Havia saráo e cêa esplendida que bem se pudera chamar almoço pela hora adiantada da noite: mas na noite dos Reis a mesa não tinha hora, estava sempre posta e renovada até o amanhecer.

Apezar de sua má reputação, e graças á sua riqueza, ao seu espirito, e á sua influencia Maria tinha circulo numeroso e agradavel, embora não formado por senhoras de classe elevada e de educação escrupulosa. Os mancebos mais distinctos, muitos homens ricos, e os officiaes dos regimentos da guarnição da cidade frequentavão a sua casa, e não faltavão ás suas reuniões: por isso mesmo acudião tambem á estas muitas jovens de procedimento equivoco, e algumas familias sem protector zeloso, e pouco exigentes e melindrosas ou por dependencia da bella e rica libertina ou pelo desejo de attrahir noivos para as filhas, ou emfim pelas apparencias e exterioridades de boa companhia, que a elegante pervertida zelava em sua casa.

Alexandre Cardoso e seus companheiros entrarão na sala, quando Maria dançava o minuete comum requinte de enlevadora e provocante graça que nenhuma outra possuia como ella.

Maria contava então vinte e quatro annos e não parecia ter vinte: era de estatura regular, esbelta ligeira e um pouco lasciva, não affectada, naturalmente lasciva nos movimentos: seus cabellos erão louros, seus olhos grandes e de celeste azul, o rosto oval, branco, as faces docemente coradas, o nariz pequeno e bem feito, os labios admiraveis de suave rubor e não finos, nem demasiadamente grossos, bordando pequena boca, escondendo lindissimos dentes, e servindo á sorrisos cheios de magia; tinha o collo alto e elegante, como a fronte, o peito encarnado á não deixar adivinhar as claviculas e de alvura deslumbrante, os seios pequenos, a cintura fina, os braços admiraveis, as mãos e os pés de maravilhosa delicadeza, e em seus modos, e na expressão mobil de sua physionomia um certo que de graça indizivel, de innocencia que ella não tinha, de malicia que lhe sobrava, de contradicção caprichosa, de mistura do bem que se adora e do mal que captiva, de anjo cujos pés se devem beijar e de demonio a cuja tentação se obedece á força de encantamento irresistivel.

Maria chegára nessa época ao apogêo da sua formosura e á consciencia experiente do poder dos seus enfeitiçadores dotes physicos.

Sem interromper o seu minuete ella vio entrar Alexandre Cardoso e em vez de sauda-lo com um sorriso encrespou passageira e levemente os supercilios, e a fronte, como se um resentimento do animo lhe viesse ondear nos supercilios e na fronte; logo porém serenou e seu rosto foi todo, como pouco antes, espelho de bonança, e céo de alegria.

Acabado o minuete no meio de palmas batidas em applauso, conforme era de uso, Maria recebeu as saudações dos recem-chegados, e logo depois conduzio todos os seus convidados para a mesa da cêa que foi longa e ruidosamente festejada.

Entre os brindes que se fazião, fallarão todos dos divertimentos da noite, comparando as diversas sociedades dos cantadores dos reis e disputando sobre o merecimento de cada uma dellas para o ganho da primazia.

Cada qual referia os episodios interessantes ou grotescos que havia observado: só Maria, um pouco pensativa ouvia e não fallava, e Alexandre Cardoso e seus companheiros discorrião sobre tudo, guardando porém reserva ácerca do tumulto do pateo do convento da Ajuda, porque não lhes convinha propalar o improviso injurios do poeta que atacara o bispo e o vice-rei antes de communicarem á este o insolito caso.

— Faço um protesto, disse Alexandre Cardoso, elevando a voz.

— Um protesto?

— Sim; contra o silencio obstinado da encantadora fada que nos hospeda.

— Ah! disse Maria, interrompendo-o; são tantos os que protestão contra o official da sala do senhor vice-rei, que bem se lhe póde permittir que elle tambem proteste alguma vez.

Alexandre Cardoso corou e proseguio:

— Aqui cada um de nós tem contado o que vio de melhor e de peior nesta noite de folia e de divertimentos caracteristicos: que vio, que sabe e guarda comsigo a bella Maria?... aposto que ella dirá, o que ninguém disse ainda, porque seus lindos olhos vêm sempre mais do que os dos outros com a luz divina que radia nelles.

— Eu?... pobre mulher que não sahio de sua casa, o que eu dissesse agora, vinte bocas já o tem repetido.

— Falle! falle!

— Vós outros que tão tarde chegastes, sois os que tendes mais á contar: tenente-coronel Alexandre Cardoso, capitão Ayres de Brito, alferes Constancio Lessa, vós todos, que chegastes tão tarde, dizei-nos: que aconteceu por ahi?....

— Responda, quem pergunta.

— Posso eu adivinhar?

— Como fada que é.

Maria sorrio-se:

— Pois bem; disse ella; ensaiarei um sortilegio......

E deitando no calix algumas gotas de vinho, fingio que murmurava palavras cabalisticas, depois tocou com os labios no vinho, e exclamou:

— Vejo longe d'aqui, e é a vós que eu vejo, senhores officiaes recem-chegados!

— E então?

— Jogastes a banca até as dez horas da noite: o senhor tenente-coronel Alexandre Cardoso ganhou mais de mil cruzados: máo signal: feliz no jogo, infeliz no amor.

— Sinistro agouro!

— Sahistes á correr a cidade e a visitar os presepes: tenente Gonçalo Pereira, não foi decente nem digno que na ladeira de Santo Antonio abraçasses á força uma mulher de mantilha: recebeste justo castigo nas risadas dos teus amigos, quando descobrindo o rosto da victima, encontraste em vez de um fresco semblante de moça, a cara enrugada de uma velha.

— Ah! um espião nos seguio!....

— Poupo-vos á muito mais que estou vendo e que pudera dizer, e agora vos observo na vossa ultima estação....

— Onde?

— Ha apenas uma hora, no pateo do convento da Ajuda.

Os officiaes começavão a perturbar-se.

— Ali Alexandre Cardoso estava embevecido á contempelar um de dous lirios.... feliz no jogo, infeliz no amor.... o lirio indifferente não pendia para elle, que perdido e cego não vio, não soube ver se bem perto para alguém á furto pendia o lirio eu lambem não sei se houve pendor... mas é tão natural....

Alexandre Cardoso fingio sorrir; mas estava confundido.

— É saber muito e até demais! disse o tenente Gonçalo Pereira.

— Se eu sou fada! respondeu sem olhar o interruptor a soberba moça.

Depois continuou:

— As freiras davão motes, e os poetas glozavão...

— Basta.... basta.....

— Não; agora hei de ir até o fim, e hei de dizer-vos o que não sabeis, embora estivesseis lá e eu não sahisse d'aqui.

— Ouçamo-la, disse Alexandre Cardoso seriamente.

Maria comprehendeu a seriedade do official da sala, e sem constrangimento apparente, medio suas palavras para não dizer mais do que lhe convinha.

— Uma freira deu por fim o mote

«Viva o bispo e o vice-rei.»

E um poeta que não se quiz mostrar glozou do meio da multidão, improvisando com voz fanhosa uma decima insultuosa que acabou assim:

Maldito seja quem diz
— Viva o bispo e o vice-rei.

— Ah!.... exclamou com hypocrita horror a assembléa.

— Vós, nobres officiaes, vos atirastes de espada em punho contra o poeta audacioso, houve tumulto, desordem, ferimentos, contusões de innocentes, e tudo em vão, porque o mysterioso improvisador escapou sem ser ao menos conhecido, e, o que foi ainda peior.....

— Acabe....

— Quando Alexandre Cardoso voltou ao seu posto de embevecida contemplação, o lirio tinha fugido como o poeta: feliz no jogo, infeliz no amor!.... paciencia.

Evidentemente os mal disfarçados ciumes de Maria sahião-lhe do coração para cahir dos labios transformados em epigrammas pelo resentimento.

Alexandre Cardoso sentio a natureza dos golpes que sobre elle descarregava a terrivel e ciumenta amante; mas dominado pelo desejo ardente de conhecer o desconhecido, aquillo que Maria sem sahir de sua casa sabia do que se passara na pateo do convento da Ajuda mais do que os officiaes que lá tinhão estado, disse:

— A historia do poeta e do nosso empenho para castiga-lo é exacta, confesso-o; mas que é que podemos ignorar, e que a bella fada adivinha?....

— Vós não pudestes saber e eu sei quem foi o poeta que improvisou a decima revoltante.....

— Quem foi?..... perguntou Alexandre Cardoso, levantando-se.

— Uma mulher de mantilha.

— Não.....

— Sim; eu nunca minto, nem quando erro, ou me comprometto: o poeta que improvisou a decima, foi uma mulher de mantilha.

— E o seu nome?...

Maria fez um movimento com o braço, e tocou no calix encantado, que cahio sobre a mesa e quebrou-se, entornando as gotas de vinho.

— Ah! exclamou a perfida serêa, cobrindo o rosto com as mãos mimosas, que o não podião esconder de todo.

— O nome dessa mulher de mantilha?... tornou á perguntar alterado Alexandre Cardoso.

— Não vio que se quebrou o copo?.... respondeu Maria; agora acabou o encanto; não adivinho mais, esqueci tudo.

Uma hora depois todos os convidados tinhão-se retirado: o ultimo, Alexandre Cardoso teimava em demorar-se.

— Tenho somno, disse-lhe Maria; quero ficar só e dormir.

— Maria!

— Feliz no jogo, infeliz no amor.......

— Não jogarei mais.....

— Que me importa que jogues ou não?...

— Mas o resto desta noite?...

— Disse a palavra: é um resto... e eu regeito o resto.....

— Maria!...

— Vá sonhar com o lirio.

Alexandre Cardoso beijou a mão gelada da amante ciumenta e colerica e retirou-se.