Simeão detestava Hermano.
O fundamento dessa detestação era a justa e aliás moderada repressão de um atentado do escravo.
É um episódio trivialíssimo na história da escravidão.
O sítio do pai de Hermano demorava perto da fazenda de Domingos Caetano e Simeão tomou-se de amores por uma escrava daquele sítio: infelizmente a escrava era mucama de uma das filhas do velho João de Sales, e dormia recolhida.
Sabem todos o que é o amor entre os escravos: a condição desnaturada desses exilados da sociedade, desses homens reduzidos a coisas, desses corpos animados a quem se negam direitos de sensibilidade, materializados à força, materializa neles sempre o amor: sem o socorro da poesia dos sentimentos que alimenta o coração e o transporta às regiões dos sonhos que se banham nas esperanças de santos e suaves laços, os escravos só se deixam arrebatar pelo instinto animal, que por isso mesmo os impele mais violento.
A mucama muito atarefada de dia, raro da casa se escapava para encontrar-se com Simeão em rápida entrevista, e trancada à noite sob o teto da família, não tinha o recurso da senzala ou do passeio noturno para receber o amante.
A mucama não tem a educação da senhora-moça: a natureza animal é tudo nela. O escravo não crê na pureza da donzela, nem na fidelidade da esposa mais nobre; admite somente que a falta de oportunidade ou de ocasião para ser má seja o que mantém a honra das famílias; a observação é cruel e injustíssima: o juízo do escravo é infamemente torpe; mas ele julga conforme as idéias e a vida da escravidão.
O instinto impeliu e a razão abandonou o crioulo e a mucama,
Aconteceu o que acontece mais vezes e em mais casas do que se presume.
Simeão e a escrava mucama ajustaram-se: à meia-noite ela abria uma janela, e Simeão saltava para dentro da casa: depois, quando a desconfiança de João de Sales e de seu filho tornou perigosa a entrada pela janela, o dinheiro, que não faltava a Simeão, abriu-lhe a porta da cozinha.
Havia no terreiro cães a velar; mas o homem compra os cães como compra homens; a uns, pedaços de carne; aos outros, mais ou menos moedas de ouro.
Simeão comprara os cães e um negro escravo da cozinha, e entrava todas as noites na casa de João de Sales.
A casa de João de Sales estava pois de noite à mercê das intenções e de quaisquer projetos de Simeão; mas que casa há aí, onde haja escravos e sobretudo escravas, cuja segurança não esteja exposta às conseqüências do instinto animal e da boa ou má vontade do elemento escravo?...
Simeão era, pois, durante duas horas em cada noite mais do que o amante da mucama, o árbitro das vidas e da fortuna de João de Sales e de sua família.
Ainda bem que Simeão, o escravo, ali ia somente como animal que o instinto arrasta em procura da sua igual; se fora ladrão ou assassino tinha tido abertas a janela da sala e a porta da cozinha.
A vida, a fortuna e a reputação dos senhores estão de dia e principalmente de noite à mercê dos escravos.
Mas uma noite houve ruído, e Hermano de Sales que velava, acudiu com uma luz, e chegado à sala de jantar, estacou diante de Simeão.
O crioulo, atrevido e ainda mais urgido pelo risco da situação, quis fugir; e vendo a saída disputada, avançou ousado para o mancebo que, apertando-o em seus braços de ferro, o lançou por terra.
João de Sales acudiu, como toda a família que despertara assustada.
O caso explicou-se em breve.
Hermano ressentido do ataque de Simeão, tinha-o esbofeteado com força, recebendo na manga da camisa gotas de sangue que saltaram do rosto do escravo ofensor.
Simeão foi conhecido, e a escrava sua amásia e cúmplice castigada imediatamente a seus olhos.
O crioulo egoísta e altanado sentiu menos o castigo que a mucama recebera, do que as bofetadas que ela vira-o receber.
Entretanto a sua luta com Hermano tinha passado toda entre os dois, e Hermano o havia facilmente subjugado. Homem contra homem, ele tinha sido em breves momentos submetido pelo mancebo.
Era pouco mais de meia-noite, e muito tarde para Simeão ser enviado a seu senhor: Hermano o fez trancar no quarto em que se prendiam os escravos delinqüentes, e na manhã seguinte o mandou levar a Domingos Caetano com carta de seu pai, narrando quanto se passara.
Simeão, protegido por Florinda, escapou a justo castigo, que Domingos Caetano devia infligir-lhe.
Para o escravo a repreensão não é pena, porque a repreensão fala ao brio, ao sentimento do pundonor, que a escravidão não pode comportar.
E Simeão foi apenas asperamente repreendido.
Desde aquela noite o crioulo detestou Hermano.
Simeão viu desde então em Hermano um homem que era melhor, mais forte, e muito superior a ele: melhor, porque era livre; mais forte, porque pudera e podia subjugá-lo; muito superior, porque o tinha esbofeteado, prendido e mandado conduzir preso à casa de seu senhor, e a ele nem era dado pensar em vingar-se.
Não era a vergonha de suas faces esbofeteadas que o irritava, queimando-as; era a idéia de nunca ter sido até então castigado materialmente por1 seu senhor, e tê-lo sido sem ressentimento dos senhores, e sem o seu apoio ou proteção para tirar vingança de quem assim o maltratara.
Esse aborrecimento crescera; porque Hermano, homem bom e homem livre, nem sequer indiciava conservar lembrança do que acontecera e indiferente passava por diante de Simeão no campo da fazenda ou na estrada, como por desconhecido que não merecesse olhar de atenção.
O crioulo vaidoso via na indiferença de Hermano o desprezo que o humilhava e aviltava.
– Esbofeteou-me, e não me conhece, e não me vê e não me teme!... – dizia ele consigo, e lhe fervia a raiva no coração.
E Hermano tinha-se esquecido completamente de Simeão.
Mas a serpente lembrava o pé que lhe machucara a cabeça.
Era serpente que tem memória, a serpente escravo.