Ainda mesmo durante o carrancudo vice-reinado do conde da Cunha a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro tinha seus dias e suas noites excepcionaes de folgança e de alegria.
O bastão despotico do vice-rei ficava suspenso, deixando que os pobres colonos gozassem algumas vezes por anno horas de innocentes folguedos consagrados por motivos que erão santos e legitimados pelos costumes, que são leis imperiosas embora não sejão decretadas pelo poder. Ao governo oppressor até importa muito que o povo se entregue á festas e divertimentos: em quanto o povo brinca, não reflecte: pueri ludunt.
Uma daquellas noites excepcionaes era a de 5 de Janeiro, a noite da vespera do dia dos Reis ou das cantatas dos reis que aliás se repetião animadas na noite seguinte.
Filha de uma recordação pofundamente religiosa, de uma lição do Evangelho, da visita e das offrendas dos Reis Magos ao berço humilde de Bethlem, onde acabava de nascer da virgem imaculada Deos feito homem, Jesus Christo emfim, esse costume do povo portuguez passára ao brasileiro, e era como um reflexo do jubilo da igreja no regozijo profano, mas puro pela origem, e cheio de enlevos para todos no seculo passado, para todos ainda por muitos annos no seculo actual, para muitos ainda agora mesmo nos municipios e nas parochias do interior, onde se recolhem á ultimo, á extremo asylo, antes de aniquilarem-se completamente as usanças e os costumes rudes porém ricos de poesia caracteristica da vida brasileira no passado.
Deos nos livre de maldizer da civilisação: a civilisação é sol; mas o sol tem manchas: no assumpto de que muito de passagem tocamos, a civilisação tem europeado demasiadamente o Brasil.
Avivemos um pouco a lembrança da festa profana dos Reis que em summa era na cidade do Rio de Janeiro como em toda parte no Brasil.
A festa popular da noite dos Reis era a que rematava as festas do natal, que, acompanhando as sagradas commemorações da igreja, começavão na noite de 25 de Dezembro pela exposição dos presepes, onde se figurava a cidade de Bethlem, o lugar humilde do berço do menino Deos, um campo cheio de pastores e de multidão de animaes, arvores, flôres, rios, fontes e cascatas, tudo em mais ou menos bem feita miniatura, e tudo perturbado por mais ou menos anachronismos e impropriedades, que aliás não preoccupavão nem aos mais entendidos em historia natural e na archeologia.
Os presepes conservavão-se abertos até a terminação das alegres folias dos Reis, e todas as noites erão visitados por multidão de curiosos, e amadores.
Hoje em dia ainda se observão na capital do imperio e em capitaes de provincias fracos arremedos dos antigos presepes.
As cantatas dos Reis se preparavão com esmero e muita antecedencia: organisavão-se sociedades emulas umas das outras, como agora para os passeios do carnaval em relação aos homens: combinavão-se alegres mancebos e também velhos folgazões, jovens senhoras estimaveis, de ordinario parentas daquelles, ensaiavão danças allegoricas, quasi sempre pastoris, ajustavão suas vozes, tomando de cór a musica das cantatas, e emfim na noite de 5 e de 6 de Janeiro sahião á obsequiar seus amigos e pessoas de distincção, cantando — os Reis — em suas casas.
Quer estivesse aberta ou não a casa obsequiada, a cantata se entoava na rua e á porta, e começando quasi sempre por um infallivel:
Ou algum outro verso com o mesmo pensamento: o dono da casa recebia os visitantes, que repetião a cantata na sala, onde em seguida executavão suas danças: cêas lautas, mesas de banquetes, ou cobertas de doces se pantenteavão aos cantadores dos Reis, que assim passavão duas noites em regalada festança. A ninguem se prevenia e todos se prevenião: nas noites dos Reis cada chefe de familia tinha mesa prompta para ser offerecida ás sociedades obsequiadoras, e mesas que em muitas casas se renovavão com ostentação; pois que os cantadores dos Reis uns aos outros se succedião, e as pessoas mais distinctas se reputavão menos consideradas, se não lhes ontoassem á porta tres ou quatro cantatas.
Com estas boas sociedades de cantadores dos Reis contrastavão muitas vezes bandas especuladoras dos Reis, que os cantavão, pedindo tributos de favor: ainda no presente seculo essa exploração se denunciava na quadrinha velha, já antes repetida cem vezes com a mais desgraçada musica:
Pedir Reis é do costume
E o dar é bizarria;
O negar é mofineza,
O aceitar é cortezia,
Mas aos próprios pedidores dos Reis não se fechavão as casas, e para elle sera certa a colheita de pingues presentes que servião depois para multiplicar os jantares e as folganças dos especuladores da festa; estes porém tinhão ao menos a prudencia, e bom juizo de se afastarem das boas sociedades que em caso algum consentirião em reunir-se com elles.
E havia casos de reunião das sociedades de cantatas dos Reis.
Na cidade do Rio de Janeiro era quasi obrigada, , era de costume a reunião dessas sociedades no grande pateo do convento de Nossa Senhora da Ajuda. Alli se terminava a festa, a folia de cada uma das duas noites pelas razões mais justas e convenientes.
Em primeiro lugar essa concentração das sociedades dos Reis no pateo do convento da Ajuda era moda no seculo passado e a moda é lei; em segundo o presepe do convento da Ajuda passava por ser o mais famoso ou pelo menos um dos mais famosos da cidade, e portanto attrahia numerosa concurrencia; em terceiro as freiras da Ajuda erão, como ainda hoje o são, habilissimas e delicadas mestras de doces e de empadas, que então não poupavão ao regalo das sociedades, que recebião os presentes em taboleiros e bandejas cobertas com riquissimas toalhas perfumadas; em quarto e ultimo lugar era de costume que o pateo do convento da Ajuda se transformasse nessas noites em outeiro poetico; as freiras que estavão ás grades davão motes e muitos bons e máos poetas glozavão de improviso.
Por todas estas razões as boas sociedades de cantatas dos Reis se reunião de accordo no pateo do convento da Ajuda, quando muito além da meia noite havião terminado as suas visitas e cantatas de obsequio, e nesse pateo cada uma dellas por sua vez entoava seus cantos, e todas em amiga fusão dançavão alegremente.