XXXVII

O velho uzurario não se recolheu á sua casa, quando sahio da de Maria. A cortezã não lhe merecia confiança e em todo caso convinha-lhe fallar a Alexandre Cardoso: a boa agoardente com que se banhara interna e externamente lhe dera calor e lhe augmentara a força; dispoz-se pois á perder o resto da noute e foi esperar o ajudante official da sala á porta de sua casa na rua da Misericordia, e achando a porta fechada, sentou-se na soleira.

Dentro em pouco a idade, a fadiga e o isolamento puderão mais do que o cuidado dos papeis perdidos, e Clelio Irias insensivelmente foi-se deitando na soleira e tendo os pés firmados em um dos portaes, as pernas encolhidas, e um braço á servir-lhe de travesseiro, adormeceu.

A cidade já dormia tambem, e não houve quem, passando, perturbasse o somno do velho uzurario, que aliás podia não ser percebido, pois que então as ruas ainda não tinhão lampiões de illuminação.

Os sinos já havião annunciado duas horas da madrugada, e em breve marcarião tres, quando Alexandre Cardoso seguido de uma ordenança aproximou-se, trazendo o seu cavallo a meio galope e somente por ser muito adestrado cavalleiro deixou de medir a terra, pois o soberbo animal em que vinha montado, deu violento e inexperado salto, assustando-se com a roncaria e o vulto de Clelio Irias.

Alexandre Cardoso firme na sella, esporeou, dominou o cavallo, obrigou-o á reconhecer o objecto que o assustara, e depois gritou á ordenança:

— Desperta esse mendigo e leva-o á cadea.

O velho já tinha despertado, e reconhecendo aquella voz, sentou-se, gemendo, e disse:

— Sou eu, senhor tenente coronel....

— Clelio Irias!.... exclamou Alexandre Cardoso.

E, apeiando-se, atirou com as redeas á ordenança, disendo:

— Vai recolher os animaes.

E bateu á porta, em quanto o velho agarrando-se a um dos umbraes e soltando gemidos, levantou-se á custo.

— Que fazias aqui? perguntou Alexandre Cardoso.

— Esperava-o.

— Porque? para que?....

O velho repettio a historia da perda ou do roubo dos papeis e Alexandre Cardoso não o deixou acabar, entrando em explosões de furor, e injuriando Clelio Irias.

— Sinto-me muito doente, disse este; já nem posso apreciar a natureza e as feições da sua colera: roubarão-me papeis que podem lembrar ideias e meios capazes de perder-me; mas o homem, á quem esses p peis mais interessão, e cuja posse mais convinha é o senhor tenente coronel.

— Que pretendes significar, bruto?.,.

— Que a honra exige e manda que o senhor ajudante official da sala descubra onde estão aquelles documentos e m'os restitua.

O velho cahiu outra vez sentado, desprendendo pungente gemido.

Alexandre Cardoso pareceu compadecer-se delle.

— Tens razão, meu velho; empregarei toda a minha actividade em rehaver documentos, cuja perda ou roubo pode ser ainda mais falai á mim do que á ti. Se pudermos colhe-los, serão teus, voltarão ao teu poder, juro-o pela minha honra: se tanto não conseguirmos, nem por isso respeitarei menos as condições do nosso contracto verbal.

Clelio Irias quiz levantar-se e não poude.

Alexandre Cardoso deu-lhe as mãos e o poz em pé.

— Tu soffres.. vem; eu te receboe te tratarei em minha casa.

O velho arredou-se, dous passos com tanta viveza, e respondeu com tal accento de voz: — oh! não! — que Alexandre Cardoso sentiu a expontanea manifestação da mais injurios desconfiança e, resentido, lançou um insulto ao uzurario e entrou batendo e fechando a porta.

Clelio Irias apoiando-se á parede quiz andar; faltarão-lhe porém as forças e cahiu.

Sahirão então da sombra dous vultos, duas mulheres, uma de mantilha e outra sem mantilha: ambas se curvarão e erguerão em seus braços o velho doente:

— Senhor Clelio Irias, nós o levaremos á sua casa, disse a mulher que não trazia mantilha.

Erão Fernanda e Emiliana que se dirigião a Santa Casa da Mizericordia, e que, por acaso, tinhão ouvido a conversação ou o dialogo de Clelio Irias e Alexandre Cardoso.

A mi dissera á filha:

— Soccorramos o velho Irias: Deus tomará em conta e á favor de teu pai o bem que lhe fizermos.

A filha respondera com voz tremula:

— Soccorramo-lo; elle é meu irmão.

A fraternidade de que Emiliana se lembrara, não era a do Evangelho: era a de duas victimas de um só e do mesmo algoz. Não ficava longe a casa de Clelio Irias; este porém se achava tão tomado de dores, que as duas senhoras quasi desanimarão em meio da empreza caridosa, tendo de carrega-lo em seus braços.

Arquejando de fadiga chegarão finalmente, e aberta a porta da casa por um escravo velho como seu senhor, e o unico e a unica pessoa que com elle habitava, depositarão na mais pobre cama o rico uzurario, que ardia já em febre, e soltava profundo gemidos.

O escravo foi chamar um licenciado que morava na mesma rua do Parto e que acudindo deligente, examinou Clelio Irias e declarou-o em periga de vida e precisando dos mais assiduos cuidados.

O velho tinha reconhecido Fernanda e lhe beijara as mãos.

Fernanda chamou de parte a filha e disse-lhe:

— Emiliana, este homem emprestou dinheiro á teu pai, quando construimos a casinha que hontem se incendiou, e, uzurario cruel para todos, lembrou-se que um dia Marcos o defendera contra um devedor que desatinado por barbara penhora, o atacara na rua, e não quiz receber juros da quantia que lhe deviamos e lhe pagamos.

— Eu sabia tudo isso, minha mãi.

— O velho Irias está as portas da morte e não tem quem o trate: eu não posso, e tu podes faze-lo. Teu pai approvarâ o nosso procedimento. No correr do dia acharás uma hora menos atarefada para ir ver teu pai. Fica, velando por este homem sem amigos e sem parentes: é uma obra de mizericordia, minha filha; e eu voltarei aqui muitas vezes.

Fernanda afastou-se, e Emiliana murmurou lugubremente:

— Já não corro perigo.

E ainda teve duas grossas lagrimas para acompanhamento da ironia horrivel, com que se firira.