Sem o pensar o conde da Cunha poz a cidade em movimento, distrahindo-a de suas sombrias apprehenções com uma medida sabia e util; mas que offerecia margem para gracejos, e apreciações divertidas.
Dous dias antes do de S. José, á 17 de Março o Vice-Rei entregou a Alexandre Cardoso o bando que escrevera em substituicão do outro que o ajudante official da sala redigira, e ordenou-lhe que o fizesse logo proclamar.
O bando do Vice-Rei encerrava pensamento absolutamente opposto ao de Alexandre Cardoso, ou pelo menos muito favoravel de isenções do recrutamento; mas o secretario do Vice-Rei não se animou á fazer objecção alguma, antes deu-se por feliz, vendo que o conde da Cunha occupado seriamente deste assumpto, e dando-lhe grande importancia, se esquecia da questão dos soldados doentes do regimento velho, cuja averiguação completa bem pudera produzir graves consequencias.
Assim pois no mesmo dia o bando foi proclamado, e os habitantes da cidade ficarão na intelligencia de que o Vice-Rei, attendendo á desproporção que se notava entre os homens cazados e solteiros, sendo exageradamente superior o numero destes e considerando a fartura que havia de vadios onerosos ao Estado e nocivos á sociedade, ordenava que todos os jovens e quantos estivessem na edade varonil tratassem do cazar-se em breve prazo, e que aquelles que o não fizessem, assentassem praça nos regimentos de linha.
Esta providencia economico-politica, á que não faltava o cunho do poder absoluto e da oppressão do governo, se estendia álem da cidade á toda a capitania, e era por certo de consideravel proveito futuro; os habitantes de Sebastianopolis porem a considerarão em suas relações com o presente e a receberão em tom brincão.
Houve festa ao bando do Vice-Rei.
A' noute as familias amigas sahirão á vesitar-se; as moças perguntavão umas ás outras quantos pedidos em casamento já havião recebido; os velhos celibatarios com o direito da sua idade, divertião-se á empenhar-se por achar noivas, e os jovens solteiros e esquivos ao dever de tomar familia pensavão seriamente no bando do Vice-Rei.
O que não se mostrou dnvidoso, o que se manifestou francamente foi uma revolução subita na opinião publica femenina. O bello sexo que até então e principalmente nos ultimos dias se pronunciara vivamente adverso ao conde da Cunha, mudou de parecer e encareceu-lhe a sabedoria do governo: as jovens solteiras com particularidade enthusiasmarão-se pelo velho Vice-Rei.
Na primeira e nas seguintes ás mezas de cêas de alegres companhias as senhoras fazião dez vezes a saúde do conde da Cunha, e ellas tinhão razão, porque em dous dias mais de vinte meninas pobres já tinhão noivos muito empenhados em apressar seus casamentos.
Na casa de Maria de.... tambem se festejara o bando do Vice-Rei e na noite da vespera do dia de S. José reunira-se o circulo folgazão e não pouco leviano da famosa cortezã.
Alexandre Cardoso e Gonçalo Pereira não tinhão faltado; mas o primeiro cabia ás vezes em irresistivel meditação e o segundo mal disfarçava a sua tristeza.
A razão das reflexões de um e da tristeza do outro provinhão das intrigas da odienta e vingativa mulher.
Gonçalo Pereira tinha nesse dia almoçado com a cortezã e acabado o almoço recomeçou entre ambos a luta que desde muito se travava, e que puuha no animo do official a paixão mais ardente em violento combate contra o melindre e a honra.
Maria reclamava mais que nunca o concurso de Gonçalo para perder de uma vez Alexandre Cardoso, e exigia que elle se prestasse á dar ao Vice-Rei testemunho de factos criminosos ou escandalosos que vira o ajudante official da sala commetter.
Gonçalo revoltou-se e perguntou colerico:
— Queres pois que alem da ignominia de espião me caiba ainda a vergonha de denunciante?
— Quem falla em denuncia? disse Maria.
— Que exiges então?
— Que se fores chamado e interrogado pelo Vice-Rei, lhe digas a verdade.
— Oh! e quem denunciará Alexandre Cardoso.
— Eu.
— Maria! serias capaz?...
— Eu sou pomba e tigre.
E confiou ao amante a historia dos relatorios semanaes, que mandava ao conde da Cunha.
Gonçalo poude apenas dizer:
— Terrivel mulher!
Vou appellar para o teu testemunho na carta anonyma, que o Vice-Rei hade receber amanhã á noite.
— E eu negarei os factos, embora minta! exclamou o official.
Maria empregou todas as suas graças e fascinações para dominar Gonçalo, que pela primeira vez resistio ao poder da fada malefica.
A cortezã revoltou-se contra a resistencia invencivel do amante, e entrando em furor disse-lhe:
— Não preciso dos teus serviços... sei todo quanto desejo sobre Alexandre Cardoso... e não és tu que m'o dizes desde muitos dias...
— Ainda bem !
— Não o sabes, ou não me diceste e eu sei que foi Alexandre Cardoso quem mandou atacar no caminho da Gamboa a familia de Jeronymo Lirio...
— E' impossível! semelhante crime...
— Eu sei e o Vice-Rei tambem já sabe todas as circumstancias do attentado.E Maria referio por miudo o ataque, o combate, os ferimentos dos soldados, cujo tratamento se fazia fóra do quartel.
— E quem foi o traidor que te informou tam circumstanciadamente? porque foi um traidor, um cumplice que vio tudo... quem foi?...
Maria desatou uma risada de escarneo.
— Hasde dizer-m'o! exclamou Gonçalo abrazado em furioso ciume; hasde dizer-m'o! semelhante traição só podias comprar com a moeda, com que me corrompeste!
Maria empallideceu; mas disse com firmeza:
— Não t'o direi.
Seguio-se longa scena de phrenetico ciume, até que, de repente, Gonçalo murmurou raivoso:
— O alfores Constancio Lessa...
Maria empallideceu ainda mais; fingio porem segunda risada de escarneo.
Gonçalo acabava do lembrar-se de haver encontrado no dia immediato ao do attentado do caminho da Gamboa o alferes Constancio Lessa na casa da cortezã, accrescendo que desde algumas semanas concebera suspeitas de relações mais intimas entre os dous.Constancio Lessa era o mais dosmoralisado dos officiaes do regimento velho, e socio e instrumento dos maiores escandalos e perversões de Alexandre Cardoso.
Arrebatado de ciume e de indignação Gonçalo tomou o chapéo e deixou Maria, que não menos colerica ficava.
Um longo passeio aplacou o furor do official que resolveu-se á procurar pleno conhecimento dos factos, cuja suspeita o desorientava.
Foi-lhe facil encontrar o alferes Constancio Lessa, á quem convidou para jantar, e ainda mais facil faze-lo despejar e beber algumas garrafas de vinho generoso.
Habituado á todos os vicios, Constancio Lessa embriagava-se muitas vezes.
Gonçalo calculou o effeito das libações e quando vio o alferes mais alegre e mais garrulo, provocou a questão:
— Tu és um bom diabo, disse-lhe; mas as vezes pecas pela lingoa desenvolta...
— Na eloquencia do vinho, meu tenente; dá-me mais um copo.
E recebeu e virou o copo.— Então... fallo as vezes de mais?
— E muito: queres uma prova? escuta: por que havias de confiar o segredo daquella brincadeira do caminho da Gamboa á nossa alegre amiga Maria, que tam ciumenta anda do tenente-coronel?
— E' mentira... eu sei lá dessas cousas?...
— Não podes nega-lo: foi ella mesma que m'o confessou...
— Ella?... vem-me cá com essas...
— Bebamos um copo á saude daquella condescendente belleza!
— Viva Maria! exclamou o alferes Constancio Lessa, bebendo.
— Eu tambem amo a Maria, que nem sempre é cruel comigo; mas o diabo me leve, só ella me arranca segredo!
— Sim?... pois que te abres comigo, eu... eu vou abrir-me comtigo...
Gonçalo sentio que a lingoa de Constancio Lessa tornava-se pesada, e receiou have-lo feito beber de mais.
— Da-me vinho; disse o alferes.
— Acaba primeiro o que hias dizer, e dou-te uma garrafa cheia: então Maria...— Aquelle demonio... é mercadora de amor... por segredos... da vida do tenente-coronel...
— Então ella não mentio? contaste-lhe a historia da tal brincadeira?...
— Pois se ella disse metade... eu devia dizer tudo...
— Entendo, feliz diabo! foi favor por favor...
— Ou favores... por favores... tomara eu ler mais que contar... e leve o demo... o tenente-coronel...
— Ora! que boa vida! que pessas que pregamos ao tenente-coronel! Maria ama-me ha quatro mezes... e a ti?...
— Ha tres semanas somente... dás-me mais vinho?...
Gonçalo sciente da mais cruel verdade, empurrou uma garrafa para Constancio Lessa, levantou-se o sahio maldizendo da cortezã, que se aviltava ao ponto de vender-se por vingança e corrupção ao mais vil dos homens.
Maria cahira á seus olhos na mais profunda abjecção; olhando-a porem no fundo do vergonhoso e immundo abysmo, o nobre official se encontrava á seu lado com a marca da ignominia pelos abuzos de confiança, pelas traições, em que por sua vez incorrera, denunciando á fatal cortezã os abuzos e as desenvolturas criminosas de Alexandre Cardoso.
Arrependido e envergonhado das suas fraquezas, Gonçalo, porque era verdadeiramente nobre,experimentava nos remorsos e no mais violento e amesquinhador ciume o castigo de sua paixão desvairada.
Duas imagens, a de um homem e a de uma mulher incessantes se mostravão ao espirito agitado do Gonçalo, Alexandre Cardoso por elle durante algum tempo trahido e Maria que atraiçoara a ambos. Procurando escapar á essas lembranças crueis o joven official despresou o alferes Constancio Lessa, que ficára á beber na meza, e de novo foi pedir ao passeio, ao ar livre, ao encontro de conhecidos, e á fadiga o arrefecimento do seu vehemente soffrer.
Mas passeava apenas a meia hora, e Gonçalo sentio que alguém lhe puzera a mão sobre o hombro direito, o achou-se em frente de Alexandre Cardoso.
— Nem me via, tenente!... que preocupação!
— E' certo, senhor tenente-coronel.— Se precisa de um amigo, disponha absolutamente de mim.
Gonçalo corou; preferia um insulto ao obsequioso offerecimento de Alexandre Cardoso.
— Nada de ceremonias, tenente; ponho a sua disposição o coração o braço e a bolça, embora esta não ande muito provida.
Gonçalo levou a mão ao peito que arfava, e disse tomando de subito uma resolução:
— Senhor tenente-coronel, far-lhe-ei uma confidencia importantissima; receba-a e guarde-a em segredo para melhor acautelar-se.
— Pois é de mim que se trata?
— Pode ser que de nós ambos; mas pouco importa, o que me é relativo.
— Então que ha ?
— Ha mais de tres mezes que o atraiçoão, e tramão a sua desgraça.
— Eu começava a suspeita-lo...
— O Vice-Rei é constante e miudamente informado de todos os seus actos ainda os mais... melindrosos... e compromettedores...
— E como?
— Elle sabe tudo... os episodios que acompanharão o incendio da casa do carpinteiro... a tentativa de rapto da menina Ignez são-lhe conhecidos, como as suas perdas ao jogo, e quantos factos podem servir ao seu descredito...
Alexandre Cardoso desfigurou-se.
— Tem certeza disso, tenente? perguntou com voz alterada.
— Absoluta certeza.
— E o nome do traidor?
— Ha nomes de traidores.
— Diga-m'os todos.
— Não posso faze-lo: só tenho o direito de dizer-lhe o nome de um.
— Esse ao menos...
— Não me é possivel dize-lo já: o senhor tenente-coronel vai á serviço?...
— Não... passeava sem destino...
— Passeemos.
— Tenente, quem me esconde o nome dos traidores, serve a traição...
— Eu dei-lhe o aviso da traição urdida: nomear-lhe os traidores fora tornar-me delactor.
— Mas prometteu-me denunciar um...
— Tenho esse direito... passeemos...Alexandre Cardoso, atordido pela noticia, não soube mais de si, e, ora instando por novos esclarecimentos, ora absorvendo-se em profunda e sombria meditação, deixou-se levar por Gonçalo, que no fim de longa marcha pelo campo do Rosario, parou em um sitio dezerto e limpo de arvores, mas cercado de moitas de arbustos.
— Senhor tcnente-coronel, disse Gonçalo; o traidor, cujo nome posso declarar, apaixonou-se no correr do anno passado por uma mulher que tinha sido sua amante e que ferida pelo seu desprezo, poz por preço ao amor que esse homem lhe pedia a espionagem dos seus passos, e a traição á sua confiança.
— E o infame?...
— O infame?!!! exclamou Gonçalo batendo com a mão nos copos da espada; o infame... louco de paixão... submetteu-se a essa indignidade, e durante alguns mezes foi espião de seus actos... e abuzou de sua confiança...
— E quem foi esse miseravel ?...
— O tenente Gonçalo Pereira que está prompto a dar-lhe satisfação de cavalleiro.Os dous officiaes desembainharão as espadas, e o combate travou-se logo.
Erão ambos valentes e adestrados; mas Gonçalo Pereira esgrimidor notavel, e muito mais babil que o seu adversario parecia determinado a cansa-lo, e apenas se defendia.
Alexandre Cardoso enfurecido sentio que Gonçalo lho poupava a vida, ainda mais se enraiveceu por isso, e quando contava ferir de morto o tenente, vio sua espada escapar-lhe da mão, e cahir a duas braças de distancia.
Gonçalo cruzou os braços e ficou immovel.
— Não aceito a vida! bradou o tenente-coronel.
O tenente apanhou a espada de Alexandre Cardoso, c offerecendo-lh'a, disse friamente:
— Comecemos de novo.
Quero saber o nome da mulher por quem se infamou! disse Alexandre Cardoso sem receber a espada.
— Não lh'o direi; respondeu Gonçalo.
Rangendo os dentes, e espumando de colera o tenente-coronel tomou a espada já vencida uma vez e renovou o combate que por mais de dez minutos se prolongou terrivel.Tres vezes Gonçalo deixou de ferir o adversario, que se pozera loucamente a descoberto, tres vezes a sua generosidade foi sentida pelo desesperado e cego tenente-coronel; mas, finalmente, ao dar um salto, embaraçou um dos pés nas raizes seccas deixadas por antigos arbustos e cahio por terra.
Alexandre Cardoso com a espada ameaçadoramente levantada sobre Gonçalo, bradou:
— O nome da mulher...
— Não lh'o direi; respondeu o tenente sem alteração de voz.
— Esse nome ou a morte!
— Mate!
Alexandre Cardoso recuou dous passos, e embainhou a espada, dizendo:
— Não posso mata-lo.
E accrescentou:
— Vida por vida.
Gonçalo poz-se em pé e com o rosto em flammas de vergonha.
— Pois que é assim, disse tristemente, perdoe-me tambem o mal que lhe fiz.
Alexandre Cardoso, offereceu a mão que Gonçalo apertou.