Tomando certos ares de gravidade e de importância, em grande parte devido a uns estupendos colarinhos engomados, acessório daquele vestuário típico, dobrou o Sr. João da Esquina a esquina, donde lhe vinha o nome, e, atravessando a rua adjacente, caminhou em direção à casa de José das Dornas.
Ao entrar no portão do lavrador, deu o tendeiro ao rosto um jeito de indignação e procurou simular em seus movimentos uma impetuosidade e impaciência, contra as quais estava protestando aquele todo bonacheirão.
— Diga ao Sr. José das Dornas que está aqui o João da Esquina, que lhe quer dizer duas palavras - foi como, em tom desabrido, ele se mandou anunciar pelo primeiro criado que viu.
José das Dornas que acabaras de dormir uma sesta refociladora, veio ter com seu vizinho, com o rosto alegre e cantarolando.
Ai, lá ri ló lé lá.
Eu vou pela mansidão
- Olá - bradou o jovial lavrador, vendo o tendeiro - Viva o Sr. João! Ditosos olhos que o vêem! Como vai essa bizarria? Sente-se; esteja a seu gosto. Vai um copito de rascante?
— Muito obrigado - respondeu secamente João da Esquina.
— Pois mal sabe o que perde; é daquele de esfolar o céu da boca. Então que milagre o traz por esta sua casa?
— Um negócio muito sério.
— Temos empréstimo - disse, em parte, José das Dornas; e alto: - Muito sério?! O caso é que você traz cara de funeral. Ah! Ah!...
— Tenho pouca vontade de rir, Sr. José.
— Mau é isso. Então que diabo o aflige? Desembuche para aí. Olhe que eu sou homem para as ocasiões. A sua filha está pior?
— A minha filha está boa - replicou, com certo mau modo, o tendeiro.
— Boa! Com que então... logo à primeira... hein? O meu Daniel saiu-se como um homem.
— Saiu-se otimamente - disse João da Esquina duma maneira que procurou fazer notável.
— Olhe que me tem esquecido emprestar-lhe o livro do rapaz - continuou José das Dornas, que não notara a tal maneira - aquele em que lhe falei; mas espere, que eu vou...
Ia a levantar-se, porém um gesto do seu interlocutor fê-lo parar.
— Não tenha incômodo. É de outra obra de seu filho, que lhe quero falar.
— De outra!
E José das Dornas principiou a dar mais atenção aos modos esquisitos do tendeiro.
— Homem, você hoje não sei o que tem consigo! Não o entendo!
Em vez de responder, João da Esquina pôs-se a mexer nos bolsos, e tirou de lá um papel cor-de-rosa, pequeno, elegante, lustroso e aromatizado; desdobrou-o, e pondo-o diante dos olhos do lavrador, disse-lhe simplesmente:
— Ora, faça o favor de ler isto.
— Mas isto o que é?
— Leia e verá.
Era fácil dizer: "leia", mas não de pequena dificuldade para José das Dornas a tarefa, que com essas palavras lhe impunham.
— Homem, é melhor que você me diga o que é isto, do que...
— Nada, não senhor. Leia.
— Valha-o Deus! - disse o bom lavrador, afastando o papel dos olhos quatro palmos, para o poder ler; não o conseguindo, tirou do bolso umas cangalhas, das quais armou o nariz, depois de ter lançado para o interlocutor um olhar, que valia um recurso, para tribunal de última instância, contra uma sentença de morte.
— "Trigueira" - leu ele logo no topo da página, e voltou para o tendeiro os olhos de espanto.
— Trigueira! - Que quer dizer isto?
— Homem, leia, leia que o saberá.
José das Dornas continuou, já se imagina como. Eu evitarei ao leitor o assistir às verberações, que ele aplicou à prosódia portuguesa. Eis o que leu:
Trigueira! que tem? Mais feia
Com essa cor te imaginas?
Feia! tu, que assim fascinas
Com um só olhar dos teus!
Que ciúmes tens da alvura
Desses semblantes de neve!
Ai, pobre cabeça leve!
Que te não castigue Deus.
No fim desta primeira estância, José das Dornas, como atordoado, levantou os olhos para João da Esquina; mas viu-o tão sério, que continuou:
Trigueira! se tu soubesses
O que é ser assim trigueira!
Dessa ardilosa maneira
Por que tu o sabes ser,
Não virias lamentar-te.
Toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor-de-rosa,
Sem motivos para a ter.
- Ô vizinho, mas isto... - ia a dizer José das Dornas, que principiava a suar.
Um gesto do tendeiro obrigou-o a prosseguir:
Trigueira! Porque és trigueira,
É que eu assim te quis tanto
- Repare Sr. José - observou do lado, João da Esquina - "É que eu assim te quis tanto". Vá reparando.
José das Dornas abriu muito os olhos para reparar, e continuou:
Daí provém todo o encanto
Em que me traz este amor.
- "Este amor" repare, vizinho, "este amor"! - tornou a dizer João da Esquina, e José das Dornas tornou a abrir muito os olhos, repetindo, sem saber para quê:
— "Este amor"... é verdade, "este amor..." Cá está.
E prosseguiu:
E suspiras e murmuras!
- É peta! notou João da Esquina.
— Palavra de honra, que está aqui "E suspira e murmuras", Sr. João. Ora faça favor de ver.
— Não nego; quero eu dizer que... mas adiante, adiante.
José das Dornas continuou:
E suspiras e murmuras!
Que mais desejavas ainda!
Pois serias tu mais linda,
Se tivesses outra cor?
José das Dornas começou a lançar para o vizinho um olhar inquieto; estava seriamente pensando que o homem endoidecera.
— Continue - disse-lhe o tendeiro.
E o lavrador continuou, suando cada vez mais:
Trigueira! onde mais realça
O brilhar duns olhos pretos
Sempre úmidos, sempre inquietos
Do que numa cor assim?
Onde o correr duma lágrima
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um só nos tenta,
Como me tentou a mim?
- "Como me tentou a mim" - repetiu João da Esquina.- Vá vendo.
— Homem! exclamou José das Dornas, estafado - bastará de leituras.
— Pouco falta. está a acabar - respondeu o outro.
José das Dornas resignou-se e prosseguiu.
Trigueira! E choras por isso!
Choras, quando outras te invejam
Essa cor, e em vão forcejam
Para como tu fascinar?
Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa,
Invejar à cor-de-rosa,
Em ti, é quase pecar.
- Ó Sr. João! Eu não posso mais! - exclamou José das Dornas, com acento lastimoso.
— É só um agora; e acabou.
— Mas...
E, ficando na reticência, José das Dornas tomou fôlego para ler ainda:
Trigueira! Vamos, esconde-me
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança!
Que graciosa timidez!
Enxuga os bonitos olhos.
Então, não chores, trigueira,
E nunca dessa maneira
Te lamentes outra vez.
- Buff! - bradou José das Dornas, ao terminar a leitura, e limpando o suor, que o banhava.
— Leu? - perguntou o tendeiro.
— Sim, senhor. Estão bonitos. São seus, Sr. João?
— Meus!? - exclamou o tendeiro, escandalizado quase. - Isto é mais uma receita do nosso médico novo.
— Hein! - disse José das Dornas, parecendo-lhe que não tinha ouvido bem - diz vossemecê que é?
— Outra das lembranças do senhor seu filho.
— Do... do meu... do Daniel?!...
— Sim, senhor... Do Daniel.
— Pois o rapaz fez isto?!
— Era com essas e outras que ele andava a tratar a minha filha. O culpado fui eu, que lhe dei entrada em casa.
José das Dornas esteve a deixar escapar uma gargalhada, mas conteve-se prudentemente.
— Ó vizinho, por quem é, não ande por aí a dizer essas coisas, que me desacredita o rapaz. Olhem se o João da Semana o sabe! Um médico poeta! Para que diabo lhe havia de dar...
— Que faça versos à Lua e ao Sol, se quiser - dizia João da Esquina - não há de tirar disso grande proveito, mas que os faça, que os faça; agora andar a inquietar famílias e ...
— Tem razão, vizinho, tem razão, e eu lhe prometo...
— Abusar da confiança de um homem como eu!
— Tem muita razão, vizinho
— Fazer andar à roda a cabeça de uma rapariga de juízo!
Neste ponto, José das Dornas engoliu em seco, mas não deixou de repetir:
— Tem toda a razão, vizinho...
— É um desaforo!
— Não o nego, Sr. João, não o nego.
— Não é homem em que a gente se fie.
— A falar verdade....não é, não é.
— Enfim, Sr. José - continuou o tendeiro com ar resoluto, e, depois de uma pausa, concluiu - É forçosa uma satisfação!
— Eu lhe prometo que o rapaz não volta lá.
João da Esquina fez um gesto de quem não se lisonjeava com a promessa.
— Não é por isso que eu digo.
— Então?
— O vizinho sabe o que são bocas do mundo?
— Sim; e depois?
— O que são línguas chocalheiras?
— Sim; e daí?
— O que são...
— Vamos; adiante.
— Pois bem; para as fazer calar, é preciso...
— É preciso o quê?
— É necessário...
— É necessário o quê?
— É indispensável...
— O quê? Sr. João, o quê?... - exclamou o lavrador, já impaciente - o que é necessário?
— Que seu filho...
— Que meu filho?
— Case...
— Com sua filha, não?
— Está bem de ver.
Com grande escândalo do tendeiro, José das Dornas pôs-se a cantarolar:
Ai, lá ri ló lé lá,
Eu vou pela mansidão.
- E foi para isso que teve o trabalho de vir aqui? Ora olhe, Sr. João: nós somos conhecidos antigos, e eu macaco velho, como deve saber, que já não me deixo levar por essas. Aqui para nós, por que não tapou o vizinho da mesma forma as bocas mundo, que tanto falou do derriço de sua filha com o filho do sineiro? Por que se deu lhe não deu que elas tagarelassem por ocasião da festa do Coração de Jesus, quando o Bento do padeiro não tirou os olhos dela, e ela dele, durante toda a festa? Por que fez ouvidos de mercador, quando o Sr. Padre Antônio lhe disse que casasse a rapariga com o Chico sapateiro para não dar que falar a cegueira em que ela andava com ele? Aí então, não quis: nem lhe importaram as línguas chocalheiras? Chegaram-lhe agora as febres. Pois veio bater a má porta. Sossegue. Não tenha susto. Homens, que fazem versos, não são os piores. Contentam-se com isso. Sabe que mais? Meta a viola no saco; retese a corda à cachopa, e deixe correr.
— Isso não é resposta que se dê, Sr. José - exclamou o tendeiro, que via prestes a fugir-lhe uma ótima ocasião de negócio.
— Não se zangues, Sr. João. Amigos como dantes. Pensemos em outra coisa. Está um tempo muito criador...
— Sr. José, isto não vai assim.
— Não me mortifique, Sr. João, para que não vá pior. Os milhos...
— Sr. José!
— Não berre, vizinho.
— Eu quero ver...
— Pois abre os olhos... Mas...
— Quero ver se é capaz...
— Sr. João, vá para casa.
— Sr. José das Dornas! veja o que faz.
— Estou vendo.
— Repare bem para mim.
— Estou reparando.
— Saiba que eu sou...
Não pôde dizer o quê. Interrompeu-lhe o discurso o reitor, que entrou na sala. Vendo o aspecto dos dois interlocutores, e a vivacidade do gesto do tendeiro, o padre quis saber a razão da contenda. João da Esquina desanimou em presença do reitor. Agourou mal da intervenção.
Depois e ouvir as queixas do tendeiro, o reitor perguntou-lhe, com o rosto severo, se o casamento da filha com empreiteiro das estradas não viria reparar mais falhas na inteireza da sua boa fama doméstica.
João da Esquina sentiu-se derrotado, e já procurava uma saída airosa.
— Bem; eu retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de que fiz o meu dever. Mas o mundo saberá...
O resto da oração pronunciou-a fora da porta. esta circunstância impossibilita-me de informar o leitor sobre o que o mundo tem de vir a saber a respeito do tendeiro.
— Que lhe parece esta, Sr. Reitor? - disse José das Dornas, mal o viu sair. - Havia o meu Daniel de...
— O teu Daniel é um doido; e se isto assim continua, há de vir a fazer a tua desgraça.
— Mas uns versos que mal fazem? e então àquele cata-vento da Chica do tendeiro, que é mesmo... o Senhor me perdoe.
— Homem; a coisa não está nos versos. O que eu digo é que o Daniel tem deveres tão sagrados, entrando no seio das famílias, como nós os párocos. E se as mãos, que devem levar o remédio, espalham a peçonha, a maldição de Deus desce sobre elas. Quem abrirá as portas da alcova, onde padeça uma filha, uma esposa ou uma irmã, ao médico que não tem força para sufocar as paixões más do seu coração? Fá-lo-ias tu? Não nem eu. Quanto mais santa é uma missão neste mundo, José, mais se rebaixa e avilta quem a aceita sem ter-lhe compreendido o alcance. O mau padre é o pior dos homens; e parece-te que será muito melhor o médico imoral? Pensa nisto, e diz-me se Daniel merece grandes desculpas.
As palavras do reitor tinham o poder de calar no ânimo de José das Dornas, como as de ninguém.
O lavrador baixou a cabeça, e perguntou humildemente:
— Então acha V.S.ª que Daniel deve casar com a ...
— Não digo tanto! - respondeu com vivacidade o reitor - Ali houve cálculo neles, conheço-os há muito; e espero que da parte de Daniel nada mais se deu além da loucura dos versos, que não valem nada afinal. Mas que lhe sirva de aviso.
— Se o Sr. Reitor lhe fosse ralhar...
— Onde está ele?
— Deve estar lá dentro no quarto.
O padre foi ter com Daniel.