LII

A cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro despertou festiva no dia 19 de Março, acordando ao ribombo das salvas de artilharia das fortalezas embandeiradas.

A praça do Carmo ou Largo do Paço estava margeada de immenso povo que occupava suas quatro faces, olhando e admirando as tropas que se desenvolvião no centro: as janellas do palacio, do convento do Carmo, e das casas particulares se mostravão armadas, e as ultimas atopetadas de senhoras: junto do palacio e perto da porta, onde soberbo cavallo esperava o conde da Cunha mais compacta era a multidão de curiosos, e encostado a parede tinhão muitos mostrado o carpinteiro Marcos Fulgencio com semblante carregado: o carpinteiro não se fisera acompanhar nem pela espoza, nem pela filha: tinha á um lado uma mulher de mantilha, e do outro um padre velho que lhe erão ou parecião desconhecidos.

Marcos Fulgencio trazia uma determinação criminosa e horrivel; viera armado de uma pistola e de um punhal e decidido á assassinar o conde da Cunha, aproveitando os momentos, em que elle montasse á cavallo; deixara em casa Fernanda chorando desesperadamente e Emiliana em violenta agitação nervosa.

Na tarde da vespera Maria tinha ido entender-se com Marcos Fulgencio; mas debalde o aconselhara á adiar a sua vingança, garantindo-lhe o proximo castigo de Alexandre Cardoso.

O carpinteiro respondera com aterradora frieza estas unicas palavras sempre repetidas:

— O prazo da espera termina hoje: o Vice-Rei conhece-o criminoso, e o deixa impune: amanhã heide matar o Vice-Rei, e, se eu puder escapar, depois d'amanhã matarei Alexandre Cardoso.

A descrença da justiça publica inspirava a vindicta dieta particular e um homem honrado, perdendo a razão pela impunidade do perverso algoz de sua honesta filha, hia ser criminoso de assassinato.

Maria deixara preoccupada e afflictissima o carpinteiro Marcos Fulgencio, de cujo vingativo empenho fora ella a propria provocadora.

Maria não era scelerata, e a idea de um assassinato a horrorisava; mais ainda alem disso o crime que Marcos Fulgencio premeditava, devia em todas as hypotheses contrariar as tramas que ella enredava para sacrificar Alexandre Cardoso.

A' despeito das instancias de Maria, e das lagrimas de Fernanda o carpinteiro fôra tomar o seu posto na manhã de 19 de Março, e com a mão no peito, onde trazia a pistolla, esperava o Vice-Rei.

A's onze horas da manhã em ponto, o grito da guarda, e a continencia dos soldados annunciarão a presença do conde da Cunha, que mostrou-se, e avançando para o cavallo, poz o pé no estribo.

Acclamações geraes saudarão o Vice-Rei.

E Marcos Fulgencio fez tal movimento com a mão que trazia ao peito, que rebentou alguns botões da vestia; mas a mulher de mantilha que estava á seu lado immediatamente lançou-se diante delle, e disse-lhe em voz baixa:

— Não quero... não quero... isso!

Marcos Fulgencio recuou um passo e quando reconheceu Maria na mulher de mantilha, já o conde da Cunha estava longe.

— Que pretendia fazer este homem? perguntou o padre que perto se achava.

— Atirar este ramalhete de flôres sobre o Vice-Rei; disse Maria, apresentando um ramalhete ao padre.

— Pois era isso?

— E então? o fogoso cavallo em que vae o senhor conde da Cunha, poderia espantar-se, e talvez acontecesse algum infortunio.

O padre voltou-se e d'ahi a pouco a mulher de mantilha seguia par e passo o carpinteiro que deixára a posição que, para tentar contra a vida do conde da Cunha, havia tomado.

Marcos Fulgencio seguio em direcção á praia, e quando se achou bastante afastado da multidão para não ser ouvido, voltou-se para Maria e perguntou-lhe irado:

— Que tem a senhora com o meu proceder e com o meu destino?

— Em todas as hypotheses faria o que fiz; mas nesta o sangue derramado do Vice-Rei cahiria tambem sobre a minha cabeça; porque fui eu que acendi a sua vingança.

— Está bem, senhora; já cumprio o seu dever; agora deixe-me em paz.

— Não.

O carpinteiro travou do braço de Maria, e com um rir feroz:

— Julga-me seu escravo? perguntou.

— A sua mão de ferro me contunde o braço; disse pacificamente a moça.

Marcos Fulgencio abrio a mão, e voltou os olhos, ouvindo o ruido de uma pizada.

O padre que fora testemunha do que pouco antes se passara, tinha-se aproximado sem ser visto e estava junto do carpinteiro e da mulher de mantilha.

— Marcos Fulgencio, disse elle; tu precisas de mim, meu irmão.

— Eu, senhor reverendo?

— Não era um ramalhete que hias atirar sabre o Vice-Rei.

O carpinteiro olhou espantado para o padre.

— Conheço-te, meu irmão: continuou o padre: és homem chão e temente á Deus; mas o demonio te persegue sem duvida, e não estás em ti.

— Abençoada seja a intervanção do ministro do Senhor! murmurou Maria.

— Peccador! disse ainda o padre ao carpinteiro; as portas da igreja de S. José estão abertas; é Deus que me envia a ti: vem confessar-te, e contrito receber o corpo e sangue de Jesus que te hade salvar.

E tomou pela mão a Marcos Fulgencio que humilde e absolutamente dominado se deixou conduzir.

Maria respirou, e caminhando apressadamente desappareceu no seio da multidão.