Mas deixemos as lágrimas, e as íntimas e não ostentosas tristezas de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem que, contra seus direitos de primogenitura, temos até agora deixado oculta na penumbra dos bastidores.
Falamos de Pedro, o filho mais velho de José das Dornas.
Pedro, mais idoso que seu irmão cinco anos, teve uma infância mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de menção no romance. Votado, como já disse, aos trabalhos da lavoura, as horas que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas do dia faziam digno de inveja.
Por certo que os leitores não quereriam que eu lhes referisse aqui as pequenas diversões daquela vida de rapaz da aldeia. Seria uma fastidiosa enumeração de jogos e freqüentes lutas com os companheiros, por vários motivos pueris. Isto quase aos dezessete anos. Enquanto que Daniel estudava o latim e se distraia já da aridez das regras da sintaxe, conversando a sós no monte com Margarida, Pedro trabalhava, dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes de sua idade, sem sentir outras aspirações e achando-se até pouco a vontade junto das mulheres, com quem não sabia conversar.
Não eram porém definitivas estas disposições de espírito em Pedro, como se vai mostrar. Aos dezoito anos operou-se a revolução.
Isto não quer dizer que a febre da adolescência principiasse a fazer circular nas veias do moço lavrador esse sangue inflamado que devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas súbitas, desses devaneios e não sei que fantasiar mal distintas felicidades, desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objeto, que é o mais puro e espontâneo culto do coração humano. Nada disso. A natureza não afinara a alma de Pedro para as sutilíssimas vibrações desta ordem. Esta quinta-essência da sensibilidade não lhe fora concedida. A gente da aldeia não conhece os prenúncios do amor, que os poetas têm apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar por aí na universal realidade deles; sendo forçoso confessar que muita gente há, que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos sintomas a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se serão os bens ou mal organizados, não me atreverei a decidir, mas que os há, isso, sustento eu. E Pedro era dos tais.
Querem saber como principiou nele a transformação a que aludo? Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenômenos precursores, que, à imitação dos médicos, poderíamos talvez chamar de críticos.
Um dia foi convidado para um serão. Aceitou contra vontade. Lá divertiu-se mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a sono solto depois. Daí por diante não faltava a nenhuma dessas assembléias campestres: fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas; lá ia a toda com sua viola, traste indispensável aos dandys da localidade.
Habituou-se por lá a conversar com as raparigas, e, dentro em pouco, era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se uma vez a cantar ao desafio; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe concedida a palma nesse gênero de certames.
Com tais predicados não lhe podiam escassear aventuras de amores; e não lhe escassearam.
Mas, em todo esse tempo, e apesar de todas as ocorrências, continuava dormindo as suas noites placidamente e de um sono só, dando assim uma excelente lição a esses amantes wertherianos que, por as mais pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele não. Os seus arrufos, as suas contrariedades não chegavam a esses excessos. Com o amor dá-se o mesmo que com o vinho - Perdoem-me as leitoras o pouco delicado da confrontação; mas bem vêem que ambos eles embriagam. É portanto lícito compará-los. Diz de certas pessoas - que têm o vinho alegre - de outras que - o têm triste - estúpido - bulhento - conforme dá a alguns a embriaguez para a hilaridade.; a outros para os sentimentalismo, a outros para a modorra ou para brigas. Pois com o amor é o mesmo. Amantes há que celebram os seus amores, e até suas infelicidades amorosas sempre em estilo de anacreôntica - esses têm o amor alegre; outros que, quando amam, embora sejam ardentemente correspondidos, suspiram, procuram os bosques solitários, que enchem de lamentos, e as praias desertas, onde carpem com o alcião penas imaginárias - têm estes o amor sombrio; a outros serve-lhes o amor de pretexto para espancarem ou esfaquearem quantas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos, e, nesses acessos de fúria, chegam a espancar e esfaquear o objeto amado - são os do amor bulhento e intratável; há-os que emudecem e embasbacam diante da mulher dos seus afetos, que em tudo lhe obedecem, que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um prazer indefinível de adormecer-lhe aos pés - pertencem aos do amor impertinente e estúpido. Poderia ir muito longe essa classificação, se fosse aqui o lugar próprio para ela.
Basta, porém, que diga que o amor de Pedro das Dornas pertencia a primeira categoria; - tinha de fato ele o amor alegre.
Pedro cantava sempre; tudo lhe servia de tema a uma série de quadras improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho. É verdade que talvez isso fosse porque Pedro não tinha ainda encontrado o verdadeiro amor, aquele que, dizem, uma vez só na vida se experimenta. Em todo caso era o que sucedia com ele.
Mas o reitor estava sempre a pregar-lhe.
— Pedro, tu andas por aí muito à solta! Vê lá onde vais cair.
— Ó Sr. Padre Antônio, a gente também precisa de se divertir um bocado.
— Pois sim, mas tudo se quer em termos e que não venham depois as lágrimas e os arrependimentos!
— Eu não hei de fazer coisa que...
— Sim, sim... Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, é procurares o que te faça arranjo, e então que seja deveras. Casa-te e deixa-te de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro dá para bem.
— Ora, Sr. Reitor, ainda tão novo, hei de já tomar canseiras de família?
— Queira Deus que, conservando-te assim como estás, nas as acarrete mais pesadas ainda.
Não obstante os conselhos do reitor, Pedro não se sentia com grande vocação matrimonial. Todas as suas afeições eram efêmeras, e daquelas, em cujo futuro o próprio que as sente não acredita, mas - lá vem uma vez que é de vez - diz o ditado: e, com Pedro, não estava esta fórmula de sabedoria popular destinada a ser desmentida.
Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos já - era então um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e músculos invejáveis. Andava certa manhã ocupado a cortar milho em um campo, propriedade da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atravessava a aldeia em continuados meandros.
Próximo havia uma ponte de pedra de dois arcos, construção já antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco fundo, e deixava à flor da água as maiores das pedras espalhadas pelo seu leito, permitindo assim a passagem, a pé enxuto, de uma para outra margem.
De joelhos sobre essas poldras, como por lá lhe chamam, desde o arco até alguma extensão no sentido contrário ao da corrente, um bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a roupa, ao som de alegres cantigas, interrompidas às vezes por estrepitosas gargalhadas; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e, algumas, mais madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da manhã havia já secado.
Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas quase todas, mas sem que o vê-las o distraísse da tarefa em que andava empenhado.
À medida, porém, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho lhe concedia mais vagares, pôs-se a reparar com atenção para uma das lavadeiras e a achar certo prazer na contemplação.
Era uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas arredondadas, vivacidade de lavandisca, digna efetivamente das atenções de Pedro e até de qualquer outro mais exigente que ele.
As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência significativa. Um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e fazia-lhe realçar o rosto oval regular de maneira muito vantajosa.
De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com um movimento cheio de graça, a trança mais indomável, que, desprendendo-se-lhe do lenço escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas, beijar-lhe o canto dos lábios, efetivamente de tentar.
Em um desses movimentos freqüentes, reconheceu que era observada, se é que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lho não fizera já adivinhar. Sabendo-se observada, conjeturou que era admirada também - conjetura que por mulher alguma é feita com indiferença e muito menos por Clara - era o nome da rapariga - porque diga-se o que é verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.
Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer apreciar mais do que pelos olhos, de cujo conceito ela não já podia duvidar.
Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas eternas e popularíssimas músicas da nossa província, das que mais espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras aos remos, cantou a seguinte quadra:
Ó rio das águas claras,
Que vais correndo pro mar.
Na pausa que, segundo as exigências da música, se faz ao fim de dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lançou com disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava; e depois concluiu:
Os tormentos que eu padeço
Ai, não os vá declarar.
Pedro efetivamente estava recebendo com prazer o timbre agradável daquela voz feminina; sentiu em si uma comoção estranha, visitou-a a musa rústica, e atirando-se com vontade ao trabalho, elevou também a voz, já tão conhecida por todos os freqüentadores de arraiais e esfolhadas, e respondeu
Não declara quem não pode,
E não tem que declarar.
Na pausa olhou também para o lado onde estava Clara, a qual ria ocultamente com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva fora levantada e principiava o certame. O momento era solene! Pedro terminou:
Pois quem como tu é bela,
Não pode ter que penar.
Um murmúrio de aprovação se levantou do conclave feminino.
A reputação de Pedro não fora desmentida desta vez ainda.
Mas Clara não era menos repentista. Tinha fama de nunca haver cedido o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. É verdade que, no caso presente, o contendor era de respeito; ela porém aventurou-se e não fez esperar a resposta:
O que eu peno ninguém sabe,
Ninguém o pode saber;
Porque eu peno e não me queixo,
Em segredo sei sofrer.
Novos sinais e aprovação das mulheres, os quais estimularam a emulação de Pedro. Ele respondeu:
Pois o sofrer em silêncio
É um dobrado sofrer;
Melhor contarmos tudo
A quem os possa entender.
Esta quadra ainda produziu mais efeito, do que as precedentes - graças à insinuação que nela se fazia, e tendências que mostrava para dar novo caráter ao desafio.
Clara aceitou a direção que lhe era indicada assim, e respondeu:
A quem me possa entender
Tudo eu quisera contar;
Mas os amigos são raros,
Não sei onde os encontrar.
E logo Pedro:
Encontra-os em cada canto
Quem os quiser procurar;
E um dos mais verdadeiros
Aqui te está a escutar.
Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por bastante tempo, sustentado de parte a parte com igual denodo e perícia. No entanto, a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo ceifado. Os contendores, cada vez mais próximos, pareciam cada vez mais e coração empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo.
Com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os campeões vencidos um por outro, pois ambos se reconheciam já seriamente apaixonados.
Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa na canastra; e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e travaram então um diálogo em prosa, que foi a confirmação de quanto, em verso, tinham dito já. E daí se originou uma afeição mútua, que, desde o princípio assumiu em Pedro caráter mais grave e prometedor de bons resultados, do que as antecedentes.
O reitor, que andava com os olhos sempre em cima do rapaz, disse-lhe dias depois:
— Lembra-te dos meus conselhos, Pedro. Não vás mais longe. Fica por onde estás, que não ficas mal.
Pedro já lhe não opôs os acostumados argumentos antimatrimoniais, Calou-se. É que desta vez a coisa era mais séria; e demais Pedro ia nos vinte e sete, e por isso começava a sorrir-lhe mais afavelmente o remanso do matrimônio.
Mas para justificarmos a opinião do reitor a respeito da nova inclinação de Pedro, digamos quem era Clara que assim de repente pusemos diante do leitor sem prévia apresentação.