LIII

Havia quinze dias que as lições de canto tinhão começado: desde que satisfazia os trabalhos diarios do governo da caza, regularmente as dez horas da manhã a senhora Ignez levara as filhas para sala e sei se auzentar por um só momento, e com os olhos e a attenção mais activa e o mais escrupuloso zelo empregados nellas, assistia as lições de solfejo e canto que Izidora dava as duas meninas.

Irene e Ignez que achavão dessas lições distracção suave em sua vida monotona, applicavãose muito e fazião rapidos progressos: alem do estudo regular da muzica, Irene tinha aprendido de cor duas modinhas e Ignez outras tantas e um lundú para canta-los em casa de Antonio Peres na noute da serração da velha.

Jeronymo Lirio estava satisfeitissimo do aproveitamento das filhas, já as fazia cantar em sua prezença, e calculara com essa nova prenda das meninas para a festa que daria ao Vice-Rei em uma segunda vizita, com que contava.

O recato, o proceder honestissimo, os modos sempre respeitosos de Izidora tranquillisavão cada vez mais o austero velho que nem mais disfarçava a estima que lhe merecia a hospeda; entretanto não se modificára por isso o systema da vida intima da familia Lirio: Izidora era sempre uma estranha; nem uma só vez se achava á sós com as duas discipulas, e unicamente em horas determinadas era admittida no interior da caza á conversar com a senhora Ignez.

Ainda naquelles tempos quasi recentes os portuguezes e seus descendentes conservavão no sangue os germens de turvo ciume mourisco que rouba a mulher á admiração e aos cultos dos homens e a condemna á escravidão do zelo brutal.

Irene e Ignez tinhão vivido sempre sob vigilancia como suspeitosa, e cada uma só na outra encontrava a confidente unica de seus inexplicaveis enleios.

Jeronymo Lirio e sua esposa defendião a innocencia de suas filhas contra todas as lisonjas e contra todas as luzes do mundo; mas não poderão defende-las contra a voz da natureza que devia annunciar-lhes embora confusamente um mysterio na vida da mulher um quer que seja que a natureza manda desejar, e que em sua innocencia a donzella deseja sem saber o que.

Irene e Ignez estavão já nesse caso, Irene menos ardente á pensar sem fallar, Ignez mais susceptivel e máis exaltada á pensar, á sonhar, á confiar a irmã o que nem ella nem a irmã entendião.

Sabião ambas que havia um laço que unia uma mulher á um homem, o cazamento; mas do cazamento só comprehendião, alem do fado mysterioso da união, a belleza ou o encanto do vestido branco e do véo, o da coroa da noiva, e o subsequente governo da caza do noivo.

Ainda assim, e sem saber porque, ambas dezejavão ser noivas; mas noivas de bonitos e elegantes mancebos.

Tanto Irene como Ignez por mais do uma vez tinhão recebido de velhas pobres pedintes á quem davão o pão da caridade, recados lisonjeadores e amorosos de homens á quem conhecião ou não: nunca havião dado resposta alguma; mas os recados as fazião rir o as divertião muito, e ambas instintivamente os escondião dos pais.

Assim Ignez sabia e acreditava quo Alexandre Cardoso a adorava perdidamente e com a sua innata e subtil habilidade de mulber tinha mais de uma vez olhado e observado imperceptivelmente o soberbo ajudante official da sala que lhe causara profunda repugnancia talvez em parte devida á reputação de homem máo e desmoralisado que elle gozava.

As duas irmãs brincavão, rião-se, e zombavão em confidencia dos protestos de amor que recebião muito raramente; mas que em todo cazo as fazião pensar em amor, e em cazamento sem sentir um e sem comprehender o outro.

Em um dos ultimos dias a menina Ignez, correndo á dar esmola á uma velha de mantilha que mendigava, ouvira della no meio de um diluvio de bençãos, as seguintes palavras proferidas em tons diversos:

— Minha bella menina—seja pelo amor de Deus—o senhor tenente-coronel Alexandre Cardoso official da sala do senhor Vice-Rei—Nossa Senhora do Amparo a proteja—ama-a e quer cazar com a senhora—e todos os anjos e archanjos a acompanhem sempre—o senhor Vice-Rei deseja o seu cazamento com o senhor Alexandre Cardoso e a protegerá contra seu pai—e S. Pedro, e S. Paulo, e Santo Antonio de Lisboa a façaõ feliz—porque seu pai a destina para freira; mas o seu bello apaixonado está prompto á salva-la e á cazar com a senhora, tomando por padrinho o senhor Vice-Rei—e todos os santos e santas do céo a fação feliz—de-me a resposta que devo levar — para sempre amen.

Ignez voltara as costas á mendicante, que se retirára confusa e apressada, temendo justo castigo, se a menina denunciasse o seu ouzado e impio recado.

Mas Ignez nada disse a sua mãi, e somente, esperando a noute, e quando se achava longe da familia e á sós com Irene em seu quarto de dormir e quando ambas, feita a oração da noute, se acolherão á seus leitos puros, e proximos um do outro, perguntou á irmã:

— Nhãnhã, como vás de recados?

— Que recados?

— De amor, de paixão, de cazamento, de tudo?

— Ora... Sinhá-sinha, tu pensas nisso?

— Creio que nós pensamos; mas em todo caso eu penso.

— Porque?

— Porque ainda hoje recebi um.

— De quem ?

— Do official da sala: foi a velha mendicante de hoje de manhã que me trouce o recado.

— E que mandou elle dizer-te?

— O mesmo que das outras duas vezes, e uma noticia curiosa.

— Qual?

— Que meu pai me destina para freira.

— E repetes isso á rir ?

— Não tenho medo: se fosse verdade, eu pederia protecção e soccorro á meu padrinho.

— E respondeste ao recado?

— Eu?... que me importa o official da sala com aquelles bigodes tam feios!

— Ah !... se elle fosse bonito...

— E bom, e engraçado...

— Responder-lhe-hias, Sinhá-sinha?...

— Não julgas que se pode responder á um deses recados sem se offender á Deus,e ao nosso dever?...

— Eu não sei... talvez... conforme a pergunta e a resposta.

— Tu és sonsa, Nhãnhã.

— E que responderias, Sinhá-sinha?...

— Mandaria dizer que fallasse á meo padrinho.

— Sobre que?

— E' claro, sobre o cazamento.

A innocencia do Ignez transpirava da propria ingenuidade com que se pronunciava.

— Sinhá-sinha, perguntou Irene, qual é o moço com quem desejarias cazar-te?

— Nenhum...

— Ora... estás mentindo...

— Não: já achei alguns bonitos, agora acho todos feios.

— Porque?...

— Quasi que tenho vergonha de dizer.

— Dize-me sempre...

— Quizera cazar-me com um moço que tivesse o rosto, a voz, a bondade e a graça de Izidora....

— Na verdade ella é bonita, e é pena que seja um pouco mal feita de corpo...

— Mas... que olhar o seu!...

— Multo suave... sem duvida...

— Quando não é brilhante de fogo; porque então é abrazador...

— Ella nunca me olhou assim....

— Parece que se arreceia da mamãi.

— Como pois sabes que ella tem olhar de fogo?..

— Já por tres ou quatro vezes, quando dás lição e mamãi se occupa mais com tigo, apanhei-a a olhar-me assim de relance.

— De relance?

— E' como um relampago, Nhãnhã...

— Ah!

— Tambem não sei porque mamãi nunca nos deixa em liberdade com uma senhora que é moça como nós, e ainda melhor educada que nós.

— E' verdade: nós nos divertiriamos tanto!

— E eu então! olha Nhanhã, não tenhas ciumes; supponho que ella gosta muito de mim.

— Porque?

— Um dia esqueci sobre o cravo um raminho de alecrim, e á noute, quando fomos rezar ao oratorio, vi o meu raminho, servindo de marca no livro de oração de Izidora.

— Talvez ella o apanhasse por acaso e sem pensar em ti.

— Julgas que sou tola? deixei passar dous dias, e, em quanto cantavas, fui esquecer um botão de rosa na janella...

— E mamãi não deu por falta do botão de roza?...

— Ora esta Nhanhã me considera idiota! pois eu havia de levar o botão de modo que a mamãi o visse?

— Onde o levaste?

— Bem escondido no seio.

— E que foi feito delle?

— Vi-o á meza do jantar no cabello de Izidora.

— E depois.... que mais?

— Acabou-se a historia.

— Sinhá-sinha, agora é que eu digo que és tola.

— Sim?...

— De que te serve gostar de uma moça como nós?...

— Eu sei! o que dizes é muito acertado; mas Izidora me encanta.... não é por minha vontade, não entendo o que sinto; mas já duas vezes tenho visto em sonhos um moço com o rosto de Izidora.

— Ella diz que tem um irmão que é o seo retrato perfeito....

Pois era com o irmão de Izidora que eu quereria cazar-me.

— Cazar-te?... fallas tanto em cazar-te! eu tambem desejava cazar-me..... tenho curiosidade..... ha no cazamento um segredo que nos encobrem..... porque o escondem? já o advinhaste, Sinhá-sinha? para que desejas cazar-te?

Ignez respondeo logo sem o mais breve vexame, e com indizivel naturalidade:

— E' para ter filhos, Nhãnhã, como os tem quazi todas as moças que se cazão, e tambem para ter caza minha, e em meo marido um homem que trabalhe para mim.

— Ainda falta ahi o segredo; murmurou Irene.

Ignez que tambem ignorava o segredo, e que se vio abatida pela evidencia da falha consideravel no seo saber pretencioso, disse um pouco amuada:

— O mais não sei.

As duas irmãs guardarão silencio por alguns minutos.

Irene tornou a fallar.

— Dormes, Sinhá-sinha?

— Não.

— Eu estava pensando em Izidora.

— Tambem eu.

— Cauzou-me surpreza e duvida o que me disseste: talvez tenhas interpetrado mal o facto de recolher essa moça o ramo de alecrim e o botão de roza......

— Interpetrei muito bem.

— Quizera fazer uma experiencia.....

— Qual?...

— Amanhã serei eu quem esqueça uma flor sobre o cravo.....

— E eu esquecerei outra na janella.

— Pois sim.

— Mas com a condição do não teres ciumes.

— Juro que tenho só curiosidade. Vamos dormir.

E Irene e Ignez dormirão facil, suave e tranquillamente, como devem dormir os anjos, se os anjos dormem.

No dia seguinte á hora da lição de muzica Irene que levava na mão uma violeta, deixou-a cahir sobre o cravo, quando solfejava, ao mesmo tempo que Ignez esquecia na janella um amor perfeito que levara escondido.

Terminada a lição e ao retirarem-se as meninas, Izidora chamou-as, e aprezentou-lhes a violeta, perguntando á quem pertencia.

Irene recebeo a flor, corando, e agradeceo á Izidora, e ainda mais curiosa e attenta vio á noite, durante as rezas no oratorio, o amor perfeito de Ignez servindo de marca no livro de orações de sua mestra de canto.

Quando abençoadas por seos pais as duas meninas se recolherão para dormir, e se achavão á sós, Irene disse a Ignez:

— Tens razão, Sinha-sinha, Izidora te ama.

— E eu á ella muito, cada dia mais!

— Eu porem não entendo isto..... que amor é este entre pessoas que não se podem cazar.....

— E' verdade, Nhanhã; não me governo porem mais.... amo Izidora..... e nem comprehendo a natureza do sentimento que á ella me captiva.....

Sinha-sinha, quem sabe se ha nisto obra e tentação do inimigo? eu te dou um conselho.

— Qual?...

— Antes da semana sancta havemos de confessar-nos: não te esqueças de consultar o padre sobre este caso de consciencia.

— Ah, Nhãnhã! o padre é tão rabujento!

— E' porque pecamos muito, Sinha-sinha; e porque talvez resamos pouco.

E instinctivamente as duas meninas cobrindo os seios com os lençóes em voltas, ajoelharão-se sobre as camas, e rezarão o credo, a ladainha de Nossa Senhora, e outras orações que as occuparão durante uma hora.

E depois adormecerão sorrindo, como se agradecidas sorrissem á benção da Deos.