Havia na sala grande obscuridade e um silêncio profundo. Parando, até habituar a vista àquela pouca luz, Margarida chamou, a meia voz, a mulher, a quem ela e a irmã pagavam para tratar do doente.

Ninguém lhe respondeu.

— Pois teria a crueldade de o deixar assim, neste estado! - pensou Margarida.

E apertava-lhe o coração só com a lembrança de tal abandono.

— Maria! - repetiu, elevando a voz.

O mesmo silêncio em resposta.

— Só! coitado!... Só! Que coração o desta gente, meu Deus!

E, com as lágrimas nos olhos, encaminhou-se para a alcova.

Guiava-a o respirar ansioso do enfermo. Mais acostumada já a obscuridade da sala, conseguiu Margarida aproximar-se do leito em que ele jazia.

Com a solicitude de uma filha, inclinou-se a observar o estado do pobre velho; e dando às suas palavras aquela inflexão carinhosa que é o segredo sabido das mulheres ao velarem por um doente estremecido, disse-lhe, unindo quase o rosto ao rosto macilento do moribundo:

— Deixaram-no aqui só? Como se sente? Dormia talvez, e eu vim acordá-lo.

E, ao examinar-lhe assim de perto as feições, estremecia de susto.

Naquela palidez, naquele olhar, nos movimentos dos lábios entreabertos, havia de fato uma significação de assustar.

— Então não se acha melhor? - repetiu Margarida, no mesmo tom de voz, e limpando-lhe a compassiva fronte, da qual um suor frio corria em abundância.

O velho volveu para ela um olhar, que, apesar de amortecido, refletia ainda bem evidente a mais viva expressão do seu estranho afeto, e por um movimento de cabeça, respondeu negativamente à pergunta.

— Coitado! - prosseguiu Margarida, ajeitando-lhe a roupa do leito. - Padece muito, não padece?

O doente moveu os lábios como para articular algumas palavras, mas tão sumido lhe saía já o som, que não se podia distinguir de um suspiro.

Margarida apalpou-lhe as mãos: estavam frias. dessa frialdade de cadáver, que desperta em nós repulsão instintiva. Apesar de toda a sua corajosa afeição a este velho, a compadecida rapariga, ao senti-las assim, ia a retirar as suas; mas impediu-a contração violenta com que lhas segurou agonizante.

Por pouco rompia um grito do seio de Margarida. Figurou-se-lhe, no primeiro momento, que um cadáver a ia prender ao sepulcro.

Venceu-se porém, e deixando a sua mão entre as mãos geladas do velho, e com a outra arredando-lhe da fronte os cabelos brancos, que em desordem a cobriam, continuou:

— Jesus, que soube o que é padecer, há de ter compaixão de si. Ele lhe dará o alívio.

O velho fez um esforço, e fitando em Margarida um olhar, ao mesmo tempo de dor e de saudade, murmurou a custo, e em voz cortada pela respiração:

— Sim... alívio na morte.

— Não diga isso - replicou Margarida, procurando sorrir, mas tremendo-lhe os lábios de compaixão. - Como perdeu assim a esperança? Pois não se lembra de, ainda há dias, combinamos dar uns passeios, que lhe hão de fazer muito bem? Havemos de ir breve; vou eu, a Clara, e o Sr. Reitor também vai, que já mo prometeu. Há de ser à ermida da Senhora da saúde. Se soubesse como lá é bonito! A vista segue, segue, por cima de campos, de devesas, de aldeias, e tão longe, tão longe, que só para no mar. Não se pode estar doente ali; verá.

Um sorriso, sorriso de gratidão e de amargura também se desenhou nos lábios descorados do velho, sorriso como pode ser o dos agonizantes - triste, desalentado, desconsolador.

— Então parece-lhe que não há de gostar do passeio? - prosseguiu Margarida, a quem fazia mal vê-lo sorrir assim. - Que medos são esses agora? Quantas vezes tem já estado, como já hoje, senão pior ainda; e depois melhora. Olhe, vou dizer-lhe uma coisa. Está para poucos dias o casamento de Clara. É preciso pôr-se bom para esse tempo.

O doente tomou uma expressão e agitou os lábios, como procurando falar.

Margarida inclinou melhor o ouvido atenta para conseguir percebê-lo. Entendeu-lhe estas palavras mal distintas:

— Não, nunca senti isto...

— Que o aflige então? - perguntou Margarida.

— Não sei... é aqui... - e com dificuldade elevou a mão ao peito; depois acrescentou: - É a morte.

E dizendo isto, fechou os olhos, como que extenuado pelo esforço.

— Bem sei também do que há de ser isso - prosseguiu Margarida, depois de pequena pausa. - É de estar assim tão sumido pela cama abaixo. Quer que o levante?

O velho fez um sinal de assentimento.

Margarida segurou então por baixo dos braços aquele corpo enfraquecido e descarnado; e suavemente, com cuidado de mãe, com a arte instintiva na mulher, elevou-o para a cabeceira. Mas o aspecto que iam tomando as feições do doente, à medida que ela o levantava assim, intimidou-a e tanto, que precisou de fechar os olhos com medo que lhe falhassem em meio as forças, a que a piedade dera alento.

A palidez aumentava naquele rosto desfigurado; afastavam-se-lhe os lábios para respirar; cada respiração era acompanhada de um gemido.

— Está pior? - dizia Margarida sobressaltada com a mudança. - Sente-se mais mal? Fale. Por que está assim aflito? estava melhor na posição que tinha? Quer que o ajude outra vez a descer?

E inquieta, aterrada por aquela agonia silenciosa, Margarida juntava as mãos irresoluta no que devia fazer. O moribundo parecia que não a escutava. Caiu pouco a pouco num abatimento extremo. A mão, que Margarida lhe tomava entre as suas, já não dava sinal de movimento, nem de vida.

Dissera-se, ao vê-lo agora desfalecer gradualmente, que a morte se aproximaria, lenta, suave, sem paroxismos, como um adormecer, que se não pressente.

De súbito porém alterou-se esta placidez enganosa.

Animado de uma energia, que contrastava com a depressão que, momentos antes, lhe paralisava os membros, tocados pelo dedo da morte, afastou impaciente a roupa, e, elevando as mãos, cruzou-as sobre o peito, ao mesmo tempo que inclinava para trás a cabeça , como em espasmo violento.

Margarida julgou-o morto.

Apoderou-se então dela um terror súbito e profundo. Assustou-a aquela escuridão, aquele silêncio, aquela agonia, e, soltando um grito, correu à porta para pedir socorro.

Ao abri-la, achou-se inesperadamente em face de Daniel, que, por acaso, entrava ali também naquele momento.

Estava muito agitado o espírito de Margarida, para que a presença de Daniel produzisse nela a impressão que, em outras quaisquer circunstâncias, produziria.

No homem, que mais pudera influir-lhe no coração, ela só viu naquele momento, o médico, o socorro, que lhe enviava talvez a providência; e com as lágrimas nos olhos e as mãos juntas, caminhou para ele sem hesitação, sem timidez, cheia de confiança.

— Por amor de Deus, Sr. Daniel, acuda a este infeliz que morre! - dizia ela comovida.

Daniel, surpreendido a princípio pelo inesperado aparecimento de Margarida, num instante recebeu o contágio abençoado da generosidade daquela alma.

A mais leviana cabeça curva-se diante da manifestação sincera duma dor assim: o coração mais volúvel deixa-se penetrar do influxo misterioso da simpatia e cerra-se a outros motores menos desinteressados.

Daniel compreendeu toda a nobreza daquele sentimento , e sentiu-se arrastado por ela.

—Que aconteceu Margarida? - perguntou ele, olhando com atenção para aquelas feições que se recordava de ter conhecido na infância, e agora duplamente realçadas pela poesia dos vinte e três anos e pela poesia da tristeza.

— Venha, venha; - respondeu Margarida - foi Deus que o trouxe aqui! - E tomando-lhe a mão por um movimento ao qual a menor vacilação de suspeita não alterava a firmeza, conduziu-o à cabeceira do moribundo.

— Veja! - disse ela então deixando a mão de Daniel - e salve-o se puder.

A agonia da morte, com que naquele momento lutava o ancião, não permitia conceber esperanças: um simples olhar revelou a Daniel toda a verdade.

— Salvá-lo?! - murmurou sorrindo tristemente e apalpando-lhe o pulso quase sumido.

— Aliviá-lo ao menos! - disse Margarida. - Pois não haverá nada que lhe diminua esta ânsia?

— As suas orações, talvez, Margarida. Tente.

Margarida caiu logo de joelhos, e com as mãos erguidas, e os olhos, donde lhe corriam as lágrimas, fitos no rosto do agonizante, murmurou uma prece fervorosa.

Daniel em pé, do outro lado do leito, contemplava-a com afeto. Não havia muito tempo que, naquele mesmo lugar, ele tinha visto Clara; mas que diversa e mais profunda era a sensação que recebia agora!

A dor, a compaixão, a fé, pareciam transfigurar o melancólico vulto de Margarida; dar vida àquelas feições, de ordinário serenas; fulgor àqueles olhos , languidamente cismadores; movimento aos lábios, que de costume a meditação contraía.

A vida latente dessa natureza delicada e sensível revelava-se em ocasiões destas. Como que um raio de luz divina, descia então sobre aquela beleza, que a luz da terra iluminava mal.

Sentia-se vontade de ajoelhar diante dela; a alma toda ia nesta contemplação, quase extática. Nunca mais se apagava da memória a imagem da simpática rapariga, vista uma vez sob tão prestigioso aspecto.

Lutando entre a paixão e o respeito, ente o amor que sentia nascer em si, veemente como nunca e um vago enleio de timidez, novo para ele, Daniel não podia tirar os olhos daquela saudosa figura de virgem em oração, que lhe parecia quase sobrenatural.

A agonia do velho acalmou, como se por efeito das preces de Margarida. Foi, pouco a pouco, decaindo da ansiedade num profundo abatimento: a respiração fazia-se a custo e com grandes intervalos; a cabeça pendia-lhe desfalecida. Depois os olhos, já embaciados, voltaram-se lentamente para o lugar, onde Margarida rezava ainda; agitaram-se-lhe os lábios, como a balbuciar um nome - o dela; - um sorriso de suave placidez cobriu aquelas feições como do reflexo da felicidade suprema, e um a lágrima, a última, rolou-lhe pelas faces, vagarosa, solitária.

— Veja, veja - disse em voz baixa Margarida para Daniel, sem desviar o olhar do rosto do velho, onde estas mudanças se sucediam rápidas.

Daniel inclinou-se sobre o peito do moribundo, e conservou-se por algum tempo assim.

Ao erguer de novo a cabeça, apenas disse:

— Está morto.

Ao ouvir esta fatal palavra, Margarida, sufocada de prantos, apoderou-se da mão do seu velho amigo, cadáver já, e cobriu-a de beijos lágrimas.

Reinou por algum tempo o silêncio no quarto. Interrompia-o apenas o soluçar da afetuosa rapariga.

— Margarida - disse-lhe enfim Daniel, que estivera presenciando mudo àquela dor generosa - é diante deste cadáver que lhe vou falar agora. Foi Deus que me trouxe a esta casa. Disse-o há pouco, não disse? E foi; creio agora que foi. O lugar é para mim tão sagrado como o interior de um santuário. Não é verdade que ninguém teria coragem para mentir aqui, Margarida? Não é verdade que ninguém pode recear do seu coração, quando o interroga em momentos como este, e o sente forte? É pois aqui, é neste momento que lhe repito, que eu venho jurar que a amo, Margarida.

— Oh! cale-se, cale-se! - exclamou sobressaltada Margarida, sem levantar o rosto para ele.

— Para que me manda calar? Levará tão longe a sua desconfiança que possa acreditar que até neste momento lhe minto, que nem a promessa, feita sobre este leito, para mim consagrado pela sua generosidade, que nem essa saberei respeitar?

— Por compaixão, por misericórdia cale-se - dizia com maior veemência Margarida, elevando agora para ele as mãos juntas e os olhos banhados de lágrimas.

— Margarida! - repetia Daniel.

— Não vê que é um sacrilégio quase, isso que está a dizer? Repare, veja onde está; olhe o que nos espera. Oh! cale-se!

— É a solenidade do lugar e do momento que me anima a falar-lhe. Não duvide de mim, Margarida. Será preciso que lhe lembre o tempo passado? será preciso que lhe fale da infância, Guida? da infância que passamos juntas.

— A mim? Serei eu a que preciso de avivar lembranças? - disse involuntariamente Margarida, num tom quase de amarga exprobração; mas, reprimindo este movimento, que não soube disfarçar a tempo, acrescentou com desespero: - Que quer de mim?

— A sua confiança, a sua estima; juro-lhe que a mereço. pela primeira vez faço, sem hesitar, este juramento. Alguma coisa se passou no meu coração, que me fez outro homem. Acabou o louco sonho de dez anos, que andei sonhando. Despertei ontem. Agora sou o mesmo Daniel, que daqui partiu, deixando na aldeia alguém que do alto dos montes olhava com tristeza para a estrada que o constrangeram a seguir, estrada que, ele também, regou com lágrimas de saudades. Guida, não me perdoará as loucuras deste sonho mau? Não mas perdoará em nome do passado? Fale.

Margarida não respondia.

— Diga, que devo eu fazer para adquirir de novo esta estima, que perdi? Peça-me sacrifícios, peça-me provas, mas não me feche assim de todo o coração. É generosa para com todos, e só para mim...

— Que quer? - disse Margarida, afastando com as mãos trêmulas os longos cabelos negros que se lhe haviam desprendido pelos ombros. - Que vem me pedir aqui? Para que vem lembrar-me o passado, que, primeiro do que eu, deixou esquecer? Deseja a minha estima, a minha confiança... Confiança em quê? No seu caráter?... bem sabe que não desconfio da nobreza dele; no seu coração?... - e a voz tremia-lhe ao acrescentar - aí, do seu coração... para que deseja que me ocupe do seu coração, Daniel? Por piedade, não me fale assim! Se soubesse o mal que me faz, se soubesse... ó meu Deus! eu a dizer isto, e este cadáver a pedir-nos orações! Daniel... Sr. Daniel, peço-lhe que me deixe rezar.

— E vai rezar com a alma cerrada aos sentimentos de piedade, Guida?

— Daniel! - repetiu Margarida, quase suplicante.

Naquela posição, com aquele olhar, pronunciando-lhe assim o nome, tão sentida e singelamente, a simpática pupila do reitor acabou por dominar de todo o coração de Daniel.

— Margarida! - exclamava ele - não vê que essa desconfiança me mata? por piedade!

Margarida julgou perceber não sei que de sentido e de apaixonada na voz e no gesto que a implorava assim.

Olhou algum tempo para Daniel, irresoluta; ia talvez estender-lhe a mão, ia revelar enfim o segredo de tantos anos; o mesmo pensamento, porém, que a obrigara a guardá-lo até ali, fê-la recuar mais uma vez.

Mas Daniel tinha-lhe percebido já a hesitação; bastou-lhe um instante para convencer-se de que não era com a indiferença que teria a lutar. Alentou-o esta idéia. Enquanto que Margarida recuava, ele, cada vez mais próximo, ia de novo repetir a súplica.

Neste momento, as mãos que o velho Álvaro conservava ainda cruzadas sobre o peito, desunidas agora pela morte, vieram cair inertes no leito, de cada lado do corpo.

A esta aparência de animação no cadáver, a este movimento inesperado como para separá-los, Daniel recuou, estremecendo, e Margarida soltou um grito ocultando o rosto com terror.

Neste tempo abria-se com violência a porta do quarto, e aparecia no limar a figura do pároco.

— Que é isto? - perguntou ele, ouvindo o grito de Margarida, e alternando o olhar inquieto entre ela, ajoelhada ainda, e Daniel, pálido e em pé, do outro lado do leito.

— É uma vida de tormentos que findou - respondeu Daniel, indicando o cadáver do velho.

Então o padre caminhou lentamente até junto do leito, onde um feixe de luz, entrando pela porta, que ficara aberta, vinha iluminar a cabeça do morto; contemplou-a por algum tempo com tristeza; depois, ergueu os olhos e as mãos para o céu, e principiou com voz pausada e clara, a recitar:

— Requiem aeternam dona ei, Domine! Lux perpetua luceat ei, Requiescat in pace. Amen (Repouso eterno no seio Senhor. Que a luz brilhe perpétua. Descanse em paz)

Cedendo à influência da voz e do gesto e da sincera compunção do reitor ao recitar a oração mortuária, Daniel ajoelhara.

O reitor continuou por algum tempo rezando ainda em voz baixa. Depois baixou melancolicamente os olhos outra vez para a fisionomia serena do morto; consolou-o aquele reflexo de felicidade que julgou perceber nela. Em seguida, voltando-se para Daniel e Margarida, que se conservavam ainda ajoelhados, suspirou.

Cedo, porém, veio um sorriso desanuviar as feições do pároco. Ergueu novamente as mãos, como a invocar a influência do céu, e sem que os dois o pressentissem, cobriu-os com sua benção.

Quando, passado algum tempo, saiu com a sua pupila da casa em que estas cenas se passaram, ia a sorrir de satisfeito o reitor. É que lá lhe parecia que tinha sido inspiração divina aquela benção dada ali e que não podia deixar de ser eficaz para o que ele meditava.