando a toda força dos pulmões:
— Traição!...
Fora o caso que um dos remeiros tripulantes da catraia, amarrados e entregues à guarda do índio, achando-se deitado de bruços sobre uma casca de ostra que ali jazia entre a areia, conseguira calcando sobre ela, cortar os laços que lhe prendiam as mãos. Depois manhosamente desfizera o nó das cordas que peavam, e apenas achou ensejo favorável, de um pulo pôs-se fora do alcance do índio e deitou a correr para o lado, onde avistara os flamengos, esforçando por dar-lhes rebate.
Estácio adivinhou o que passara; mas não desanimou:
— Sem perda de tempo!... Embarcai!... Espiam-nos!... disse antes mesmo de atracar.
— O Pedro?... Onde está o Pedro? perguntou Anselmo surpreso.
— Não o vedes ali espojado com a carraspana que tomou?... Aviai ou não respondo pelo que acontecer.
Nesse instante o remeiro esbaforido gritou como desesperado:
— Traição!... Traição!...
Ia talvez dizer mais; porém caiu redondamente por terra; a seta do índio o havia traspassado.
— Estais ouvindo?... perguntou Estácio. É um dos nossos que eu pus de vigia.
— Vinde, pai! disse a voz maviosa de Raquel.
E saltou a primeira na chalupa; os holandeses ajudaram o velho judeu a embarcar e saltaram logo após. Imediatamente ao forte impulso do croque manejado por Estácio, a chalupa afastou-se de súbito e vigorosamente. O Anselmo, que já tinha o pé na borda, estrebuchou no raso da maré.
— Com mil diabos!... exclamou ele erguendo-se e correndo para o barco. Não podias esperar, bruto!...
— Quem embarcou, embarcasse, amigo!... Estica! Força! disse para os remeiros.
Os índios deitaram-se sobre os remos e a catraia fendeu garbosamente as águas, fugindo de terra.
O Anselmo acompanhou-a da praia com um rosário de imprecações ao maldito catraieiro; mas lembrando-se do grito que haviam soltado e do aviso relativo à gente suspeita, foi tratando de pôr-se em segurança.
Entretanto prosseguia a catraia a sua rápida singradura, mar em fora. Os dois flamengos sentados à popa praticavam à meia-voz em sua língua; Raquel olhava as estrelas; o velho rabino meditava, calculando quantos mil cruzados lhe custava o heroico sacrifício feito à religião. Estácio, sentado ao leme, não perdia um só de seus gestos, apesar da escuridão da noite. Os índios esticavam os remos, e o Antão, colocado no primeiro banco, remexia-se de impaciência.
Deixaram à esquerda a Ponta do Patrão, e seguiram fronteiros com a costa que se prolonga até o Rio Vermelho. Ventava fresco de nordeste; mudado o rumo podiam agora navegar entre bolina e seis quartas, bordejando ao largo.
— Pano fora!... disse Estácio.
Ergueu-se o Antão de um salto, e ajudado por dois índios tirou do fundo o mastro da vela grande para armá-lo, enquanto outros desenrolavam a bujarrona à proa.
— Olha a escota!... gritou o antigo contramestre atirando a ponta da corda a Esteves.
Começaram então a desfraldar a vela, mas com tal desazo e confusão que os dois flamengos, atentos à manobra, trocaram um sorriso de muda e íntima satisfação. Foi o orgulho nacional dos sucessores e rivais dos intrépidos navegantes portugueses, que se expandiu no coração dos dois prisioneiros. Mas outro sentimento os agitara, se eles pudessem adivinhar qual o motivo oculto daquela confusão. Não era decerto o que pensavam. Antão era um antigo marinheiro tostado aos sóis da Índia, digno êmulo de Caminha; e melhor marinheiro do que o selvagem americano não existiu ainda.
De repente a grande vela soltando-se do mastro, caiu sobre os passageiros e os envolveu; ao mesmo tempo Estácio e Esteves de um lado, Antão e os índios do outro, saltaram e subjugaram os três homens que antes de voltarem a si da surpresa estavam atados de pés e mãos, amordaçados e estendidos no fundo do barco.
— Metei-lhes bastante estopa na boca e nos ouvidos.
A judia ficara imóvel de espanto e de indignação; insensivelmente levou a mão ao punhal de madrepérola que trazia à cinta, mas rejeitou-o desdenhosamente.
Estácio visitou as algibeiras dos presos; além das bolsas bem fornidas, achou em poder de Hugo Antônio, escondida no peito entre a carne e a camisa, um grosso e largo cartapácio, que ele contava encontrar, depois da conversa que ouvira. Era realmente a missiva dos rabinos da Bahia, em nome de seus irmãos do Brasil.
O mancebo guardou consigo, no mesmo lugar que o flamengo, aquele precioso documento, dirigindo ao pescador e ao contramestre uma recomendação:
— Se eu sucumbir, tirai-o daqui, e levai-o em meu nome ao governador. Em caso algum, que ele caia nas mãos do inimigo!...
A vela foi desfraldada ao vento; impelida agora pela rajada fresca e pelos oito remos vigorosos, a catraia voava sobre as ondas como um espadarte.
Estácio voltou-se então para a linda judia que assistira com a mesma altiva impassibilidade a toda esta cena, e dirigiu-lhe a palavra com polidez:
— Não contava, senhora, com a vossa presença neste barco, a semelhante hora da noite; e não vos ocultarei que muito agradável em outra ocasião, neste momento me embaraça mui seriamente.
— Tendes um meio de livrar-vos dela; matai-me.
— Não sou um assassino, nem El-Rei a quem sirvo carece de vossa vida, mas unicamente do vosso absoluto silêncio. Não ousando eu pôr mãos em uma dama, para reduzi-la à posição destes homens, sou forçado a empregar o único meio que me resta.
— Qual, senhor?
— Vou deixar-vos em terra por algumas horas, durante que executo a empresa a que me destino. Ficareis aí até que eu volte para receber-vos.
— Juntamente com meu pai?
— Um desses homens é vosso pai? Sem dúvida o judeu Samuel Levi?... Não, esse por segurança devo conservá-lo em meu poder.
— Então onde ele estiver, estará sua filha. Quanto ao meu silêncio, podeis contar com ele; vou dar-vos um juramento.
— Menos que um juramento; vossa palavra, senhora, me bastaria, se fosse eu o empenhado neste objeto; preferira perder-me a duvidar da vossa sinceridade. Mas em negócio do Estado não posso fiar o êxito de uma empresa da boa-fé de ninguém. Portanto permitireis que vos conduza à terra.
— Pois bem, senhor, dai-me os instrumentos precisos, e eu mesmo me condenarei ao silêncio e à imobilidade para garantia vossa. Prefiro esta humilhação a que me separem de meu pai.
— Mas atendei que ides correr conosco perigos imensos.
— Eu os arrostarei de bom grado; não há maior para mim do que a separação a que me quereis forçar.
— Faça-se segundo a vossa vontade.
O estudante sentado à popa, pusera de lado uma das bolsas, que reservava para Pedro, e esvaziando a outra sobre o banco, contou as moedas. Esse mancebo tinha o talento de César: maximus in minimis; ele sabia curar das pequenas coisas no meio das maiores empresas, o que foi uma das bases da glória daquele grande capitão e político.
A bolsa continha cem moedas de meias doblas, o que orçava em cerca de seiscentos e quarenta mil réis.
— Sois dez! disse ele. Cabem oito moedas a cada um, e vinte ao capataz.
— E vós, Sr. Estácio? disse Antão.
O mancebo sorriu; ele recordou-se do seu Plutarco, na vida dos homens ilustres, e de uma passagem que lera aí sobre Alexandre; respondeu parodiando a resposta do filho de Filipe aos seus generais:
— Eu, reservo-me a esperança!...
Por ordem do estudante os dois flamengos foram separados, um à popa, outro à ré da chalupa.
— Tirai a mordaça a este; mas tapai os ouvidos ao de lá.
Estácio queria interrogá-los:
— Que nome tens?
— Hugo Antônio!
— Sabes a sorte que te espera. Queres a vida salva?
— Com que condição?
— Em chegando à fala dos navios, dirás a senha para que nos recebam como amigos.
— Uma traição! Contra os meus compatriotas?
— Em paga daquela que vos tirou de onde estáveis. Vamos, resolvei!
— Por tal preço me assegurais vida e liberdade?
— Liberdade, não; a vida unicamente. Voltareis ao vosso antigo cárcere ou a outro mais seguro!
— Recuso; antes a morte do que o novo cativeiro.
— É vosso gosto? Se soubésseis que gênero de morte vos espera, talvez não fôsseis tão fácil na escolha. Dizei-lhe, Antão, como pretendeis tratá-lo.
— Com o maior mimo!... Assá-lo, não em grelhas, como os hereges da sua casta dele fizeram ao bom São Lourenço, mas numa sertã, com alho e toicinho!...
— Aí vo-lo entrego!...
Estácio proferiu essas palavras em tom decidido, e afastou-se.
— Esperai!... balbuciou o mísero flamengo.
— É tarde, amigo! disse o mancebo sorrindo à sorrelfa.
— Outra vez; se ressuscitardes, sereis mais prudente!... acrescentou filosoficamente Antão.
Estácio fez igual interrogatório a Dick; mas o altivo flamengo, de ânimo inabalável, não se dignou de responder; apenas quando o mancebo lhe ofereceu a vida em troca da traição, ele sorriu com desprezo.
— Não me conheces, português!
O mancebo cravou os olhos no semblante enérgico do inimigo e pronunciou com firmeza e pausa esta ameaça:
— Ouve bem, flamengo. Logo que estejamos à fala dos navios, tu hás de dar-lhes a senha para que nos recebam como amigos. Eu não entendo tua língua; porém ao menor sinal suspeito, minha adaga te cortará a palavra na gorja.
Dick foi de novo amordaçado, enquanto Estácio satisfeito da resulta de seu plano, murmurava entres si:
— Calculei bem!... A humanidade não está ainda tão degenerada, pois entre dois homens, um prefere a honra à vida!
Um vulto negro como o dorso de um cetáceo adormecido à tona d’água foi, ainda longe, assomando pela proa.
— Vedes? perguntou Estácio.
— A Ilha de Itapoã?... disse o Antão.
— Ali está o inimigo; ali vamos nós.
— Bem me parecia!...
— São dois navios, um bergantim e uma escuna.
— Dois! exclamou Gonçalo.
— Parece-vos demais? perguntou o mancebo, pensando que o velho tinha medo.
— Sem dúvida! retrucou o marítimo: falta-nos gente para tripular a ambos.
Estácio riu-se:
— Para a viagem que têm a fazer, não carecem. Escutai; é o momento de comunicar-vos a todos o plano; daqui a um instante será tempo de obras, não de palavras.
Ao aceno de Antão os índios estenderam o pescoço sobre os remos para escutar, e por alguns momentos ouviu-se o murmúrio da voz do mancebo de envolta com a surdina das vagas, que babujavam nos flancos da catraia.
Um gazeio de admiração escapou dos lábios dessa gente afeita às lutas desde o berço, e para quem uma nova espécie de perigo era distração e sainete.
— O risco é igual para os que vão como para os que ficam. Escolham!...
— Fico eu e este caboclo! disse o Antão apontando para um índio robusto que remava na frente.
— Esteves, solta o grito da gaivota! disse Estácio.
O pescador apertou as bochechas entre o polegar e o indicador, e o estrídulo conhecido da ave aquática vibrou pelas solidões do mar. Nesse instante dobrava a catraia a ponta norte da ilha, e a um tiro de berço apareceram os dois navios holandeses, fundeados a meio do canal.
Na ocasião achavam-se alongados a pique de âncora, com a proa para o norte de onde vinha a catraia; o fluxo da maré mais vivo sobre a caravela do que sobre o bergantim por ela abrigado, fizera garrar a popa da primeira a cerca de duas braças do outro.
Quase ao mesmo tempo soou o apito a bordo do bergantim, e uma lanterna foi içada no castelo de proa.
Os remos afrouxaram a um sinal de Estácio, e a catraia aproximou-se vagarosamente dos navios; no entanto foi a gente despindo alguma roupa mais pesada e tirando da cinta os pistoletes que deitaram sobre a mesa do mastro. Chegando à fala do bergantim, os remos deram as três salvas indicadas por Pedro, a que de bordo responderam com sinais de lanternas.
Então o mancebo erguendo Dick pelos ombros, e obrigando-o a ter-se de pé um instante, mandou-lhe tirar a estopa da boca e ouvidos.
— Flamengo! É chegado o momento de salvar a tua vida: ali está o navio; cumpre com o que te ordenei ou prepara-te para morrer.
O holandês sorriu e mudo fitou os olhos no bergantim, como se fora um torrão de sua pátria.
— Por que esperas? perguntou Estácio que adivinhou a intenção do estrangeiro.
— Ainda estamos longe; a minha voz não se ouviria.
Desta vez foi Estácio quem sorriu. A catraia avançava prudente e vagarosa; já se divisavam distintamente vultos debruçados às amuras, e ouvia-se o sussurro zombeteiro da maruja, a galrar da aventura noturna e da feliz escapula de seus compatriotas.
Dick ergueu então a voz calma e vibrante que traspassou como uma veia sonora o silêncio da noite, e soltou na linguagem pátria algumas palavras lentas e pausadas:
— Compatriotas!... estai alerta!... Há neste barco inimigos traidores que maquinam vossa perda!
Estácio não entendia o flamengo; mas ele tinha os olhos no navio, e o sobressalto que ali produziram as palavras de Dick lhe deu a significação delas. Imediatamente o mancebo calcando a mão na boca do prisioneiro, ergueu também a voz sonora e disse:
— Morre, herege!...
Arrancando um pistolete da cinta desfechou o tiro, cuja explosão fuzilou nas trevas, retumbando ao longe. O flamengo caiu, mas não ferido, que o tiro fora apontado ao ar; caiu prostrado pelos índios que o sujigaram de novo no fundo do barco.
Estácio, o pescador e sete índios resvalaram pela borda e sumiram-se nas ondas, que abriram-se docemente para recebê-los no úmido seio; já com o corpo mergulhado o mancebo voltou o rosto para ainda murmurar a Antão:
— Não esquecei!... Eu virei do outro mundo pedir-vos conta do que de vosso valor confio!
— Ide tranquilo!... É como se fossem a pele de meus ossos. Em último caso ao mar!...
Os mergulhadores desapareceram sob o espelho liso e mudo do oceano, cuja face impassível, como a dos grandes ânimos, não traiu o segredo do seu íntimo.
Antão deu um safanão à cana do leme, e a catraia virando o bordo, partiu veloz com a proa feita ao mar para dobrar de novo a Ponta de Itapoã.
A esse tempo os holandeses tanto do bergantim como da caravela, postos em alvoroto pelo aviso de Dick, saltavam quais sobre as armas e os remos, quais sobre os ovéns e estingas. As chalupas foram deitadas ao mar; e quase toda a maruja se precipitou para embarcar e correr à salvação de seus compatriotas ou à sua vingança.
As palavras graves de Dick, a exclamação vibrante de Estácio, o tiro que seguiu-se, e logo após a fuga da catraia; todas essas circunstâncias foram como uma súbita revelação para os holandeses em massa. Eles acreditaram que a evasão de seus compatriotas fora descoberta pelos guardas, que fingindo favorecê-los pretendiam à sombra deles penetrar a bordo como aliados, e apanhando a tripulação de surpresa, capturarem os navios. Dick porém suspeitara a trama, e sacrificara heroicamente a vida para salvar seus compatriotas.
Ora, vendo a catraia, que se punha em fuga precipitada, duas ideias lampejaram de repente no espírito desses homens. A primeira, que não estavam os inimigos em número para afrontá-los a peito descoberto, ainda que bastantes fossem para a emboscada; a segunda, que seus compatriotas ali estavam a algumas braças esperando de seu denodo serem salvos ou vingados.
Se por um lado a indignação contra a perfídia do inimigo, e o espírito nacional, sublevaram toda a guarnição como um só homem; por outro a certeza da vitória e o medo dos inimigos que fugiam, adormeceram nos oficiais aquela vigilância sempre necessária. No meio do tumulto embarcaram quase todos a trouxe-mouxe; e as quatro chalupas partiram de ambos os navios, levando cerca de setenta homens; ficaram pois apenas vinte homens a bordo, sem contar com os moços de cozinha, lambazes e grumetes, e outra casta de serviçais.
Todos esses, trepados pelas enxárcias e gurupés, acompanhavam com ansiedade imensa os batéis que lutavam de velocidade à caça da catraia. Essa aproveitara bem o avanço devido, já à distância em que estava dos navios, já à demora no apresto das chalupas. Agora ia ela dobrando outra vez a ponta da ilha, por onde pouco antes passara.
Entretanto que a atenção de bordo estava assim toda empregada além, pela popa deserta do bergantim grimpavam ligeiramente uns vultos que surgiam do seio das ondas; subiu o primeiro, depois outro e outro até oito, e agacharam-se todos junto à bitácula. O principal deles murmurou:
— Esperai um momento aqui!... Se me ouvirdes um grito, atacai!...
O mancebo desceu pela escotilha de popa até à câmera; entrou na sala d'armas, onde ficava ao fundo a porta do paiol. Como conjeturara, ali estava postada uma sentinela de arcabuz ao ombro. A luz mortiça de uma lâmpada embutida no tabique pelo lado exterior, esclarecia o lugar.
Estácio dirigiu-se intrepidamente à sentinela, trocou o santo, imitando a pronúncia de Hugo, e fingiu querer introduzir a chave na porta. O flamengo tomando-o por um marujo, que vinha à busca de munições por mandado do capitão, disse-lhe:
— Então há refega lá por cima?
O mancebo conservou-se impassível, e continuou a fazer tinir de encontro ao ferro uma moeda que tinha entre os dedos. O soldado voltou-lhe as costas despeitado. O estudante que esperava o ensejo favorável, atirou-se a ele como um tigre, cerrando-lhe a garganta com as mãos ambas. Essa gargalheira animada foi estreitando a sufocar o mísero, que lutava vigorosamente. Durante todo o tempo da estrangulação os braços crispados pelo desespero manejavam o arcabuz como uma catapulta, atirando para as costas botes furiosos, que moíam as espáduas ao mancebo. Mas ele insensível à dor estringia sempre, até que a massa frouxa amolgou-se a seus pés, e inteiriçou.
Estácio, apesar do tempo que urgia, demorou um olhar sobre o cadáver; era a primeira vida que ele sacrificava.
— Foi pela pátria!... murmurou.
Rápido dirigiu-se à porta da sala d'armas arrastando o corpo por prudência; podia o soldado não estar morto, mas apenas desmaiado, voltar a si dentro em pouco, e com um tiro no paiol fazer saltar o navio, o que ele buscara prevenir com risco de sua vida. Mais breve era cravar-lhe um punhal no peito; mas repugnava-lhe semelhante atrocidade num corpo exânime ou quase.
Empurrando a porta, esta não cedeu: de fora a tinham fechado. Naturalmente alguém do navio o pressentira, e encerrando-o correra a dar rebate.
— Embora! Ainda a vitória me pertence.
Assim exclamou o valente mancebo erguendo os olhos para o teto da câmera, como para afrontar o furor dos holandeses. Travando de um dos cem pistoletes que pendiam à parede do cabide d'armas, pôs-lhe a mira no óculo do paiol, e esperou com o ouvido alerta, e a mão prestes a desferir o raio.
A chave rangeu na porta.
— Até o céu, Inês minha! suspirou o coração de Estácio.