Domingos Caetano escapara àquele assalto da morte; mas, à semelhança do soldado inválido que traz na mutilação o sinal do golpe inimigo que estivera a ponto de cortar-lhe a vida, ficou marcado com a tortura da boca e com a hemiplegia quase completa.
Se não fora católico e pai de família bem pudera preferir ter morrido.
Não houve para o pobre paralítico nem a duvidosa esperança de convalescença promissora da regeneração da saúde: nos primeiros dias houve o sofrimento incessante do homem que se reconhece metade morto para o movimento e a ação, para a atividade e o trabalho, e que não tem no futuro perspectiva menos desconsoladora, do homem que sendo esposo e pai, sabe que deixou de ser apoio e que precisa apoiar-se, que não carrega mais com a família, e que é a família que passa a carregá-lo.
E passados os primeiros dias, Domingos Caetano, que notava o cuidado com que o médico auscultava-lhe por vezes o coração e ao mesmo tempo examinava-lhe o pulso, e recolhia minuciosas informações de passageiros incômodos que ele sofrera antes do terrível ataque, parecendo de muita importância a momentos de rápida mudança da cor do rosto, acompanhada de suores e resfriamento nas mãos e nos pés, aproveitou desconfiado alguns instantes em que se achou só com o médico e disse lhe:
– Doutor, devo contas ao céu e à terra e já não posso amar a vida: fale-me franco... compreende que preciso saber tudo...
O médico hesitou.
– A verdade... e depressa, enquanto elas não voltam... é pela minha alma e por elas que eu preciso saber...
Elas eram a mulher e a filha.
O doutor murmurou voltando os olhos:
– Um pai de família prudente... deve sempre estar preparado para... mas eu ainda não desespero...
– Entendo: obrigado... vê que não tremo: o que me diz é quase uma consolação: dói-me o deixá-las; mas de que lhes sirvo eu assim?...
O médico abaixou a cabeça.
– É penar e penalizá-las; antes morrer.
E depois de breve pausa o velho continuou:
– E nestes casos e na pior das hipóteses... porque enfim o doutor ainda não desespera... na pior das hipóteses a morte aproxima-se devagar ou chega de súbito?...
– De um e outro modo – respondeu o médico animado pela frieza com que lhe falava o mísero doente. – O seu mal é incurável, meu pobre amigo; não me compreenderia bem, se eu quisesse explicá-lo; mas há em uma de suas artérias obstáculo já muito grande e que se tornará absoluto, impedindo a circulação do sangue que é impelido do coração... nestes casos a morte, que às vezes fulmina como o raio, também às vezes se preanuncia àqueles mesmos que não são médicos.
Com a mão não paralítica o velho apertou a do doutor.
– E se a morte não me fulminar hoje ou amanhã, como o raio fulmina, diga-me, meu amigo, quais são os sinais da aproximação do termo de tanto padecimento sem remédio?
O médico tomou o pulso ao doente, e achou-o batendo com perfeita regularidade.
Não havia impostura, nem estulta vaidade na resignação de Domingos Caetano.
Era este um moribundo com quem se podia tranqüila e placidamente conversar sobre a morte.
O médico olhou admirado para o velho e não respondeu.
– Mas... conversemos, doutor; conversemos, enquanto elas não chegam.
– Já não lhe disse bastante... talvez demais?...
– Eu queria saber tudo... – ia dizendo Domingos Caetano.
Mas ouviu-se o leve ruído de mimosos passos.
Eram elas, a esposa e a filha que chegavam.
– Silêncio, doutor... – murmurou o velho.
E sorriu-se, como podia, e ainda mais com os olhos do que com os lábios, a Angélica e a Florinda, que entraram no quarto.
– Como está?... – perguntaram as duas a um tempo, dirigindo a palavra ao esposo e ao pai, e os olhos para o médico.
– Muito melhor – disse o esposo e pai.
O médico não pôde falar, e fez potente esforço para conter as lágrimas.