Eis-nos outra vez na cidade do Salvador.
Muito há que é noite.
Elvira sentada no escabelo dourado, crava os olhos com uma fixidez espantosa no óculo aberto ao alto da janela; a inflexão da cabeça sobre a espádua indica a atenção que presta seu ouvido aos rumores sutis que vêm de fora. Em sua fisionomia se debuxa com viva cor a ânsia de uma alma angustiada entre uma dor intensa que a oprime e uma esperança que vacila.
O que sofreu a mísera donzela desde a noite fatal do que para outros fora Ano-Bom, e para ela tão mau, já exprimiram suas queixas na carta escrita a Garcia de Ávila. O reverendo P. Figueira, acudindo a toda pressa ao chamado urgente da viúva, ouvira com a maior atenção a história dos acontecimentos da noite; e logo reconhecera que um obstáculo sério opunha-se ao projeto tão afagado por seu espírito, e cuja realização lhe parecia infalível.
O jesuíta teve uma longa conferência com D. Luísa de Paiva, que reassumiu a calma habitual, e na despedida acompanhou seu confessor até a porta com um sorriso angélico. Nesse mesmo dia foi chamado um serralheiro que fechou com grades de ferro as janelas e a porta do aposento de Elvira, agora seu cárcere, de câmera que fora. A alimentação reduziu-se a pão e água durante os dias magros da semana; nos outros apenas havia de mais algum legume.
O isolamento e jejum tinham sido os meios aconselhados pelo jesuíta; serviam não só de penitência pela culpa cometida, como de remédio contra o pecado original do amor de Elvira. O P. Figueira sabia que influência exerce o físico sobre o moral da criatura; e esperava amainar a chama do coração debilitando e empobrecendo o sangue que o fazia pulsar.
Para apressar a cura d'alma empregaram-se outros meios; tentaram fazer acreditar a Elvira que seu amante havia sucumbido às feridas que recebera; e a ameaçaram com o castigo divino se continuasse na desobediência à sua mãe; ao mesmo tempo recorriam às promessas e rogos para demoverem a moça de sua paixão. Mas foi tudo baldado; o coração de Elvira se acrisolava no sofrimento.
No dia de Reis, D. Luísa por inspiração do confessor, resolveu levar a filha à igreja; depositavam ambos muita esperança no sermão do P. Molina; não porque devesse o exímio pregador tentar especialmente o assunto, mas pelo efeito que a palavra sagrada, manejada por tão insigne mestre, havia de produzir geralmente na multidão dos devotos. Contava o frade tirar daí nova força e autoridade para seus conselhos.
O resultado foi contrário à expectativa. Bem longe de impressionar-se com a majestade da festa religiosa, a donzela no fundo do palanquim onde a haviam encerrado, só teve olhos para Estácio, que lhe apareceu naquele instante como a sombra de Cristóvão. Recolhendo a casa, trouxe a certeza de que o amante vivia, e a esperança de que breve o havia de ver.
No dia seguinte lembrou-se de escrever ao amigo; era um modo de aproximar-se dele mais cedo. Começou a carta sem ainda saber por que meio a enviaria a seu destino, e confiando tudo do acaso. Quando estava nessa doce ocupação, foi de repente surpreendida pelos passos de sua mãe, que se aproximava acompanhada do P. Figueira. Elvira apenas teve tempo de ocultar o papel no seio e afastar-se rapidamente da mesa onde escrevia.
A viúva entrou, correndo pelo aposento um olhar suspeitoso; enquanto o jesuíta com sorriso melífluo dirigia-se à donzela:
— Deus esteja convosco, filha!...
— O Senhor é misericordioso e espero não me há de desamparar nesta minha tributação! respondeu Elvira com altivez.
— Não desampara, não; e a prova é que me envia a vós para falar-vos em seu santo nome!
A donzela voltou o rosto com visível desgosto; ela acreditou que a palavra sagrada não podia manar daquele lábio fino e delgado como uma lâmina.
— Fostes vítima, filha, da sedução de um mau homem, que felizmente não conseguiu seu feio intento, pela solicitude e zelo materno de vossa respeitável mãe. Errar não é vergonha; sobretudo quando o arrependimento lava a culpa. Foi o que vimos no vosso caso; a falta que cometestes, ouvindo os requebros de um casquilho, estimulou-vos a virtude. Desde então vos encerrastes nesta câmera solitária e propícia ao recolho do espírito; ao mesmo tempo que por penitência condenastes a carne a jejum rigoroso de pão e água! Tão grande fervor e humildade têm excitado a admiração dos estranhos e chamado sobre vossa cabeça as bênçãos celestes.
Elvira fitou no frade um olhar pasmo; o seu espanto ouvindo o jesuíta atribuir-lhe como penitência espontânea, o que lhe haviam infligido como severo castigo, era extremo; mas redobrou notando a impassibilidade austera que conservava a fisionomia de sua mãe diante daquela falsidade.
— O amor da respeitável matrona que o Senhor vos concedeu por mãe, se um instante retirou-se da filha culpada, voltou já o com maiores estremecimentos à filha arrependida. Não é verdade quanto digo, Senhora D. Luísa, minha respeitável devota?...
— Só a verdade fala pela boca de V. Reverendíssima.
— Mas, se já fizestes muito, virtuosa donzela, não fizestes tudo para a redenção de vossa alma. É preciso coroar dignamente a obra de tão santa abnegação, ofertando enfim as premissas de vossa alma cândida que o bafo impuro do tentador escapou de manchar, a quem somente as merece!... Para recebê-las e satisfazer esse voto íntimo de vossa alma, enviou-me Deus à vossa presença!
Elvira não prestava atenção ao jesuíta; ansiosa de ficar só para concluir a carta, e receando que a sua réplica suscitasse a cólera materna e as longas contestações que se lhe seguiam, resolvera calar-se para abreviar a prática. Arredara o espírito das pessoas que ali estavam, e o dirigira para o seu alvo favorito, Cristóvão. Só voltou a si quando o P. Figueira impondo-lhe as mão ambas sobre o missal, e com a destra benzendo-as três vezes, proferiu estas palavras graves e solenes:
— Em nome do Senhor recebo e santifico o voto solene, que fazeis vós, D. Elvira de Paiva, de consagrar-vos corpo e alma à religião em uma ordem regular, como esposa de Cristo!...
A donzela, que a princípio não tinha compreendido e emudecera ante a majestade do ato, espavorida arrancou as mãos soltando um grito de horror:
— Misericórdia, Senhor Deus! Vós bem sabeis que não fiz outro voto senão de amar eternamente o escolhido de meu coração!
A donzela caiu de joelhos.
— Calai-vos, filha.
— Compaixão, mãe, desta infeliz!
— Deste instante em diante, filha, já não podeis sentir outro amor, que não seja o evangélico: o amor puro e imaculado!
— Eu enlouqueço!...
— Serenai vosso ânimo. Nós vamos, vossa mãe e eu, tratar dos modos de realizar depressa os impulsos de vossa alma.
O confessor saiu seguido pela viúva. Elvira pasma e estática, ficou de pé no meio do aposento, inclinada para a porta por onde acabavam de sair, como se houvessem levado após si o estame de sua alma. Mas afinal o instinto da salvação dominou o atordoamento. Ouvindo entrarem no vizinho gabinete, a donzela precipitou para uma porta oculta na tapeçaria, que servia de comunicação entre os dois aposentos, e escutou.
Sentou D. Luísa justamente numa poltrona que havia contra essa porta, e o padre ao seu lado:
— Não nos ouvirá? perguntou o jesuíta em tom de segredo, mas com a voz bem clara.
— Nem suspeita que estejamos aqui! Pode falar, P. Figueira.
Elvira pensou que a Providência a favorecia, fazendo-a ouvir o que a respeito de seu destino decidia o confessor e conselheiro de sua mãe; e bem longe estava de suspeitar a verdade. De propósito o P. Figueira combinara com D. Luísa toda aquela cena, a fim de exercer no espírito de Elvira uma pressão favorável aos seus intentos. Conhecia que suas palavras eram recebidas pela donzela com uma desconfiança que ela não procurava disfarçar; outro tanto não sucederia com o que surpreendesse daquela conversa secreta.
— Estão todas as dificuldades vencidas, continuou o padre. Vou escrever para Lisboa ao provincial que se entenda com a Superiora de Santa Clara sobre a admissão ao noviciado da menina Elvira. Justamente está a partir por estes dias um galeão.
— Neste ponto confio tudo de vosso zelo, Senhor P. Figueira. De onde ainda receio é daqui.
— Não vos entendo.
— Da resistência de Elvira.
— Essa é impossível, a menos que não julgueis vossa filha uma renegada!
— Deus me defenda de tal.
— Lembrai-vos que ela já fez voto de ser freira; e portanto é como se já estivesse clausurada.
— Supondes então que o voto que ela fez a obriga eternamente?
— Sem dúvida! Como se fosse feito em profissão solene; as fórmulas são nada: o ato é tudo!
As vozes abaixaram, e não se ouviu mais que o murmúrio de palavras.
Elvira aterrada, ficara imóvel e hirta. A trama do jesuíta, que em pessoa mais conhecedora do mundo talvez não suscitasse senão desprezo n'alma ingênua da donzela, impregnada das crenças profundas do tempo, produziu o efeito calculado pelo astuto frade. Acreditou a inocente que de feito estava para sempre ligada por um voto que ela não fizera espontaneamente, mas por surpresa lhe haviam arrancado; julgou-se já freira, noiva do Cristo, e separada para sempre, nesta e na outra vida, daquele a quem amava.
Prostrou-se de joelhos ante o crucifixo:
— Meu Deus, eu não sou digna de vós! Deixai-me ao amor daquele a quem me destes, muito antes de me quererem para vós.
Mais que nunca sentiu a necessidade de ter Cristóvão a seu lado para a proteger e salvar sua alma, que ela sentia delirar dentro de um corpo convulso. Voltou à mesa e de um ímpeto terminou a carta começada pela manhã e tão bruscamente interrompida.
Mas como enviá-la? Muito tempo girou insôfrega pelo aposento, como uma mariposa que busca na treva uma réstia de luz. Veio a noite e encheu os muros que a enclausuravam, de silêncio e escuridão. De novo implorou a misericórdia divina, de quem só esperava socorro.
Deus a ouviu.
Foi justamente nesse momento que a seta despedida por Estácio, atravessando o aposento e cravando a parede, lhe trouxera as letras queridas de seu amante e o fio condutor que devia levar a resposta. Nos primeiros momentos que sucederam a essa feliz surpresa, Elvira não teve alma e vida senão para a carta de seu amante. Cristóvão nada lhe dizia que ela não soubesse; eram juras e protestos, mil vezes repetidos de um amor ardente; eram suspiros de saudade e gemidos de desventura, como ela também exalava. Mas isso escrito pela mão amada, valia como carícias vivas, encerradas no papel, que ao abrir se atiravam às faces e ao seio da donzela para afagá-la.
Quando o tiro soara, ela acordou do seu doce enlevo. Sua aflição durou até a gargalhada do capitão de mato e as palavras por ele proferidas que a tranquilizavam acerca da vida de Cristóvão naquela noite. Mas podia não ser ele outra vez tão feliz, e já ela se acusava de o haver exposto à morte, chamando-o a si.
Nestas inquietações passou até a noite seguinte, em que novo acidente a veio distrair. Uma segunda flecha penetrou como a primeira no aposento, trazendo-lhe um recado de Cristóvão:
Antes que me chamásseis, senhora minha, já minha alma tinha voado para vós e estaria a vossos pés neste instante, se o corpo enfermo não me encadeasse a um leito de martírio.
Breve nos veremos, espero em Deus, apesar dos obstáculos que se erguem entre nós; mas sobre todas as coisas eu vos suplico, Elvira minha, não acrediteis um instante que haja poder para nos separar jamais!
— Se ele soubesse!...
Na terceira noite, às mesmas horas mortas, a mensageira fiel, que ela já esperava como se fora uma amiga, entrou sibilando pela fresta da janela. Desta vez trazia a seta, como da primeira, além da carta um fio condutor:
Já me aproximo de vós, doce Elvira minha. Ajudai-me. Conservareis em vossa mão o fio que esta seta conduz; uma segunda vai partir que leva outro fio; ligai ambas as pontas; e esperai-me. Não vos assuste qualquer estranho rumor que porventura vos chegue ao ouvido: é vosso amigo que se avizinha. Até amanhã talvez, ajudando Deus.
Mal acabava de ler, ouviu o sibilo da flecha anunciada; ela executou à risca as instruções, e observou que o segundo fio fazendo moutão de um dos ferros da grade, puxava o primeiro, o qual foi substituído por uma corda de ticum a ele presa. Também por sua vez a corda foi rolando pelo balaústre até que depois de algum tempo tornou-se firme. Elvira julgou ouvir as suas vibrações produzidas por uma forte distensão, e logo depois rumor no telhado.
E não se enganava. João Fogaça, autor deste plano, calculado sobre a inspiração de Estácio depois de firmada a corda no ramo da árvore, enviava sobre essa maroma Olho, na qualidade de explorador. O índio, agachado como um gato, depois de sondar a treva que não lhe ofereceu nada de suspeito, resvalou rápido até à janela; afinal galgou o telhado, e arrancando algumas telhas, insinuou-se no forro.
Cristóvão com a saúde e a ânsia de ver a amante, readquirira a audácia; embora não desejasse dar escândalos, já o não retinham pequenos escrúpulos, que durante a sua moléstia se lhe antolhavam como fatos gravíssimos. João Fogaça desembaraçado de seus movimentos, também de seu lado recobrara a costumada fecundidade. O plano que ele tratava de pôr em execução era bem concebido: resolvera penetrar na casa pelos ares; era o único meio de burlar a vigilância exercida pelo Batista e sua gente. Sobre as cabeças dos vigias postados embaixo das janelas de Elvira, o índio suspenso à corda e oculto pela ramagem do arvoredo, passou desapercebido. É escusado advertir que tudo isto se fazia em profundo silêncio, e que uma linha de atiradores deitada ao longo do fosso, esperava o primeiro sinal suspeito de algum dos vigias para traspassá-lo com as setas.
Cristóvão, ao escrever a Elvira, lembrara-se de pedir-lhe algumas indicações sobre o interior da casa, que facilitasse a exploração incumbida a Olho; mas João Fogaça opôs-se com todas as forças.
— Nada, Cristovinho!... Isso de mulheres, é sempre fogo de palha; muita chama de repente, e logo abaixa. Pode a menina assustar-se com o que se vai fazer, e transtornar tudo. Deixai cá o negócio ao meu cuidado; chegareis quando ela menos o pensar, e por onde nem cuida!
O capitão de mato andou bem avisado, pois Elvira sentindo os ligeiros rumores que percorriam o teto da casa, começou a tremer de susto, e arrependida de haver chamado Cristóvão, se afigurava já como a causa de sua morte.
— Em vez de chamá-lo eu devia ter procurado arredá-lo o mais possível de mim!... soluçava ela.
Nisto pareceu-lhe que abriam e tornavam a fechar sutilmente a porta da câmera; cuidou que fosse D. Luísa que tendo ouvido algum rumor, viesse escutar se ela dormia. Essa circunstância ainda mais aumentou seu grande terror.
Depois os rumores cessaram no teto, e a corda começou de novo a rolar, sendo substituída pelo fio, e desaparecendo completamente. Ela compreendeu que por aquela noite estava tudo terminado.
Entretanto Olho voltara ao lugar, onde havia deixado Cristóvão e João Fogaça, a dar conta da sua exploração:
— Olho entrou no forro da casa, e logo viu lá no fim um canto menos escuro.
— Já sei; era um buraco no forro.
— Sim; Olho amarrou a corda no caibro, e desceu.
— Em que lugar?
— No corredor. Junto do quarto da senhora está outro quarto, que tem janela, por onde senhor pode entrar.
— Qual é das janelas?
— Uma, duas, três... Aquela! respondeu o índio apontando.
— E a porta da câmera?...
— Aberta com este ferro.
O capitão de mato tomou o molho de gazuas que dera antes ao índio, e dele separou aquela que servia na porta de Elvira.
— Guarda, Cristovinho! Amanhã a esta hora lá estarás!
— E por que não hoje, agora mesmo?
— Por trinta e uma razões; sendo a primeira que não se pode.
No dia seguinte, logo que fechou a noite, os dois amigos estavam no mesmo sítio; ainda então era necessário que o capitão de mato contivesse a impaciência de seu colaço. Força foi a Cristóvão esperar até noite alta.
Enquanto isto, o terreiro da casa de D. Luísa era investigado pelos sentidos do capitão de mato; como na véspera, dois homens de vigia velavam daquele lado da casa, um embaixo mesmo da janela de Elvira, o outro no canto do edifício. Desde a noite da fuga de Estácio a vigilância redobrara, por causa da ameaça de João Fogaça ao Batista.
— Agora! disse o capitão de mato.
Cristóvão avançou rápido:
— Escutai primeiro!... Eu com meia dúzia dos caboclos vou para o lado de lá da casa, e faço como quem quer atravessar o valado. Eles me pressentem, e naturalmente acodem todos para aquela banda. Enquanto isto, tendes o caminho livre; com a gente que vos fica, amarrai os dois vigias; não vos embaracem os gritos, ninguém os ouvirá! Já Olho deve ter segura a escada de corda à janela; subi, entrai, e boa-noite!...
O capitão de mato teve um sorriso brejeiro.
— João, não me faleis assim nesse tom a respeito de meu amor; tal gracejo, mesmo na vossa boca, é uma injúria, que eu não tolero. Acreditai, amigo, que Elvira só, naquela câmera solitária, entregue a mim pelo afeto ao mesmo tempo que pelo receio dos seus, me é mais sagrada do que o fora ante o altar, em face de Deus e presença de toda gente! Amareis um dia, João, para compreender a santidade do verdadeiro amor, e qual céu é para a mulher amada o coração que a ama.
— Ta, ta, ta!... Não vos amofineis agora por um gracejo! Não vos conheço eu desde as faixas, para saber o quanto valeis? E a não ser assim, julgais que vos prestasse as mãos para levar a desonra ao seio de uma família?... Quero-vos muito Cristóvão, para preferir vosso brio ao vosso prazer!...
— Obrigado; estou tranquilo. Podeis ir.
— Recomendo-vos toda a prudência.
— Descansai; eu me pouparei para ela que de mim carece.
João Fogaça afastou-se com um grupo de índios.
É neste momento que encontramos Elvira sentada na sua câmera, com a atenção suspensa ao menor ruído.
De repente um sibilo atravessou os ares; a pequena flecha, sua conhecida, vibrou na parede, portadora do papel e do fio. Repetiu-se a cena da véspera; a corda foi esticada no ferro da grade; os ligeiros rumores propagaram-se pelo teto da casa, depois pelo corredor; pareceu-lhe que a janela próxima era aberta. Nesse instante porém um ruído forte soou do lado oposto; ouviram-se imprecações e juras embaixo das janelas.
Elvira apesar de prevenida não podia reprimir o terror que a congelava, quando a porta da câmera abriu-se, e Cristóvão deitando-se a ela, a cingiu nos braços, afogando contra o peito a exclamação que exalaram os lábios da donzela.
Sentados no estrado, onde quinze dias antes os tinha surpreendido a viúva, já nem se lembravam dos maus dias passados; dir-se-ia ao vê-los tão prazenteiros, que dissipado o cruel pesadelo, eles continuavam aquele interrompido colóquio, antes transfusão recíproca de duas almas. Tinham tanto a dizer, e tão pouco a contar! A noite embebeu no vasto âmbito tantas meiguices ternas e suaves queixas, que os dois corações influíam e refluíam um no outro, como a veia serena de um lago ondula de uma a outra margem.
E o tempo fugace voava; as horas da noite desfiadas uma após outra caíram; o primeiro vislumbre da alvorada palejou as sombras escuras do horizonte.
— É tempo de ir-me, Elvira minha!
— Já, Cristóvão! disse a donzela estremecendo.
O mancebo abrindo a porta, a conduziu à janela por onde penetrara na casa, e à qual estava suspensa a escada de corda.
— Vede! É a primeira luz da alvorada que bruxuleia no horizonte!
— Como é possível, bem meu, se há tão pouco tempo anoiteceu; aquele clarão é da lua!...
— Não sentis esta brisa fresca e perfumada que brinca com os vossos cabelos?... É o primeiro hálito da manhã, fragrante como o de vossos lábios, senhora desta alma!
— Enganai-vos, amor meu; esta frescura e da viração do mar que sopra à meia-noite, quando as palmeiras abrem suas flores!... Ela nos diz que o dia ainda está longe.
Shakespeare foi realmente um grande fisiologista do coração humano. Dois amantes, em uma noite da América, representavam a mesma cena de amor, que o grande poeta desenhou na entrevista noturna de Romeu e Julieta, sob o céu da Itália.
De repente o primeiro rubor da manhã tingiu alguns capuchos de nuvem desfiados pelo azul do céu: a alvorada rompia.
— Duvidais ainda?...
— Não! exclamou a donzela estremecendo. Tendes razão; é o dia!
— Adeus, pois, doce Elvira minha!
— Quereis me deixar outra vez?
Cristóvão surpreso não respondeu.
— Cristóvão, senhor de minha alma, levai-me convosco. Não me abandoneis na solidão desta casa, imenso deserto, onde minha razão se perde! Tenho medo do enlouquecer! Levai-me convosco!... Por Deus e pelo nosso amor, por tudo quanto há para vós de mais sagrado, não me desampareis um só momento, não vos arredeis do meu lado, porque temo perder-vos para toda a eternidade. Eu sou vossa esposa; ninguém já me pode roubar a vós, que sois meu senhor e dono: devo acompanhar-vos.
Surgira no espírito da donzela a lembrança horrível do que ouvira ao P. Figueira, e que o embevecimento da presença de Cristóvão desvanecera até o instante da partida. Cristóvão também, escutando aquelas impetuosas palavras, recordou-se do que lhe dissera Elvira na sua carta.
— Sossegai, Elvira minha; não nos hão de separar. Mas dizei-me o que ouvistes que tanto vos horrorizou, para que melhor possa desfazer a trama.
A donzela abriu os lábios para referir tudo; mas assaltou-a uma lembrança cruel, que já anteriormente se apresentara a seu espírito. Se Cristóvão acreditasse que ela estava ligada à religião, como dissera o frade, e matasse em sua alma um amor sacrílego... Oh! era horrível só de pensar! Ela escondeu o rosto nas mãos, como para arredar a perspectiva que se desenhava a seus olhos alucinados.
— Agora não! Depois sabereis!... Mas eu vos suplico, levai-me desta casa.
— É isso impossível, doce amiga. Não podeis desamparar o teto materno, senão para entrar na igreja onde nos devemos esposar.
— Pois sim. O dia vem raiando; daqui em pouco as portas das igrejas vão abrir-se; e em qualquer delas Deus nos há de enviar um ministro seu para abençoar a nossa união.
— Quero que seja como dizeis. De que modo heis de sair daqui? Pelo mesmo caminho por que vim?... Nem pensar em semelhante coisa!
— Então se não é possível que eu vá, ficai vós junto a mim!
— Que proferis, Elvira! Aqui na vossa câmera de donzela?
— Na minha câmera nupcial!... não sou eu esposa vossa?
— Anjo! disse Cristóvão afagando-a. Vossa inocência e candura não conhecem o mal. Julgais que alguém, vossa própria mãe, achando-me aqui encerrado convosco, acreditasse que a minha honra e a vossa virtude vos tinham guardado virgem imaculada?... Tal é a sordidez do mundo!...
Elvira teve uma vibração íntima. Seus olhos cintilaram. Um sorriso estranho, bruxuleando uma ideia sinistra que despontara em sua mente esvairada, desabrochou nos lábios.
— Vinde! exclamou travando arrebatadamente das mãos de seu amante e levando-o ao seu aposento.
Fechou então a porta; e caminhou para Cristóvão, envolvendo-o com um olhar de Safo. Parou; seu lábio mudo não sabia a linguagem daquele delírio; ela esperava que o mancebo bebesse em seus olhos o segredo de sua alma. Mas este surpreso daquela atitude estranha, entristecia pensando que os pesares houvessem alterado a saúde de sua linda virgem.
Súbito outra revulsão operou-se no espírito de Elvira. As lágrimas espadanaram de seus olhos; e o seio ofegou soluçante. Caiu de joelhos e arrastou-se aos pés de Cristóvão, soluçando:
— Ainda há um meio de salvar o nosso amor, Cristóvão!... Matai-me neste instante!
— Que proferis, Elvira!
— O desejo de meu coração... Matai-me; nos reuniremos no céu! Nenhum poder já nos poderá separar.
— Tão pouca fé tendes em nosso amor, Elvira, que já perdestes toda a esperança?...
— Oh! vós não sabeis!...
Segunda vez a lembrança terrível do voto pruriu seus lábios, e segunda vez recalcada, abalou profundamente aquele coração.
— Não me quereis matar, Cristóvão? exclamou a donzela com veemência.
— Que turbação é a vossa, Elvira minha?
Elvira revestiu-se de uma energia estranha; e sua voz, embora surda e velada, vibrou ao ouvido do amante com uma entonação solene:
— Então é preciso que eu seja esta mesma noite vossa esposa!...
Quando a primeira onda da claridade matutina insinuou-se pela fresta da janela, os dois amantes, longe um do outro, se isolavam em suas almas, tentando debalde fugir a si mesmos para libertar-se da ideia horrível que os esmagava. A luz, penetrando de repente na escuridade do aposento como na treva de sua alma, os fez estremecer. Foi como se desnudassem suas consciências. Entreolharam-se rápida e furtivamente. Cristóvão contemplando no abatido semblante da donzela a cópia descorada da virgem que ainda na véspera amava com tão santo fervor, suspirou:
— Oh! minha para sempre perdida felicidade!
Elvira, que viu abrir-se no sorriso pungente do mancebo o abismo onde ia sepultar-se o casto e puro afeto que inspirara, também gemeu no fundo d'alma:
— Que fiz, Deus meu!...
Os rumores do dia encheram a casa, e chegando até à câmera, lembraram a Cristóvão onde estava. Ergueu-se então, e despedindo-se friamente da donzela, encaminhou-se à porta. Sair assim em pleno dia, sem a mínima precaução, era uma loucura, que traria em resultado a morte de Cristóvão e a desonra de Elvira. Entretanto ele não hesitou um instante; ela não pensou em retê-lo.
— Talvez me acabem! disse consigo o mancebo.
— Já agora, quanto mais perdida para o mundo, mais dele serei!...
Cristóvão pálido e sinistro atravessou com passo firme os vários repartimentos da casa. Ia tão recolhido na sua dor, que passava alheio a quanto o cercava. Os fâmulos da viúva, encontrando-o no caminho, paravam surpresos e tomados de susto; e só depois que ele afastava-se, corriam a dar parte à dama do estranho caso. Assim chegou são e salvo ao caminho, onde João Fogaça inquieto o esperara a noite inteira.