Quando a brisa mais fresca desfolha antes de tempo a flor ainda viçosa, a haste onde antes se embalançava docemente a fragrante e mimosa criatura, fica descoroada de sua beleza. Uma corola esborcinada, despida de suas brilhantes galas, e estanque de aromas, é quanto resta da flor: seu cadáver. Talvez ainda com a seiva da árvore vingue desse pólen um fruto fanado e mesquinho; porém não mais estilará aí um perfume, nem espontará uma pétala. A flor morreu.
Como essa flor era agora o amor de Cristóvão. A bonina do seu coração, mau sopro a desfolhara, deixando o cálix nu e triste. Sem dúvida ainda queria ele a Elvira, como à esposa sua que não tardaria de ser; porém os sonhos azuis, os devaneios suaves, as esperanças douradas, pétalas e perfumes das rosas de sua alma, essas se tinham esvanecido. Passara rápida e melancólica a primavera dessa flor de sentimento; já estava no seu outono, na queda das folhas, quando assomam no horizonte as primeiras brumas.
É certo que a história do amor é sempre essa; folha, flor, fruto, doce ou amargo: esperança, gozo, saudade ou remorso. Mas quando o coração passa gradualmente pelas suas diversas fases, ao chegar à estação calma e serena, já está saciado de delícias; não lhe faltam então as gratas reminiscências para semear sobre a monotonia do presente. Vêm os arrebóis que douram as sombras da tarde; vem o recordo, essa evocação do passado embelecida pela imaginação.
Cristóvão saltara bruscamente da folha ao fruto: seu coração quase não tivera flor; o tempo das cores e dos aromas fora uma hora só e essa angustiada. Amante apenas, ainda não desposado, parecia-lhe que Elvira era sua esposa desde muitos anos.
Não lhe inspirando já seu próprio amor as ilusões douradas que na sua idade são uma expansão essencial à imaginação, as buscava no amor de Estácio e de Inesita. Esse puro afeto, sobre cujos destinos fora pelo amigo incumbido de velar, era como um poema para ele; toda a poesia, que outrora esparzia em seus devaneios, concentrara naquele assunto. Afora as emoções do amigo, sentira ele, acompanhando os acidentes daquele afeto, o desvanecimento do autor inventando a fábula de gracioso conto.
Desde que Estácio partira, seu tempo era assim dividido.
Por manhã fechava-se na sala d'armas, e aí esgrimia muitas horas com escudeiros peritos no manejo da espada. A razão desse novo hábito introduzido em sua vida e seguido com a maior pontualidade, ele próprio talvez não a soubesse. Essa razão era um misto de várias causas. Por ocasião da luta que sustentara no terreiro de D. Luísa, refletira o mancebo que se mais forte e ágil fosse no jogo das armas, não correria tão grande risco. A prudência e seu amor-próprio lhe aconselhavam pois aquele exercício, que ao mesmo tempo fornecia algumas horas de distração à sua alma desconsolada. Afinal resolvido a defender o amor de Estácio a todo transe, ele acreditava que morrer pelo amigo não seria bastante; era preciso vencer por ele e conquistar-lhe a ventura. A espada pois, que cingia, e agora se tornara de guarda de sua honra e vida, a esperança da felicidade do amigo, era necessário que ele a manejasse de modo a ter nela plena e absoluta confiança.
A prática foi sempre a grande mestra da arte. Cristóvão, que era já uma das primeiras espadas da Bahia, tornou-se sem contestação a primeira, depois daquele contínuo exercício. O próprio Estácio, que pudera ser seu mestre, talvez não fosse já senão seu superior.
Ao deixar a sala d'armas, saía Cristóvão. O resto da manhã era dedicado ainda a Inesita e Estácio. Ou apresentava-se em casa de D. Francisco, para ver a donzela e reanimar-lhe a esperança; ou indagava dos amigos e conhecidos as novas do dia, receando que lhe anunciassem a próxima realização do casamento do comendador.
A tarde e a noite pertenciam a Elvira. A tarde, à Elvira de agora, à mísera convalescente, que lentamente tornava à existência da grave enfermidade; passava essas horas junto à donzela; ele vexado, ela pensativa; mudos ambos, quando não arrastavam um frouxo diálogo sobre coisas indiferentes. A noite, à Elvira de outrora, ao anjo dos puros e castos amores, que se escondera nos seios de sua alma; eram as horas da cisma e da meditação, que ele passava em seu aposento, à luz das estrelas, desde que voltava de casa de D. Luísa até vencê-lo o sono da fadiga.
Partira Garcia d'Ávila da quinta do comendador, e chegou à cidade, tendo em caminho encontrado o P. Figueira.
Encaminhou-se para a casa de mestre Cabral, licenciado em física, o mais reputado dos discípulos de Esculápio que havia então na cidade do Salvador, e do qual já se fez menção nesta história.
— Sr. licenciado, venho consultar-vos um caso!
— Estou sempre à obediência do sr. cavalheiro.
— Preciso que me informeis qual golpe ou ferida pode acamar um homem por dois meses?
O físico arregalou os olhinhos.
— De que vos espantais?
— Meu ofício é pensar e não dar golpes, sr. cavalheiro!...
— Também os dais quando é preciso para sarar o corpo! Esse é o caso. É verdade que tais golpes pagam-se melhor que as receitas; e por vossa segurança guardai esta bolsa.
O licenciado recolheu a bolsa, e objetou depois:
— A questão não é de paga, sr. cavalheiro; mas de consciência. Os golpes que eu dou são de bisturi; e vós me falais, se me não engano, em golpes de espada.
— Sem dúvida; são os de meu ofício.
— Bem vedes que vos não posso ajudar a fazer mal ao próximo.
— E se vos eu disser que é bem!
— Ah! se o sr. cavalheiro me promete não fazer mau uso do meu conselho...
— Oh! aplacai vossos escrúpulos, mestre Cabral. O caso é de consciência!... Tenho em minha mão os dias todos que restam a certo indivíduo; mas como não careço de tanto, e só de sessenta, recorro à vossa perícia, pois sem ela corro o risco de exceder a conta. Entendeis o negócio?...
— A falar verdade, ainda não. Se o cavalheiro quisesse aclarar melhor o caso...
— Pois não. Deixai-me ver a bolsa que vos dei.
O físico fez uma careta, e como se vomitara sangue do pulmão, escarrou a bolsa do peito do gibão.
— Aí estão não sei quantas moedas, vinte pelo menos. Posso guardá-las todas comigo, pois não as ganhastes, recusando-me o conselho pedido; mas suponde que desejo apenas tirar duas, e vos peço que me ajudeis a separá-las... Entendeis agora?
— Perfeitamente! Então são dois meses?
— Nunca menos!
— Para determinar com certeza é preciso conhecer a pessoa.
— Um homem de trinta anos, robusto, antes bilioso que sanguíneo, como dizeis em vossa algaravia.
— E o ferro que há de servir à operação?
— Aqui o tendes!
Cristóvão desembainhou a espada e pô-la sobre a mesa, aos olhos de mestre Cabral.
Este resmungou.
Afinal concluiu:
— Duas polegadas de profundeza na clavícula, rasgando para cima; são dois meses de cama, sendo o golpe convenientemente pensado por pessoa do ofício.
— Sereis vós quem terá esse encargo!
— Mas, sr. cavalheiro...
— Aqui tendes as duas moedas que saíram da bolsa. Quanto à cura, além do que receberdes do enfermo que é rico e generoso, pagar-vos-ei em dobro. Domingo próximo pela madrugada estai pronto, de mula selada à porta, que mandarei por vós.
Cristóvão saindo acrescentou:
— Escuso recomendar-vos segredo, pois é dever do ofício. Afiai a lanceta, mas embotai a língua.
— Não haja cuidado.
Dali foi o mancebo ver Elvira, com quem passou as horas merencórias da tarde.
No dia seguinte, logo pela manhã, encerrou-se ele na sala d'armas com Afonso. O escudeiro envergava um desses corpos de algodão, muito usados naquele tempo no Brasil, de preferência às couraças de metal fabricadas no Reino; porque estas, além de mais pesadas e incômodas, tinham o inconveniente de repelir com força os arremessos das setas e dardos, que resvalando pelas faces polidas, iam ferir os próximos combatentes; enquanto que as outras embotavam o golpe.
Sobre o ombro direito estava cosida uma chapa de pita ou cortiça, que devia servir de alvo à ponta da espada. O combate começou; o escudeiro defendia-se com toda a vigilância e destreza; não obstante foi tocado primeira, segunda, terceira vez. Cada volteio que fazia a lâmina do cavalheiro embebia-se no alvo; mas a dificuldade não era essa, e sim medir com certeza a profundidade do golpe.
Chegou afinal o domingo emprazado para a caçada.
Cristóvão, trajando luzidas roupas, apropriadas à festa, montou seu fogoso e brilhante cavalo tordilho, e partiu para São Gonçalo acompanhado de dois pajens trajados com as cores de sua casa. Na altura do Carmo encontrou ele o licenciado Cabral, que chotava na clássica mula, em companhia do escudeiro Afonso que o fora buscar.
A manhã estava linda; a alvorada apenas vinha rompendo. Ao longo do caminho que serpejava por entre o viçoso arvoredo, os saís e os coleiros voando dos ninhos, preludiavam o raiar da alvorada; e as flores silvestres da manga e do cajá abriam a caçoula de seus perfumes. O mancebo atravessava por essa galeria verdejante, como pela nave cheia de harmonia e incenso de um templo cristão; a serenidade voltara à sua alma; ele sentia-se quase alegre; e uma vez a ilusão que o possuía desenhou-lhe a cena da celebração do casamento de Inesita com Estácio.
Cristóvão revivia nos amores daquele par gentil os santos entusiasmos que lhe não inspiravam mais seus próprios afetos.
Na quinta do comendador já estavam reunidos muitos convivas; outros iam chegando quando Ávila com sua comitiva entrou a larga porta do pátio. O mancebo foi recebido com efusão de cordialidade por quantos ali estavam, que todos o prezavam pelos seus dotes de cavalheiro, e muitos se honravam da sua amizade. Uns o felicitavam pela sua ressurreição, outros gracejavam cortesmente sobre as melancolias dos namorados e o gosto repentino que tomam pela soledade; todos se alegravam com sua companhia.
Passado o primeiro instante de confusão trazida pelas recíprocas saudações dos que chegavam, e pela aglomeração das comitivas, foi logo notada a presença agoureira do licenciado, cujas vestes negras e rosto de pergaminho destacavam como um borrão no meio dos trajes garridos e vistosos, e dos semblantes alegres e prazenteiros.
Os convivas se entreolhavam, buscando na fisionomia de cada um a explicação daquela singularidade. Garcia se apercebeu:
— Senhores, requeiro uma parte do bom agasalho, que me fazeis, para o senhor licenciado, e conto que a não recusareis, apesar da repugnância que vos causam os seus récipes e emplastros.
— Teremos este cuidado, independente de vosso pedido, para que não nos carregue a mão quando lhe cairmos debaixo dela.
Um murmurou ao ouvido:
— Que ideia foi a vossa de trazer este mata-são a uma caçada?
Cristóvão sorriu:
— Trouxe o senhor licenciado comigo para decidir uma aposta que fizemos sobre a caçada.
— Ah!
— Qual aposta?
— Apostei cem moedas com o comendador, que hei de varar o veado, metendo-lhe o estoque na gorja sem lhe ferir veia ou nervo.
— E eu parei cem moedas em contrário! exclamou uma voz sonora.
O comendador assomara no patamar, galhardo de sua pessoa varonil, resplandecente das sedas e veludos que o vestiam. Descendo os poucos degraus de pedra veio apertar a mão de Cristóvão e dos mais convivas:
— A cavalo, senhores!... O sol desponta; é a hora em que o cervo deixa a malhada!
Os cavaleiros saltaram lestos sobre a sela; e a luzida e formosa cavalhada desfilou pelo vale, à doce luz da manhã. O trem de caça, matilhas, pajens, monteiros, guardas, havia partido ainda noite para o couto.
Uma ocasião Garcia emparelhando seu cavalo com o do comendador, encetou a conversa:
— Que tempo loução, D. Lopo!
— Soberbo, D. Cristóvão! Melhor monção de caça não podíamos ter! Ventos escassos, dia claro, mas fresco!
— Quereis que vos diga! Esta gentil manhã está me afogando o coração em ternuras!
— Não cuidei que fôsseis tão dado ao sentimento.
— Pois não, D. Lopo. Quando penso que a natureza se enfeitou hoje destes céus tão azuis, destes prados tão verdes, destes ares tão límpidos, para despedir-se da gente e fazer-nos saudades!
O comendador se voltou surpreso a ver se o cavalheiro falava sério; mas topou com um gesto prazenteiro e um sorriso farsola que não enganava.
— Desenfeitiçai-vos, D. Cristóvão! É uma casquilha, a vossa natureza, que a todos se requebra. Bem faço eu que não a cortejo.
— Folgai embora! Eu não sei que ideias negras me assaltaram!... Esta noite, antes de deitar-me, escrevi meu codicilo!
— Decididamente caís na elegia, cavalheiro. Disseram-me já que tínheis queda para a poética. Cultivastes o madrigal! Agora mudais de gênero!
— Gracejo à parte, comendador; escrevi meu codicilo, e como nele me lembrei de vossa pessoa, quero dar-vos comunicação do seu contexto.
— Bem!... Me instituístes vosso herdeiro universal.
— Minha mãe havia de querelar do testamento. Mas a terça, de que posso dispor, leguei-a em vossa tenção!
— Para que com ela vos mande dizer missas?
— Pouco mais ou menos. Ides ver; a minha terça anda em uns vinte mil cruzados; instituí herdeiro dela qualquer que seja nobre, e queira vingar a minha morte, já se sabe, em combate leal. Caso ele sucumba, como eu, passará o legado por substituição a outro e outro, e assim sucessivamente até que vos enviem a fazer-me companhia no outro mundo, ou que renuncieis à mão de D. Inês de Aguilar!
— A lembrança é engenhosa! retorquiu o comendador mordendo o bigode e parando o cavalo para fitar seu interlocutor.
— Não vos parece?... Vinte mil cruzados já é uma soma boa, e cavalheiros pobres e destros no manejo de espada não faltam na terra! Todos os dias estão chegando do Reino!...
— Cavalheiro, disse D. Lopo com ar severo, entraria em vosso pensamento a ideia de assustar-me?... Me supondes alguma criança que tem medo de almas de outro mundo!
— Longe de mim tal ideia!... Sei que em negócio de honra não recuareis, nem mesmo diante de um canhão aceso! Se vos fiz esta comunicação é para que depois do nosso encontro façais as vossas reflexões sobre o número das vítimas humanas que têm de ser sacrificadas em holocausto ao vosso himeneu. Talvez essa consideração vos mova mais que o meu conselho.
— Então o negócio é para vós de vida e morte?
— Dizei de vidas e mortes!
— Bravo, D. Cristóvão. Bater-nos-emos até à décima geração!...
Chegada a cavalgata ao couto, foi a caça levantada; a corrida começou, dirigida, conforme todas as regras da nobre arte da monteria, pelo comendador. O herói da festa era um veado-galheiro, cuja fronte altiva coroava a alta e rija armação. Por muitas horas esse velho rei da mata zombou da velocidade dos fogosos ginetes e do faro dos cães; afinal, depois de uma batida contínua, exausto de sede e fadiga, arrimou-se a um tronco seco e voltou-se para fazer face à matilha; suas pontas agudas rasgaram o ventre a dois ou três cães; depois desfalecendo vergou a cabeça ao peso dos galhos e arquejou.
Garcia e Lopo chegavam a galope e com eles a chusma de caçadores. O mancebo, a quem fora designada a honra de dar o golpe de misericórdia, como aquele em tenção de quem era a caçada, recebendo do monteiro-mor o estoque, embebeu-o no pescoço do veado.
— Perdeste a aposta! exclamaram logo muitos cavalheiros.
— Nem é preciso que o físico decida!
— Nada, disse Cristóvão; sem o voto dele não me dou por vencido.
— Assim deve ser.
Foram em busca do licenciado que estava dormindo na sela sobre a paciente mula, e o trouxeram ao campo da contenda. Bem quis o discípulo de Esculápio, nas suas funções de árbitro, pender em favor de quem o pagava; mas a coisa seria calva demais; decidiu pois que a artéria do veado fora traspassada pelo estoque.
— Desde princípio que tive o páreo perdido por vós, D. Cristóvão.
— Sem dúvida; era quase impossível!
— Não percamos o tempo, que é precioso!
Isto disse Cristóvão rindo, e olhando o comendador de um modo significativo:
— D. Lopo, sou vosso devedor por cem moedas!
— Nunca foi minha intenção recebê-las, pois tinha a certeza de ganhá-las, D. Cristóvão. Blasonastes de vossa habilidade, e eu tomei-vos sobre a palavra para melhor convencer-vos de vossa sem-razão.
— Senhor D. Lopo, não estou acostumado a receber lições, e muito menos esmolas!
— Parece que estais despeitado com a perda da aposta.
— Recebereis as cem moedas ou me dareis satisfação da afronta.
— Estamos no terreno; temos padrinhos à escolha.
Debalde se interpuseram os convivas, com especialidade D. Francisco, para conciliar os dois cavalheiros. Foram ambos inflexíveis; forçoso pois foi darem campo aos combatentes, servindo de mantenedores o castelhano e o alcaide.
D. Lopo não era uma espada de primeira força, conquanto tivesse um jogo regular. Garcia reconheceu logo sua imensa superioridade sobre o adversário; e demorou-se em saborear a vitória.
— Decididamente não quereis receber as cem moedas, D. Lopo?
— Se vos pesam, atirai-as aos lacaios, cavalheiro!
— Bem sei, rico senhor, que não fazeis caso dos pobres! Mas todo vosso grosso cabedal não vale o meu pouco, porque com ele não recuperareis o que vão custar-vos as minhas dobras.
— Que é então que elas vão custar-me, gracioso senhor?
— Nada menos que um olho!
— Sois jocoso!
— Ficareis como o nosso Camões! Ai!...
— Que há?
— Quase vos espetastes na minha espada!
— Não tenhais cuidado!
— Mas pensando melhor, desisto. As damas não me perdoariam jamais o ter desfigurado tão guapo e gentil cavalheiro!
D. Lopo ocupado com o jogo, o qual reclamava todos os seus sentidos, não pôde mais dar a réplica aos gracejos de Cristóvão, que já começavam a irá-lo.
— Ficareis sem este senão, D. Lopo; mas em troca haveis de estar acamado dois meses, isto é, sessenta dias, para refletir nas consequências de vossa pertinácia!
Mestre Cabral, que ali estava perto, de amarelo tornou-se verde.
— No primeiro dia depois do vosso restabelecimento, me fareis a honra de assistir a uma caçada em minhas terras de Matoim, onde vos prometo que atravessarei um veado sem lhe ferir nervo nem veia. Não será festa tão luzida como as que costumais dar; mas escusareis a singeleza. Estais convidados, senhores, para esse dia, e conto convosco!...
— Com a breca! Acabemos com isto de uma feita, senão acharemos o jantar recozido!
— Pois seja como dizeis. Aí vai, ao ombro esquerdo, no jogo do braço... Sentistes?
A espada de D. Lopo saltou-lhe da mão, e o braço caiu inerte ao longo da ilharga, ao passo que a dor o obrigava a arrimar-se ao ombro dos pajens para não tombar.
— Mestre Cabral! gritou Cristóvão enxugando a espada.
— Que achais? perguntou D. Francisco.
— Duas polegadas de profundeza, rasgando sobre a clavícula sem ofensa de nervo ou artéria.
— Mas é perigoso?
— Nada! Demanda apenas um curativo de dois meses.
— À casa, senhores! exclamou o comendador. O jantar nos espera. D. Cristóvão, aceito o vosso convite! Daqui a dois meses! Está dito, senhores.
— Por Santiago, que o caso é galante. Daqui a dois meses.
Arranjaram ali umas andas com ramos verdes para transportarem o comendador, o qual apesar da febre que sobreveio, ainda fez durante alguns momentos as honras de sua casa, estendido em um leito de campanha, até que por conselho do físico o recolheram à sua câmera.
À noite, D. Francisco chegando à casa comunicou à mulher o ocorrido, observando que as bodas sofriam com esse acidente uma demora de dois meses. Inesita, que o ouvia de parte, agradeceu a Cristóvão o alívio que lhe dera; mas lamentou o triste acontecimento de que fora vítima uma criatura, a quem ela não odiava senão porque a isso a forçavam.
Os dias correram então mais calmos para a donzela; embora a ameaçasse ainda a desgraça, ela esperava sempre em Deus e na volta de Estácio. Mas foi-se o tempo escoando; a convalescença do comendador prosseguia; os dois meses estavam a findar.
João Fogaça chegou de volta de sua expedição. O P. Molina conseguira escapar-lhe, graças à boa cavalgadura, e recolhera à Bahia; o capitão de mato vinha-lhe no encalço, e entrou na cidade na tarde do seguinte dia.
Cristóvão levou a Inesita as notícias que seu colaço lhe trouxera de Estácio. Sentiu a donzela apertar-se-lhe o coração, sabendo que seu amante estava tão longe dela quando a hora, em que seu mútuo destino devia decidir-se, aproximava; mas havia em sua alma uma esperança que surgia sempre nos instantes da desesperação, para lhe restituir a calma.
Enfim chegou o dia do restabelecimento de D. Lopo de Velasco.
O comendador e todos os seus convivas, inclusive D. Francisco, compareceram à casa de Garcia em Matoim. A festa foi esplêndida, e excedeu na riqueza e concerto às melhores que se davam na Bahia por aquele tempo. D. Lopo foi agasalhado como aquele em tenção de quem era o banquete.
Quando se retiravam todos, tomou Garcia ao comendador pelo braço, guiando-o até sua comitiva:
— Então, comendador, não renunciais à mão de D. Inês?
— Mas isso é negócio já resolvido, D. Cristóvão.
— Neste caso recomeçaremos!
— Se exigis!
— Sem dúvida!...
— Estou sempre ao vosso dispor.
No dia seguinte batiam-se de novo os dois fidalgos; e o comendador era novamente ferido no quadril e condenado a mais dois meses de cama. D. Lopo se atirara com fúria sobre o antagonista resolvido a feri-lo ou sucumbir de uma vez. Ele preferia a morte ao suplício de um curativo lento, insuportável a naturezas ativas e vigorosas como a sua. Mas Cristóvão, que desde o primeiro desafio continuara a exercitar-se e adquirira maior perícia ainda, burlou todos os esforços do antagonista.
Conduzido a casa o ferido, Ávila enviou-lhe imediatamente mestre Cabral, cujos salutares avisos é natural servissem para a perfeição do golpe, como da primeira vez sucedera.
De volta à cidade, o mancebo ao passar no Largo da Sé viu um palanquim fechado que entrava na igreja; e reconheceu, nos portadores, escravos de D. Francisco de Aguilar, embora não trouxessem eles a libré da casa. Curioso de saber se Inesita ali estaria com a mãe, foi até a porta da Sé; e daí avistou o palanquim arreado ao pé do confessionário. Um jesuíta, meio inclinado junto à portinhola, falava com vivacidade.
— Veio à desobriga! murmurou Cristóvão afastando-se.
Era costume naquele tempo irem as damas assim ocultas à igreja para se desobrigarem do sacramento da penitência, e pois não lhe causou aquele incidente grande reparo. Se porém se lembrasse do costume de terem as casas principais seu confessor privado, e a de D. Francisco o tinha em muito apreço na pessoa de Fr. Carlos da Luz; se lhe ocorresse a indisposição que existia entre os senhores de engenho e os padres da Companhia, não lhe passara tão desapercebido o incidente.
Depois de longa prática, o palanquim, onde ia D. Ismênia com sua escrava de confiança, tomou para Nazaré; o P. Molina, pois era ele o confessor, voltando ao Colégio, montou a possante mula, e encaminhou-se para o sítio de São Gonçalo a visitar D. Lopo de Velasco.
Na tarde deste mesmo dia foi Cristóvão à casa de D. Francisco. O fidalgo o agasalhou com a costumada cordialidade; até àquela hora ignorava o ferimento de D. Lopo; e pois gozava de satisfação do completo restabelecimento, que prometia a pronta celebração do consórcio. Irritado pelos sucessivos obstáculos que surgiam à realização de um acontecimento tão desejado, o castelhano, com o gênio ardente e insôfrego de que era dotado, resolvera apressar a cerimônia.
Comunicava naquele instante suas intenções, as quais se refletiam no semblante de sua mulher em desusada preocupação e na fronte da filha em uma sombra mais espessa de melancolia.
Cristóvão entrando adivinhara o que passava; e aguardou o ensejo de serenar Inesita, dando-lhe parte do acontecido.
Abriu-se a porta; um pajem entrou com uma carta.
Mandava-a o comendador:
Parece que a Divina Providência se opõe à realização do nosso mais caro voto, pois me lançou de novo, e quem sabe por quanto tempo, no leito da dor, donde esta vos dirijo. É urgente que vos fale hoje mesmo; armai-vos, como eu, de indulgência e resignação aos decretos do Altíssimo.
D. Francisco amarrotou o papel, irado ao último ponto; depois abrindo-o, colocou-o diante dos olhos da mulher que a muito custo soletrou as poucas linhas da carta:
— Vede, D. Ismênia, se não é para fazer perder a paciência a um santo!
— Penso eu que D. Lopo diz verdade!... A vontade do céu não é que estas bodas se façam!... Não tentemos a Deus, D. Francisco, que nos pode ele castigar e bem duramente!...
O castelhano olhou surpreso para a mulher, enquanto Ávila, aproveitando a ocasião, falava à puridade com Inesita.
— Que razões são estas que vos ouço, senhora? Pois não fostes vós sempre a mais interessada neste casamento e a primeira que se dele lembrou?...
— É certo, enquanto cuidei que fosse conforme com a vontade de Deus e a ventura de nossa filha. Mas vejo agora o contrário, e para tudo vos dizer, senhor, Inesita pôs seu cuidado em outro, que bem a merece!
— E esse outro não direis quem seja, já que tão bem informada estais?
— Se já o sabeis!... É aquele valente mancebo que aqui entrou há tempos e o disse em presença de todos nós.
— Estácio Correia! exclamou D. Francisco com soberbo alto de voz.
A este nome, Inesita e Cristóvão estremeceram e ficaram suspensos dos lábios dos dois esposos:
— O mesmo! respondeu D. Ismênia. Inesita e ele se querem. Os sinais da proteção, que Deus lhes dispensa, são visíveis; devemos pois nos submeter à vontade celeste, abençoando a ventura de ambos.
Inesita, assunta da violenta emoção, permaneceu um instante naquele rapto de sua alma, librando-se entre o céu de delícias para onde estava a desferir o voo, e o abismo de amargura e desespero em que ameaçava de novo sepultar-se. Quanto a Cristóvão, sua esperança fora rápida e fugaz; porque durante que falava D. Ismênia, ele vira a cólera funda e terrível que se condensava no afogueado semblante do fidalgo, e lhe embargara a voz um instante:
— Senhora, não proferi estas loucas palavras que são praga contra a nossa filha. Pois eu vos juro que se tal acontecesse, a maldição paterna a perseguiria pela eternidade!...
— Ah!...
Grito pungente rompeu do seio de Inesita, agora desfalecida nos braços de uma escrava. Cristóvão ficou ali, mudo espectador da cena, a olhar triste e merencório o pálido semblante da donzela. D. Francisco saiu arrebatado.
Quando Inesita voltou a si, ouviu-lhe Cristóvão um mavioso queixume:
— Só me resta morrer!...
— Ânimo e esperança! acudiu Cristóvão.
— Jamais, jamais serei de Estácio na terra! murmurou ela estremecendo ainda à voz da maldição paterna.