D. Antonio Alvares da Cunha, conde do mesmo titulo era um varão de costumes rigidos e de caracter severo, honesto, bem intencionado, mas despota no governo: nomeado primeiro vice-rei do Brasil na capital do Rio de Janeiro trouxe, infelizmente para o desempenho de tão alto cargo, prevenções contra os negociantes portuguezes desta cidade, e vendo por isso em todos e em tudo indicios de opposição e desobediencia exagerou o systema de rigor até a oppressão e o despotismo cruel: por maior desdita sua chamou para official da sala o tenente-coronel do regimento velho Alexandre Cardoso de Menezes e dentro em pouco vivamente impressionado pela intelligencia, actividade e energia deste, applaudio-se da escolha que fizera e depositou no escolhido a mais plena e cega confiança.
Alexandre Cardoso reunia felizes condições para agradar e tornar-se o braço direito do vice-rei: sufficientemente instruido e talentoso o conde da Cunha á muito trabalho: infatigavel e diligente dava azas á acção do governo; sempre de accordo com o vice-rei, despota como elle, e fazendo executar todas as suas ordens e resoluções com a promptidão e o rigor que aprendera na disciplina militar, nada deixava á desejar ao chefe do governo da grande colonia: além de tudo isso moço ainda, pois que apenas ia tocar os quarenta annos, muito agradavel de feições, tendo elegante figura, graça no fallar e nas maneiras, e como bello lavor de tudo isso bravura natural abrilhantando o dever do soldado, exercia uma especie de fascinação sobre o velho conde da Cunha.
O vice-rei tinha dito a si mesmo cem vezes: «tenho o meu homem!»Pudéra antes dizer: «tenho a meu lado um máo genio.»
Alexandre Cardoso era com effeito o máo genio do conde da Cunha
Em pouco tempo estudara e conhecera as fraquezas do caracter do seu chefe que era sobre tudo orgulhoso, soberbo e dominador: poz-lhe de freio as fraquezas e dirigio-as em seu proveito: adulou sem exageração nas lisonjas, admirou incessantemente a sabedoria do consummado administrador, deu sempre conselhos sem dizer que os dava, nunca pretendeu parecer mais do que submisso e dedicado executor das ordens do vice-rei, e este deixou-se mil vezes arrastar e dominar pelo seu official da sala sem pensar que o fazia. Alexandre Cardoso abusava em nome do conde da Cunha e o conde da Cunha carregava com a responsabilidade dos abusos.
A fascinação era tão forte que ninguem se animava á queixar-se do official da sala depois que dez ou vinte exemplos demonstrarão que as queixas além de desattendidas erão fundamentos para crueis perseguições.
Alexandre Cardoso não podia ser perfeito e julgava-se o melhor dos homens, porque os seus principaes senões, á que não chamava vicios, erão tres amores que o obrigavão ainda á um quarto amor; amava as mulheres bonitas, amava o luxo, amava o jogo, e por causa das mulheres, do luxo e do jogo amava o dinheiro.
Os tres amores erão exigentes e o soldo de tenente-coronel não os satisfazia: o official da sala do vice-rei conde da Cunha poz a justiça e a administração á venda em seu proveito: dava empregos e empreitadas de obras publicas á preço ajustado, como negocio seu: fazia prender e soltar, recrutava e dispensava do serviço militar, ameaçava e annullava a ameaça á troco de favores pecuniarios, explorava emfim o governo de que era official, centuplicando os lucros legaes com os lucros da prevaricação e da infamia.
Era fácil assim amontoar thesouros; mas á Alexandre Cardoso nunca sobrava o dinheiro; porque elle tinha as mãos sempre abertas para animar seus tres amores: ao luxo e ao jogo não ha riqueza que chegue, e o amor das mulheres é tambem um abysmo que nunca se enche de ouro.
Alexandre Cardoso abusando das suas vantagens e da sua influencia de official da sala do vice-rei tornou-se o perigoso inimigo das familias, o seductor ousado que levava a deshonra aos lares domesticos: para essa guerra immoral e pervertida tinha elle por armas seus dotes pessoaes, o seu poder no governo da colonia, a ameaça de perseguição aos pais, e de recrutamento aos irmãos das donzellas, cuja belleza o encantava: as familias pobres de ordinario erão victimas da violencia, quando não cedião á garantia de protecção: as ricas nem sempre escapavão a audacia daquelle amor das mulheres e precisavão ás vezes lutar contra o resentimento e o furor do desenfreado e impune official da sala do vice-rei.
Peior que tudo isso ainda Alexandre Cardoso por suas paixões do jogo, e da luxuria tinha socios de jogo e de orgias e estendia sobre elles o encanto da sua impunidade: era portanto o chefe de uma banda de mancebos immoraes, corrompidos e audazes recrutados principalmente na officialidade dos corpos militares da guarnição da cidade do Rio de Janeiro, e essa banda perigosa, ousada, petulante era o terror das familias, e o testemunho vivo da perversão do governo.
O conde da Cunha retirado, quasi sepulto na solidão da casa que tinha de ser no seculo seguinte palacio de reis e de imperadores ignorava completamente as tropelias e os crimes do sei official da sala e dos sequazes que este commandava, e era força que os ignorasse, porque á semelhança dos pais extremosos e cegos, que se irritão, quando lhes denuncião os abusos e os vicios dos filhos, reputava calumniosas as censuras e accusações que se fazião ao seu querido official da sala, e violento se revoltava contra os censores e accusadores delle.
A obstinação e a parcialidade do vice-rei abrirão fontes de suspeitas e de calumnias; porque muitos supposerão e alguns propalarão que o conde da Cunha ganhava como socio principal nas toleradas prevaricações de Alexandre Cardoso, cuja desenvoltura permittia em attenção aos lucros, que lhe dava a sociedade infame.
A probidade do conde da Cunha triumphou dos botes dessa calumnia atroz, mas desculpavel por circumstancias attenuantes; é porém certo que o official da sala Alexandre Cardoso foi o máo genio do primeiro vice-rei mandado á capital do Brasil.