XXII

Erão nove horas da noite.

Na casa da formosa cortezã havia saráo e jogo: na sala principal a dança e o canto erão os pretextos; na sala de jantar a mesa de jogo era o verdadeiro motivo da reunião.

Maria animava e encantava a companhia de moralidade duvidosa ou negativa na primeira sala: na outra uma roda de jogadores, mancebos ricos, velhos aferrados ao vicio, á paixão fatal do jogo, officiaes e paizanos dispunhão-se á parar á banca.

A mesa enchia-se de ouro.

Alexandre Cardoso ou por cortezia ou por desafio diante dos montes de ouro, offereceu as cartas a Angelo, que recusou-as modestamente; aceitando-as porém ás primeiras insistencias.

O jogo começou.

Na primeira cartada Angelo perdeu quasi sempre, e metade das suas pilhas de ouro passou para os outros jogadores: na segunda ficárão apenas cerca de vinte moedas ao banqueiro que havia perdido já muito mais de tres mil cruzados.

Angelo perguntou com imperturbavel serenidade, se alguem queria tomar-lhe o lugar de banqueiro.

Alexandre Cardoso que fôra quem mais ganhara, e que, apezar do que havia dito ao amigo com quem viera, tinha ogerisa á Angelo, disse com intenção de confundil-o:

— Abdica talvez por falta de recursos; mas sobra-lhe o credito: disponha da minha bolsa.

— Obrigado; respondeu Angelo sem formalisar-se.

E tirando do bolso um pequno sacco de veludo verde, despejou na mesa nova enchente de ouro.

— Vamos, senhores:

E espalhando, confundindo e baralhando as cartas com exagerado escrupulo, ia dal-as á partir, quando hesitou e sorrindo-se disse:

— Evidentemente baralho hoje contra mim!... se alguem baralhasse melhor as cartas.... capitão! o senhor que não joga, quer fazer-me este favor?

O capitão recusou-se.

— Paciencia; tornou Angelo.

E deu as cartas para serem partidas.

A terceira cartada vingou o banqueiro, que ganhou nessa quanto perdera nas duas primeiras.

— Quem quer as cartas?... tornou Angelo á perguntar.

— Continue; respondeu Alexandre Cardoso. Angelo carteou e ganhou ainda mais.

— Quem quer as cartas? repetio.

— Continue; insistio Alexandre Cardoso; mas se não o leva á mal mudaremos de baralho.

— Como quizerem.

Um criado trouxe cartas novas, e o capitão á pedido de Angelo e á instancias dos outros jogadores, tomou, abrio e misturou o baralho.

O interesse do jogo augmentava.

Alexandre Cardoso apontou elevada somma na dama.

— E' um erro; observou Angelo, sorrindo; as damas não são favoráveis aos jogadores.

E carteou. A terceira carta foi dama e cahio á direita. O banqueiro ganhára.

Alexandre Cardoso dobrou a parada na mesma carta: um outro ponto imitou-o.

— Não apontem na dama; tornou Angelo: sou ainda muito moço para que as damas me desdenhem.

E ganhou segunda vez.

Alexandre Cardoso teimou e com elle parárão outros ainda na dama, que offerecia então mais probabilidades contra o banqueiro, que impavido carteava, recolhendo sempre mais do que pagava.

A dama que se demorára appareceu, sahindo pela terceira vez á direita.

Alexandre Cardoso acabava de perder a sua ultima pinha de moedas, e no meio do ruido que excitára a fortuna do banqueiro, levantou-se dizendo:

— Esgotou-me a bolsa: por hoje basta.

— Sua palavra vale mais que mil bolsas recheadas; respondeu Angelo; e devo lembrar-lhe que ainda está no baralho a quarta dama.

— Mil cruzados pois! exclamou o ajudante official da sala.

Olharão todos para o banqueiro.

— Aceito; disse elle.

E perguntou aos outros pontos.

— Alguem mais quer honrar á dama?..

O desafio chegava á ser imprudente.

Dous mil cruzados esperarão a carta que tres vezes já tinha sido favoravel ao banqueiro.

Alexandre Cardoso tinha os olhos fitos nas mãos de Angelo; o capitão em pé o observava com igual cuidado.

A dama não se fez esperar muito e ainda pela quarta e ultima vez nessa cartada foi fiel á fortuna do banqueiro.

— E' demais!... exclamou um dos jogadores.

— Com effeito, disse Angelo; convenho em que ellas me perseguem docemente.......... mas só no jogo..... só no jogo....

Alexandre Cardoso olhou-o com raiva:

O tenente Gonçalo Pereira que pouco antes havia chegado e não jogava, fez um movimento de repugnancia, ouvindo Angelo, e sahio immediatamente da sala.