Defronte do campo, donde, com as melhores intenções deste mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele pela estreita e úmida rua, de que já falamos, estendia-se um trato de terreno inculto, muito coberto de tojo e de giestas, e dessa espontânea vegetação alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda mais os montes mais áridos e bravios.
Dispersas por toda a extensão deste pasto, erravam as ovelhas e cabras de um numeroso rebanho, de que eram os únicos guardadores, um enorme e respeitável cão pastor e uma rapariguita de, quando muito, doze anos de idade.
Até aqui nada de notável para o reverendo pároco.
Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele momento, a pequena zagala, o cão e o nosso conhecido Daniel, por via de quem o bom do padre empreendera tão trabalhosa excursão.
A pequena sentada junto de uma pedra informe e musgosa, folheava com atenção um livro, dirigindo, de tempos em tempos, meios sorrisos para Daniel, que, deitado aos pés dela, de bruços, com os cotovelos fincados no chão e o queixo pousado nas mãos, parecia, ao contemplar embevecido os olhos da engraçada criança, estar divisando neles todos os dotes mencionados na canção da Morena, que lhe ouvimos cantar.
Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel.
Completava o grupo o cão, enroscado junto do pequeno estudante com desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhecimento entre eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora, não era já de recente data.
Este grupo, apesar de toda a sua beleza artística, realçada pelas meias tintas do crepúsculo e por o fundo alaranjado do céu, sobre que se desenhavam os rendados das árvores ao longe, não agradou de maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar.
Esteve para surgir entre o centeio e mostrar-se aos enlevados personagens deste idílio infantil, severo e terrível, como o velho vulto do gigante Adamastor, nas estâncias do grande épico.
Pôde, porém, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com mal reprimido desagrado.
A pequena, que estivera por muito tempo inclinada sobre o livro, como a lutar com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer por si, acabou por fazer um gesto de impaciência, e, apontando com o dedo a palavra da dúvida, colocou a página diante de dos olhos de Daniel, perguntando-lhe:
— Isto que quer dizer?
Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu:
— Cataclismo.
— E o que vem a ser cataclismo?
Daniel ficou embaraçado. A falar a verdade, ele não sabia bem o que era cataclismo. Não teve coragem para o dizer francamente e titubeou:
— Cataclismo... sim... cataclismo é... sim... eu sei o que é... agora para to dizer é que ... Cataclismo...
O reitor apesar da posição crítica em que estava, não deixou de se zangar lá consigo, ao ver um discípulo seu não poder desenredar-se de tais dificuldades filológicas.
Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa da hesitação de Daniel e delicadamente lhe pôs fim, olhando outra vez para o livro e continuando a estudar em silêncio.
Daí a pouco voltou, porém, a consultar o seu pequeno mestre.
— E isto? Como se lê?
— Metempsicose - foi a reposta de Daniel
— E o que vem a ser?
Desta vez ainda o embaraço de Daniel era maior. Nunca ele soubera o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via pilhado em falso, perdeu a paciência. Saiu-se do aperto, como alguns professores em casos análogos.
— Ora! Isso é uma coisa que leva muito tempo a explicar.
Margarida resignou-se a não entender.
Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática que a originou.
Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar. Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com certo despeito mal encoberto:
— Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.
— Mas depois... amanhã...
— Amanhã! Que tem? Sossega, que não te castigo. E demais ainda tens muito tempo. Não vês que só venho e tarde?
— Mas...
— Mas... agora não quero que estudes, quero que cantes.
— Ora cantar! Que hei eu de cantar?
— A cantiga da Morena.
— Eu não gosto dela.
— Não?
— Eu, não.
— Então de qual gosta mais, Guida? - perguntou Daniel, dando à pergunta, e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Margarida, uma música de afetuoso galanteio, que não deixaria ficar mal ninguém.
— A da Cabreira, é muito mais bonita.
— Já não me lembra bem. Pois então canta a da Cabreira.
— Agora não.
— Agora sim; e por que a não hás de cantar agora?
— A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem, eu não.
— Ora adeus, ela é ainda uma criança - disse Daniel com um soberbo gesto de homem - Eu quero-a ouvir de ti.
— Eu julgo que nem a sei.
— Sabes, sabes, ora vamos a ver.
— Olhe... eu canto, mas...
E Margarida pôs-se a cantar e com a voz tão sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma posição mais cômoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas na ausência destas condições de juízo desapaixonado, foi um crítico como quase todos.
Ai vai o que ela cantava. em uma dessas singelas e monótonas melopéias de quase todas as xácaras populares:
Andava a pobre cabreira
O seu rebanho a guardar,
Desde que rompia o dia
Ate a noite fechar.
De pequenina nos montes
Não tivera outro brincar,
Nas canseiras do trabalho
Seus dias vira passar.
— Assim como tu - disse Daniel.
Margarida sorriu, fazendo com a cabeça um movimento afirmativo, e continuou:
Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar,
Por que chorava a cabreira,
Ides agora escutar
"Aí! que triste a sina minha,
"Aí que triste o meu penar
"Que não sei de pai nem mãe,
"Nem de irmãos a quem amar
"De pequenina nos montes
"Nunca tive outro brincar
"Nas canseiras do trabalho
Meus dias vejo passar".
Mas, ao desviar os olhos
Viu coisa que a fez pasmar.
Uma cabra toda branca
Se lhe fora aos pés deitar.
— Assim, pouco mais ou menos - disse Daniel, pousando a cabeça nos braços encruzados sobre as urzes do chão.
Margarida prosseguiu:
Branca toda, como a neve,
Que nem se deixa fitar,
Coberta de finas sedas,
Que era coisa singular!
E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou os dedos por entre os cabelos de Daniel.
Nunca a tinha visto antes
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa...
E foi para a afagar...
E continuava a correr as mãos pela cabeça de seu jovem companheiro, que sorria.
Eis vai a cabra fugindo
Pelos vales sem parar;
Ia a cabreira atrás dela
Mas não a pôde alcançar.
E andaram assim três dias.
E três noites sempre a andar!
Até que a porta de uns paços
Afinal foram parar.
Chorava o rei e a rainha
Há dez anos sem cessar,
Que lhe roubaram a filha
Numa noite de luar.
E dez anos são passados
Sem mais dela ouvir falar,
Eis chega a cabreira à porta
À porta foi se sentar
"Ai que bonita cabreira...
E Margarida, ao cantar este verso, não pôde conservar-se séria, vendo Daniel levantar os olhos para ela.
Que lá embaixo vejo estar!
E uma cabra toda branca
Que nem se deixa fitar
Meus criados e escudeiros
Ide a cabreira buscar".
Isto dizia a rainha,
Este foi seu mandar.
Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até a sala dos paços
Onde o rei a viu chegar.
"Pela minha c'roa de ouro
Eu quero agora apostar,
Que esta é a filha roubada
Numa noite de luar".
Milagre! Quem tal diria!
Quem tal pudera contar!
A cabrinha toda branca
Ali se pôs a falar.
A seguinte quadra foi cantada também por Daniel e sem ofensa da harmonia:
"Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou sete anos no monte
Quem nasceu para reinar!"
O resultado da intervenção de Daniel foi acabarem os dois a rir, com grande risco de deixarem incompleta a cantiga.
A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momentos, concluiu:
Que alegrias vão nos paços,
E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida,
No trono os pais vão sentar,
E vêm damas p'ra vesti-la
E vêm damas p'ra calçar,
E as mais prendadas de todas
Para as tranças lhe enfeitar
Vão procurar a cabrinha...
Ninguém a pôde encontrar;
Mas...
Foi olhando Daniel que a pequena Guida terminou:
Mas um anjo de asas brancas
Viram as céus a voar
E assim acabou a última quadra da xácara, e por algum tempo, as duas crianças se conservaram caladas, como se quisessem seguir ainda, até as derradeiras vibrações, as notas melodiosas daquela voz, ao desvanecerem-se no espaço.
Daniel foi o primeiro a romper o silêncio,
— Então, vês como a soubeste até o fim? E cantaste-a tão bem!
— Ora!
— Mas é noite, Guida, Repara. Olha que são horas de tu ires juntar o gado.
E acrescentou, suspirando melancolicamente:
— Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim! E que lição tamanha me marcou o padre esta manhã!
— Então de que tamanho é?
— Olha; vai vendo - disse Daniel, abrindo a Seleta e mostrando a Margarida as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. - É esta lauda... e esta... e esta, até aqui.
— E então isso diz o que diz?
— Conta a vida lá de uns generais antigos que fizeram guerras mortes e que quase sempre se matavam a si, quando não os matavam a eles.
— E para que é preciso que saiba estas histórias quem quer ser padre?
— Eu sei lá! Mas que estás tu a dizer? Padre! padre! Não me fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser padre, estou querendo.
— Então?
— Ora quando chegar a hora eu lhas cantarei. Ainda está por nascer o barbeiro que me há de abrir a coroa. O tio João das Bichas disse-me noutro dia - a rir, já se sabe - que já tinha em casa uma navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava então a navalha para o barbearem em morto.
— Mas o seu pai mata-o!
— Meu pai? Deixa-te disso. Meu pai não há de querer fazer-me padre a força.
— Mas o Sr. Reitor?
— O Sr. Reitor não é cá chamado. Que se meta com a sua vida. Ora é muito boa!
— E por que não quer ser padre, Danielzinho?
— Olhem que pergunta! Não quero ser padre, porque não quero, porque gosto de ti, e, porque, afinal de contas, hei de vir a casar contigo.
— Ora!
— Hei de, sim. Verás.
E dizendo isso, passou facilmente o braço pelo pescoço da pequena Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo que ainda nem sequer a fazia corar.
O reitor estava escandalizado e estupefato por quanto vira e ouvira.
Tivesse assistido em pessoa ao aparecimento do anticristo, que não se maravilhara tanto.
Esta cena inofensiva, esta écloga entre duas crianças, parecia-lhe mais abominável do que a outro qualquer as mais impudicas aventuras daquele herói, que Byron imortalizou com o nome de D. Juan, nome, já antes dele, de pouco austera memória.
Ao chegar a seus atônitos ouvidos, a vibração sonora do beijo, que terminou o diálogo, o padre estremeceu como se acabasse de escutar um silvo de serpente cascavel, e não pôde reprimir uma interjeição desaprovadora, bastante audível, para ser percebida por todas as personagens da cena que descrevemos.
— Não ouviste, Guida? Que foi aquilo? - disse Daniel, já meio erguido e olhando com inquietação ao redor de si.
— Não é nada - respondeu esta, com pouco mais de frieza de ânimo.
Mas, neste tempo, já o cão se havia levantado e ladrava furiosamente na direção do lugar onde o reitor estava escondido.
— Aqui, Gigante, aqui! - bradava-lhe, em vão, Margarida.
— O que estará acolá no centeio para o cão ladrar assim? - perguntou Daniel, já sem pinta de sangue.
E o cão ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter contra um inimigo oculto.
O reitor, como é de prever, começava a achar-se muito pouco à vontade.
— Aqui, Gigante - continuava a pequena, já cansada de bradar.
Mas Daniel, assustado, valeu-se do cão, como instrumento de exploração e defesa, e soltou uma palavra imprudente:
— Busca, Gigante, pega!
Não foi preciso mais nada.
O Gigante galgou de um salto o estreito caminho que o separava do campo onde o reitor cada vez suava mais com a iminência do perigo, e rompendo por entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas dianteiras sobre os ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na figura deste monstruoso cão.
Como esses bonecos que fazem as delícias dos pequenos feirantes de S. Miguel e do S. Lázaro, no Porto, e que ao abrir-se a caixa que os contém, são repentinamente expelidos por uma mola interior, o pároco, ao toque mágico do agigantado quadrúpede, ergueu-se, de súbito, sobre os calcanhares, e, meio sufocado pelo susto e com as faces enfiadas, bradou para Daniel:
— Chama este cão rapaz endemoniado! Ele mata-me!
Daniel é que não podia lhe valer, tão embasbacado ficou com a inesperada aparição do mestre. A mulher de Ló por certo não se conservou tão imóvel, depois do fatal momento em que cedeu à sua irresistível curiosidade.
A pequena Margarida é que salvou a situação - como me parece que se costuma dizer em política. Armou-se da maior severidade que lhe era possível, e com a inflexão de voz imperiosa, pronunciou um - "aqui Gigante!" - que foi prontamente obedecido.
O reitor estava salvo, mas ainda não senhor seu, e deveras chufado com as circunstâncias ridículas que acompanharam a sua descoberta. Ora, como sempre acontece , estas circunstâncias inabilitavam-no para assumir o caráter severo, grave e pedagógico, necessário a quem se propõe a dar uma repreensão ou a fazer uma prática de moral.
Com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projeto, e sem dar palavras, virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, interiormente quase tão pouco satisfeito consigo como com o seu discípulo.
Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo, desatou a rir, a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criança, que não tem outro igual. Esqueceu o que para ele havia de estranho e sério em tudo aquilo, e as conseqüências que poderia ter, para só se lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem, do susto que apanhara, do aspecto sorumbático que levava ao partir, e por isso tudo ria às bandeiras despregadas.
Vejam lá se o padre não fez bem em adiar o sermão para ocasião mais oportuna?
Porém. Margarida? Essa é que não ria. Certo instinto de delicadeza inato em quase todas as mulheres, não sei que vaga presciência de infortúnio, que algumas, de criança possuem, parecia-lhe estar dizendo que tudo aquilo, sem saber por quê, lhe poderia vir a ser funesto.
E enquanto Daniel ria, ela, coitada, não se pôde conter, e começou a chorar.
— Que tens tu, Guida? Isso que é? - perguntou-lhe Daniel, já sério e meio sensibilizado - Por que choras assim?
— Deixe-me. Não sei bem... mas sinto uma tristeza... e tamanha... tamanha! Vamos. É tarde, vou juntar o gado.
— E eu ajudo-te.
— Não. Vá para casa e corra bem, antes que o Sr. Reitor chegue lá primeiro.
— Pois ele irá?
— Ande... corra.
Foi então que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma razão em não levar o caso a rir, e que não devia ser para ele uma coisa de todo insignificante a aparição do padre ali. Por isso disse adeus à sua companheira, e deitou a correr para casa.