XXVIII

O conde da Cunha estava na verdade penhorado pela recepção que tivera na visita à Jeronymo: o concerto do caminho, o recebimento pelas senhoras no terreiro, a oração religiosa no oratório brilhantemente ornado e illuminado, a riqueza do banquete, a alforria dos dous escravos que o servirão á mesa, a dança e o canto das meninas e tudo isso combinado e realisado em cinco horas, tinhão sido trabalhos e festas de improviso, e de cortezia delicada, que obrigão a gratidão.

Mas fazendo promessas de obsequios e de graças na mesma occasião e com evidente falta de bom e melindroso gosto, o Vice-Rei talvez tivesse a idéa de dominar pela vaidade e pela ambição de distincçções os sentimentos e a vontade do austero e teimoso velho portuguez.

— Senhor Jeronymo, disse elle; desde que me fiz seu hospede, reconheci-me seu amigo.

— Eis ahi a minha ufania, e o meu maior galardão, senhor Vice-Rei.

— Pois bem: fallemos, conversemos, como amigos que somos e devemos ser, e vamos direito á questão de que desejo occupa-lo.

Jeronymo esperou silencioso que o Vice-Rei annunciasse a questão.

— Que juizo faz do meu ajudante official da sala?

— O peior possível, respondeu cora segurança o velho negociante.

— Porque?

— Eu já tive a honra de dizer ao senhor Vice-Rei, que em caso algum me farei denunciante.

— Aqui não está o Vice-Rei, está o amigo que interroga o amigo para offerecer-lhe ou não offerecer-lhe uma proposição importante.

Jeronymo adivinhou o pensamento e o empenho do conde da Cunha, e disse com ampla franqueza:

— O dia mais glorioso da minha vida vai acabar desconsolado e triste; porque o senhor Vice-Rei veio distinguir-me altamente com a honra da sua visita para dar-me uma ordem, á que não poderei obedecer.

— Então....

— Senhor, eu sou como pae responsável á Deos pelo faturo e pela felicidade de minhas filhas, e em nome de Deos jamais convirei em quo alguma delias seja esposa do tenente-coronel Alexandre Cardoso.

— Entretanto elle é cavalleiro nobre.

— São é porém nobre cavalleiro.

— Ainda!....

— E sempre, senhor Vice-Rei: pelo chefe supremo da sala respeito quanto devo e posso ao seu ajudante official; mas a consciência e o amor paternal não me permittem fazer de Alexandre Cardoso marido de minha filha.

— E se eu respondesse por elle?....

— Oh! com todo respeito digo que o senhor Vice-Rei já responde demasiado por elle no governo da colonia: é um vassallo fiel de El-Rei nosso senhor que falla assim: agora o que como pae sei e posso dizer, é que esse homem jogador frenetico, libertino sem freio, seductor que tem feito a vergonha e o infortunio de não poucas famílias, não está no caso de merecer a minha confiança.

— É então inexorável com um joven fidalgo, que apenas tem exagerado mais do que devia os defeitos proprios da sua idade?...

Jeronymo Lirio respondeu sem mudar de tom.

— Sei bem que não passo de humilde peão de baixa classe; pela minha honra porém declaro que me senti ultrajado, quando senti que esse fidalgo ousava levantar os olhos para minha familia.

O Vice-Rei tinha feito voto de paciência, e via bera que tratava com um portuguez velho e cabeçudo; insistio pois, dizendo:

— Mas, levantando os olhos para sua familia, Alexandre Cardoso o fez com as mais puras intenções, e a prova é que o fim desta conversação confidencial foi ainda ha pouco adivinhado. Vim pedir-lhe, e poço-lhe a mão de sua filha Ignez para o meu....

— Ah, senhor Vice-Rei!... perdão!... exclamou Jeronymo.

— Suas prevenções contra Alexandre Cardoso o tornão injusto: elle joga, mas deixará de jogar; tem frequentado de mais a casa de uma cortezã lamentavelmente celebre: não continuará porém á faze-lo. Eis ahi os graves senões, as tristes culpas que com verdade se attribuem ao meu ajudante official da sala: eu as condemno; mas vão lá achar um santo entre mancebos e principalmente entre os officiaes dos regimentos velho e novo! são erros reprehensiveis; todavia desde que são corrigidos, esses erros não deshonrão o futuro, porque não perpetuão a deshonra, ou antes as nodoas do passado.

Jeronymo não respondeu, e o conde proseguio:

— Fóra disso, bom sei, amontoão-se ainda tremendas accusações, a decima parte das quaes bastaria para levar Alexandre Cardoso á forca: a seducção de donzellas, as extorsões e as violências em nome do governo, o peculato formarião a lista dos seus crimes; onde porém as provas?

— As provas senhor Vice-Rei.... as provas?

— Acabe sei que não tem intenção de offender-me....

— As provas.... o senhor Vice-Rei deve procura-las.

— O Vice-Rei tem recebido cem cartas anonymas, como as que se escreverão contra o conde de Bobadella: o povo desta capitania, foi sempre mais ou menos altaneiro, e soffre de má vontade e morde o freio do governo: d′ahi mil calumnias arrojadas, para tormento e descrédito daquelles que governão, e o peior é que os proprios homens de bem, como o negociante Jeronymo Lirio, acabão por acreditar nos aleives multiplicados o repelidos.

— E porque o senhor Vice-Rei duvida sempre, o povo é victima do ajudante official da sala.

— Um facto com a prova....

— Senhor, eu cuido só da minha vida, e nunca pensei em recolher provas dos attentados e dos abusos do tenente-coronel Alexandre Caridoso.

— Eis ahi!....

Jeronyno Lirio cruzou os braços e disse:

— O senhor Vice-Rei me fez a honra de dizer ha pouco: «conversemos como dous amigos que somos»: se pois mereço o nome de amigo, assiste-me o direito de fallar franco.

— Sem duvida.

— O senhor Vice-Rei deve vigiar melhor o seu ajudante official da sala.

O conde da Cunha turbou-se.

— Vossa excellencia tem confiado nelle além dos limites da prudencia....

O Vice-Rei encrespou as sobrancelhas.

— Perdão, senhor; é o amigo que falla.

— Tem razão, disse o conde serenando: continue.

— Se o senhor Vice-Rei sem desconfiar do seu ajudante official da sala, mas também não confiando demasiado nelle, ouvir com paciência os queixosos, e por si aprofundar o estado dos factos de que se fazem pontos de accusação, não precisará pedir provas dos crimes de Alexandre Cardoso á pessoa alguma, o reconhecerá que elle tem sido fatal ao seu governo.

— Senhor Jeronymo Lirio, pela segunda vez e agora ainda mais clara e positivamente acaba de dirigir-me grave censura.

Jeronymo curvou-se e não se desculpou.

— Insiste no que disse? perguntou o conde.

— Insisto, senhor Vice-Rei, e digo mais; ousei e ouso desobedecer a V. Ex., não concedendo a mão de minha filha Ignez ao ajudante official da sala de V. Ex.

O conde fez um movimento de despeito. Jeronymo continuou:

— Mas se o senhor Vice-ilei quizer vigiar mais cautelosa e attenlamente o seu secretario, e no fim de dous mezes não se achar convencido das minhas respeitosas prevenções de amigo, comprometto-me á approvar e á realisar o casamento de minha lilha com o tenente-coronel Alexandre Cardoso. O rosto do conde expandio-se.

— Senhor Jeronymo Lirio, disse elle; aceito o compromisso e farei o que me aconselha; tenho nisso o maior interesse; pois que na condição que me offerece, comprehendo a profundeza das suas convicções contrarias ao meu secretario do governo, e a grandeza da sua amizade á minha pessoa.

E dando a mão a Jeronymo, accrescentou:

— Retiro-me, levando a segurança da sua palavra.

— Eu, senhor Vice-Rei, fico tranquillo com a certeza de que o casamento não se realisará.

O conde da Cunha que havia já dado alguns passos, voltou-se e ainda ajuntou:

— Não preciso recommendar-lhe segredo sobre o seu compromisso condicional: quero que todos absolutamente o ignorem: é matéria de que nem nós mesmos teremos de fallar até o prazo de dou mezes: direi tá Alexandre Cardoso que não pude vencer a sua opposirão ao casamento de sua filha com elle.

— Jeronymo acompanhou o Vice-Rei, e no terreiro recebeu a ultima despedida, e não se esqueceu de segurar no estribo, quando o conde montou á cavallo.

O Vice-Rei partio: quatro pagens de Jeronymo, levando lanternas, galopavão adiante, esclarecendo o caminho.

Erão dez horas da noite, quando o conde da Cunha apeiou-se á porta principal da casa dos Vice-Reis que aliás ainda não se chamava e só para clareza chamamos palacio.