Ontem, 14 de Hadar de 1664, eu assisti às cerimônias do carnaval nas sinagogas da Sion fluminense. O esperto Mardocheu, que tudo conseguira com a perfumada beleza de Ester, ao comunicar de Suza a sua luminosa vitória, ordenara para todo o sempre diversões e alegria nesse dia. Os filhos de Israel obedecem e, como a pátria de Israel é o mundo, nenhuma cidade ainda sofreu por não festejar data tão preciosa. No Rio, também ontem, cerca de quatro mil famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com discrição, é certo, beberam sem violência, riram com calma, exatamente porque a gente do país de Judá tem a tristeza nalma e a tenacidade na vida.
As festas do peisan foram copiadas dos persas pelos romanos. Os povos modernos copiaram dos romanos, aumentando os dias de prazer e destruindo a intenção cultual da cerimônia. Quem assistiu à orgia continua dos batuques carnavalescos, talvez não possa compreender como cerca de dez mil judeus comemoram o 14 de Hadar, com tanta modéstia e tanta correção.
Esses dez mil judeus divertiram-se, trocaram presentes, cantaram, ouviram mais uma vez a história da linda Ester, lida pela hhasàn nos sagrados livros, e cada um recolheu um momento o espírito para pensar em Mardocheu, no rei Assuéro e na maneira por que 60 milhões de antepassados foram salvos da morte e do patíbulo.
Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a alegria nalma.
É que os olhos de Israel são receosos, sempre curvados ao sopro das perseguições, sempre sábios. Festejaram sem que ninguém desse por tal...
O Rio tem uma vasta colônia semita ligada à nossa vida econômica, presa ao alto comércio, com diferentes classes sem relações entre elas e diferentes ritos.
Há os judeus ricos, a colônia densa dos judeus armênios e a parte exótica; a gente ambígua, os centros onde o lenocínio, mulheres da vida airada e caftens, cresce e aumenta; há israelitas franceses, quase todos da Alsácia Lorena; marroquinos, russos, ingleses, turcos, árabes, que se dividem em seitas diversas, e há os Asknenazi comuns na Rússia, na Alemanha, na Áustria, os falachas da África, os rabbanitas, os Karaitas, que só admitem o Antigo Testamento, os argônicos e muitos outros.
Os semitas ricos não têm no Rio ligação com os humildes nem os protegem como em Paris e Londres os grandes banqueiros da força de Hirsch e dos Rottchilds. São todos negociantes, jogam na Bolsa, veraneiam em Petrópolis, vestem-se bem.
Muitos são joalheiros, com a arte de fazer brilhar mais as jóias e de serem amáveis. Franceses, ingleses, alemães, o culto desses cavalheiros apresentáveis e mundanos reveste-se de uma discrição absoluta. Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam do hhasan e fazem juntos apenas as duas grandes cerimônias: a Ion-Kipur ou dia das lamentações e do perdão, e o ano novo ou Rasch-Haschana.
Algumas sinagogas já têm sido estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber esses senhores. Atualmente não há nenhuma, estando na Europa quem mais se preocupava com isso.
As riquezas das nações estão nas mãos dos judeus, brada o anti-semita Drumont, ao vociferar os seus artigos. A nossa também está, não porém nas dos judeus daqui, que são apenas homens ricos bem instalados nos bancos e na vida.
O outro meio, extraordinariamente numeroso, é onde vicejam o vício e a inconsciência, os rufiões e as simples mulheres que fazem profissão do meretrício. Essa gente vem em grandes levas da Áustria, da Rússia, de Marselha, de Buenos Aires, e habita na maior parte na praça Tiradentes, nas ruas Luís de Camões, Tobias Barreto, Sete de Setembro, Espírito Santo, Senhor dos Passos e nas ruelas transversais à rua da Constituição. Comem quase todas numas pensões especiais dessas ruas equivocas, pensões sujas em que se reúnem homens e mulheres discutindo, bradando, gritando. O alarido é às vezes infernal, porque, quase sempre numa briga de casal, ela explorada por ele, todos intervêm, dão razão, estabelecem contendas. Nestas casas guardam não raro uma sala para costura e outra destinada à sinagoga.
Há mais mulheres do que homens. Os homens são inteligentes, espertos, sabem e explicam com clareza, as mulheres são profundamente ignorantes da própria crença. Quase nenhuma sabe a data exata das festas, a sua duração, a sua razão de ser. É interessante interrogá-las, gastar algumas horas visitando as alfurjas apartadas desta babel americana.
- Então vai à sinagoga?
- Oh! aqui não há nada direito; em Buenos Aires sim.
- Mas você vai sempre a estas reuniões?
- Vou. Então podia deixar de ir?
- Por que vai?
- Porque tenho que ir. Quando saio de casa, deixo uma vela acesa.
- Por quê?
- É costume.
- A festa do ano novo quantos dias dura?
Uma nos diz três dias, outra oito, outras respondem vagamente. Entretanto, russas, inglesas, francesas fazem questão de se dizer judias e obedecem á fé. No dia do Kipur, ou dia do perdão, do arrependimento e das lamentações, fecham-se os prostíbulos, todas elas vão às sinagogas improvisadas soluçar os pecados do ano inteiro, os pecados sem conta. Às 4 da tarde fazem uma refeição sem pão, sem carne e desde que no céu palpita a primeira estrela, até ao outro dia, quando de novo Lúcifer brilha, não se alimentam mais, limpas de todos os desejos e de todas as necessidades humanas.
Estes judeus reúnem-se em qualquer parte, o mais letrado lê a história no tópico necessário, e choram e riem ou cantam, conforme é necessário, crentes ignorantes. As sinagogas ambulantes estão cada ano numa rua. As últimas reuniões deram-se na rua do Espírito Santo, na rua da Constituição, e na rua do Hospício. É chefe do culto, dirigindo os convites e organizando as festas, uma meretriz, a Norma, que ultimamente introduziu no Rio o entôlage, o roubo aos fregueses.
A outra sociedade, a mais densa, é a dos armênios e dos marroquinos. Essa fez-se de grandes levas de imigração para o amanho de terra, em que o Brasil gastou muito dinheiro. Os agentes em Gibraltar aceitavam não só famílias como homens solteiros. As colônias não deram resultados; no Iguaçu os colonos fugiam aos poucos, e em outros lugares foi impossível estabelecê-los, porque o povo até os julgava com chifres de luz como Moisés.
Os judeus árabes apareceram por aqui na miséria, mas aos poucos, pela própria energia, tomaram o comércio ambulante, viraram camelots, montaram armarinhos e acabaram prosperando. Há ruas inteiras ocupadas por eles, naturalmente ligados aos turcos maometanos, aos gregos cismáticos e a outras religiões e ritos degenerados, que pululam nos quarteirões centrais.
Nas levas de imigrantes vieram homens inteligentes e cultos. O hhasan David Hornstein é um exemplo. Esse homem cursou doze anos a Universidade Talmúdica, é poliglota, professor, correspondente de vários jornais escritos em hebreu e rabino diplomado da religião judaica. David estava na Palestina, na colônia Rishon l'Sion, uma espécie de companhia que o falecido barão B. Rothschild instalara em terrenos comprados ao sultão, com grande ódio dos beduínos. Nessa colônia havia médicos, advogados, russos niilistas. O resultado foi a sublevação, que o amável barão, depois da morte do administrador, acabou, dispersando-os amotinados. Vinte e dois desses homens, entre os quais David e o erudito Kulekóf, que acabou rico em São Paulo, partiram para Beirute, depois para Paris. Hirsch deu-lhe 500 francos, fazendo um discurso camarário.
Os judeus revolucionários foram para Gibraltar e aí embarcaram para o Brasil. Todos acabaram com fortuna, menos o rabino, que ficou ensinando línguas, porque o sacerdote judeu não vive do seu culto.
E esta parte densa da colônia judaica que tem duas sinagogas estáveis, uma na rua Luís de Camões, 59 e outra na rua da Alfândega, 369.
A sinagoga da rua Luis de Camões é do rito argônico. Entra-se num corredor sujo, onde crianças brincam. Aos fundos fica a residência da família. Na sala da frente está o templo, que quase sempre tem camas e redes por todos os lados.
As tábuas de Moisés negrejam na parede; a um canto está o altar, e na extremidade oposta fica a arca onde se guarda a sagrada história, resumo de toda a ciência universal, escrita em pele de carneiro e enrolada em formidáveis rolos de carvalho. Só nos dias solenes se transforma o templo. David Hornstein faz as cerimônias no meio da sala, no altar, envolto na sua túnica branca riscada nas extremidades de vivos negros, com um gorro de veludo enterrado na cabeça. Muito míope, o hhasan é acompanhado por três pequenos que entoam o coro.
No altar David retira a capa de veludo roxo dos rolos, abre-os da esquerda para a direita. Ao lado guiam-lhe a leitura com uma mão de prata. Aí, imóvel, sem se mexer, faz a oração secreta para que Deus o atenda e o perdoe de ser enviado e ousar rogar pelo seu povo.
Jeová naturalmente atende e perdoa. O hhasan infatigável já tem desenhado cento e cinqüenta sepulturas, já praticou a circuncisão em cerca de setecentos pequenos, já batizou, mergulhando em três banhos consecutivos, muitas meninas, já casou muitos judeus e prospera falando dos nossos políticos e citando os deputados com familiaridade.
A sinagoga da rua da Alfândega é muito mais interessante. Ocupa todo o sobrado do prédio 363, que é vulgar e acanhado, como em geral os do fim daquela rua. Sobe-se uma escada íngreme, dá-se num corredor que tem na parede as tábuas de Moisés.
Aí vive outro Moisés, o hhasan, com uma face espanhola e um ar bondoso. Na sala de jantar estão as paredes ornadas de símbolos, representando as doze tribos de Judá, e aí passam Moisés, ela de lenço na cabeça, ele com um chapéu de palha velho.
A sala da frente é destinada às cerimônias. Quase não se pode a gente mover, tão cheia está de bancos. No meio colocam o altar de vinhático envernizado, em que o hhasan fica de pé lendo ou cantando.
Nas paredes apenas as tábuas, ao fundo a arca com cortinas de seda, onde se guarda o sagrado livro. Do teto pendem presos de correntes brancas vasos de vidros, cheios de água onde 1amparinas colossais queimam crepitando. Sobre o altar desce o lustre de cristal, chispando luzes nos seus múltiplos pingentes. Além de Moisés, há outro sacerdote, Salomão, tão devoto, que é o hhassidim...
Foi nesta sinagoga, indicada por um negro falacha, cuja origem vem dos tempos de Salomão e da rainha de Sabá, que eu assisti ao peisan.
- Oh! eles são bons e se protegem uns aos outros - dizia o negro assombroso. - A vida do judeu pobre é a do pouco comer, do pouco gozar, do muito sofrer. Agora, fizeram a Irmandade de Proteção Israelita.
Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas. O hhasan, paramentado, lia solenemente e toda aquela esquisita iluminação de baldes de vidro, fazendo halos de luz e mergulhando na água translúcida as mechas das lamparinas, aquele lustre, onde as luzes ardiam, eram como uma visão de sonho estranho.
Enquanto o hhasan lia, com os pés juntos, sem mover sequer os olhos, com uma voz ácida tremendo no ar, todos tinham nas faces sorrisos de satisfação.
As cidades serão destruídas a ferro e fogo se não festejarem este dia no mês de Hadar. Nós festejamos. E diante das lâmpadas, para aquele punhado de judeus, a história desenrolava a maravilha de Assuero, que reinou desde a Índia até à Etiópia sobre cento e vinte cidades. Era Suza, a capital maravilhosa, Ester suave e cândida, substituindo a rainha Vashi, Mardocheu sentado à porta do templo sem adorar Aman, a quem Assuero tudo dava, Aman forçado a levar Mardocheu em triunfo, tudo por causa de uma mulher trêmula e tímida, que desmaiava, salvando 60 milhões de judeus e mandava matar quinhentos inimigos, pedindo concessões idênticas para as províncias.
Era a data dessa matança; festejava-se o dia em que Aman foi para o patíbulo que preparara para Mardocheu, e o momento em que se espatifara Arisai Frasandata, Delfon, Ebata, Forata, Adalia, Aridata, Fermesta, Aridai e Jerata.
Mas daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, a fé destilava a suprema delícia. Era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio ornado de pavilhões da cor do céu da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada período abrisse a visão das colunas de mármore, dos leitos de prata e ouro e dos pavimentos embutidos, onde esmeraldas rolavam...
Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da rua da Alfândega.