Na chacara de Jeronymo Lirio tambem se corversava sobre as novidades do dia.
O velho negociante portuguez António Pires, amigo de Jeronymo desde quarenta annos e padrinho de baptismo de Ignez tinha ido passar o dia na chácara da Gamboa, e dera conta do que se passára na cidade.
Estavão na sala a senhora Ignez, e suas duas filhas que alegremente festejavão os presentes de doces e fructas que lhes trouxera o velho antigo de seu pai, e especialmente a bella afilhada que recebera além do mais uma linda boneca não cabia em si de contente.
— Imprudencias loucas, Antonio! não nos governão bem; mas a falta de respeito ao governo é peior: dissera Jeronymo.
Antonio Pires olhou em torno da sala, e não vendo senão o amigo, a comadre e as meninas, respondeu, fazendo com o braço um movimento:
— Leve o demo o governo que desgoverna, Jeronymo!
— Compadre! disse a senhora Ignez.
— Arrancão-nos dinheiro e propriedade, prendem nossos caixeiros e nossos escravos, desenfreão e protegem a devassidão...... pois em tal caso venha ao menos a vingança do pasquim!
— Antonio, tu és um velho creança: vamos jogar o gamão.
— Cala-te ahi que pensas como eu penso, e como pensão todos os homens de sizo e de honra.— Anda jogar o gamão ou eu mando as meninas molharem-te a cabelleira e os babados da camisa.
— Ellas não ousarião faze-lo, compadre: observou Ignez.
— E que o fizessem! o dia é de folguedo e eu não sou carranca rabugento, como seu marido, comadre.
E voltando-se para as duas meninas, perguntou:
— Sinhá-sinha, tens limões de cheiro?
— Não, meu padrinho; respondeu Ignez.
— E tu Nhânhã?
— Tambem não.
O velho tirou da bolsa duas moedas de ouro, e dando uma a cada menina, disse-lhes:
— Hoje governo eu aqui e muito melhor do que se governa lá fora: em quanto vou ensinar o gamão á vosso pai, mandem vocês comprar limões de cheiro nas casas em que os vendem, fazendo traze-los em caixas fechadas para não serem quebrados pelos rondantes do vice-rei, e molhem-se uma a outra, e molhem pai, e mãe, e á mim tambem com a condição de serem, e de se mostrarem bem contentes e bem felizes: não!
As meninas, coitadinhas, hesitavão, olhando para o severo pai.
— Este velho creança tem direitos de padrinho, que é quasi pai: ide brincar, e obedecei-lhe; pois que elle manda; nada porém de doudices..... ide brincar.
As meninas sahirão, correndo.
— Olhem como ellas vão! exclamou Antonio.
— Ignez, disse Jeronymo, manda-nos vir o gamão.
A senhora ígnez sahio da sala e em breve chegou o taboleiro do gamão que os dous velhos amigos descansarão sobre os joelhos; armadas porém as pedras, e tendo Antonio lançado o seu dado, Jeronymo em vez de imita-lo, fallou tristemente:
— Dizias bem: o governo da colonia está confiado á um cego que não quer ver e que tomou por conductor o vicio desenfreado.
— Cada dia novas extorsões....
— E' o menos: o mais é o exemplo da corrupção que parte dos que governão, e que empesta a sociedade; o mais é a impunidade do seductor indigno que ameaça as familias!...
O rosto de Jeronymo tornara-se rubro de colera.
— E' assim; mas......
— Antonio, eu á ninguém o disse ainda, nem mesmo á tua comadre; direi porém á ti, e á ti sómente; pois que tens direito de sabe-lo, e és homem capaz de comprehender-me.....
— Que ha então?...
— O official da sala ousou levantar seus olhos corruptores até a tua innocente afilhada!....
— Estás certo disso?
Jeronymo continuou com voz tremula e abalada.
— Quando quizesse duvidar, não podia....
— Porque?...
— Porque cartas anonymas me denuncião todos os passos, e todas as machinações de Alexandre Cardoso para aproximar-se de minha filha, relacionando-se comigo, e tudo se verifica de quanto me previnem; portanto já anda por ahi o nome de Ignez exposto ás lingoas venenosas desses devassos da companha do official da sala!
— Jeronymo, talvez estejas exagerando: és rico e póde bem ser que Alexandre Cardoso calcule com um casamento.....
— Casamento! darias a mão de tua afilhada á esse homem?
— Nunca; mas semelhante ambição está longe de ser uma offensa, como seria a infame tentativa de seducção.
— E quem assegura que o não é?...
— Eu por certo que não.
— Tambem minha resolução está tomada, e eu precisava communica-la á ti.
— Qual é?
— Minha familia continuará á negar-se a Alexandre Cardoso.
— Muito bem.
— E se o homem fatal por qualquer modo tentar seduzir Ignez, ou der motivo á que seu nome e a sua reputação soffrão ainda a mais leve e a mais injusta suspeita.....— Que farás?....
Jeronymo levantou-se e indo abrir as pesadas portas de um pequeno armario cavado na parede da sala, tirou delle um papel dobrado e lacrado triplicadamente e duas ricas pistolas.
— Estes objectos explicão, o que hei de fazer: ficas sabendo onde se ha de achar o meu testamento e estás vendo as pistolas, com que hei de na rua, de dia, e á face de todos matar Alexandre Cardoso.
Antonio fez um movimento de approvação; mas logo depois disse:
— Pobre velho Jeronymo! se errasses o primeiro tiro, não te darião tempo de usar da segunda pistola.......
— Antonio!
— Eu tenho melhor idéa.
— Qual?....
— Que magnificas pistolas! aqui na colonia não se encontrão iguaes! Jeronymo, dá-me uma dellas....... será aquella de que não terias tempo de servir-te.Jeronymo, banhado o rosto em lagrimas, abraçou-se com o amigo, exclamando:
— Não! seria demais!
— Que demais?... tornou Antonio com gravidade; tu és pai, e por isso tens o direito de ir adiante; mas eu sou amigo e padrinho e tenho o direito de ir depois. Em dous velhos que atirão de pistola, quando um erra, o outro póde acertar.
Jeronymo estendeu o braço para dar uma das pistolas a Antonio, que não a quiz receber, dizendo á sorrir:
— Tenho lá em casa tambem duas da mesma fabrica: o que eu queria, era assegurar-te que na hypothese que imaginaste, se errares o tiro, eu tratarei de apontar mais certeiro. Vamos jogar o gamão.
Hoje em dia dous velhos que assim fallassem, farião rir pelas bravatas ridiculas, á que ninguem daria grande importancia: naquelles tempos havia um dictado que definia certos homens: o dictado rude, como rude era o povo, era este: «pé de boi portuguez velho» e em Jeronymo e Antonio se encontravão dous pés de boi portuguezes velhos que farião o que dizião, dous homens de bem ás direitas, mas teimosos, emperrados, indommaveis que tinhão no cumprimento da palavra o fanatismo da religião.
Os ultimos representantes dessa geração de heroes de firmeza obstinada, antitheses da egoista inconstancia, e interesseiro aviltamento de notabilidades passivas, forão aquelles paulistas que tomavão por divisa vaidosa, ao menos porém não suspeita de indignidade o famoso principio: «antes quebrar, que torcer.»