E ainda alguém mais velava: era o rancor do escravo.
Simeão agitava-se nas torturas de duas idéias para ele cruéis.
Desde o dia em que sonhara que Hermano ia casar com Florinda, confrangia-se pensando, reconhecendo que teria por senhor-moço o homem que o esbofeteara, subjugara, e mandara preso à fazenda, e que esse mancebo que ele detestava, e a quem desejava o maior mal, havia de ter a dita de possuir a bela mulher, sua senhora-moça, cujos dotes físicos ele se atrevera a contemplar dissimulado com olhos perversamente libidinosos, encarecendo com imaginação desenfreada e aos aplausos da cozinha e da senzala infames o que seus olhos não podiam ver, injuriando na torpeza do elogio a virginal pureza da donzela.
Simeão passou dias horríveis, retemperando sua alma no rancor mais violento: carcomido por incrível inveja e em delírio insolente, notou uma a uma, estudou com raiva a beleza do rosto, a gentileza da figura, a graça do andar, as proporções dos pés e das mãos, todos os encantos visíveis de sua senhora-moça, e aborreceu ainda mil vezes mais Hermano, para quem era possível, provável, certa a posse de tantos tesouros impossível para ele.
O escravo não amava, não amou Florinda; mas em sua mente audaz, em seus instintos escandalosos, revoltantemente ultrajadores e licenciosos, lembrou, contemplando a senhora-moça, o que lembrava aproximando-se da negra fácil, da escrava desmoralizada que lhe agradava e não fugia a seus ignóbeis afagos.
E Simeão teve dobrada raiva de Florinda que não podia ser sua, como a negra escrava, e que bela, encantadora, inocentemente voluptuosa, ia ser do homem que ele mais aborrecia.
E, sem o pensar, Florinda excitou-lhe a fúria inimiga, dando-lhe novo e bonito fardamento de pajem no dia do seu casamento, e chamando-o de preferência para servir a seu noivo e a ela durante o banquete nupcial.
E Simeão abafou no seio rugidos de fera, e apenas terminou o banquete fugiu com desespero, vagou pelo campo, e investindo enfim para uma das senzalas em que se batia o fado, bebeu desordenado, bebeu até cair em completa embriaguez.
No outro dia, ao sol fora, despertou caído à porta da senzala e ainda meio embrutecido recolheu-se a casa, onde Hermano risonho e feliz mostrou à docemente confundida noiva, gracejando sobre a intemperança do crioulo.
Florinda que corava a todos os olhos, mal ousou dizer:
– Vai dormir, pobre Simeão.
Passaram quatro dias: o crioulo abatido aparentemente, mas com o coração abrasado em rancoroso furor, meditava silencioso nos cantos da casa, estremecendo à voz de Hermano, que já o governava como principal senhor.
– Agora – dizia consigo Simeão – , a liberdade ou a morte... servir a este novo senhor é impossível... prefiro matá-lo e matar-me...
E mais que nunca desejava a morte de Domingos Caetano, que havia de deixá-lo forro, conforme o pensar de todos.
No quinto dia não pôde resistir às saudades da venda, e abusando da bondade com que em atenção à sua noiva Hermano o tratava, saiu sem licença, e muito antes da noite, que sempre tinha por sua.
Na venda encontrou o infalível Barbudo que dormia, ou fingia dormir, estirado no banco fronteiro ao balcão.
O Barbudo levantou-se à chegada de Simeão.
– Como vais? – perguntou ele ao crioulo.
– De mal a pior.
– Não apareces de dia como dantes, Simeão: agora é só à noite que passeias!
– Tenho senhor novo: é necessário estudá-lo.
– Vamos conversar.
O Barbudo e Simeão sairam, dirigindo-se para o terreiro da venda.
– O ataque não volta – murmurou Simeão surdamente. – Deixou sinal e não se repete! É para desesperar.
– Também que pressa! – disse o Barbudo a rir para excitar o crioulo.
– É que agora não posso suportar o cativeiro naquela casa: prefiro ser vendido a outro senhor.
– Que há pois de novo?
O crioulo travou do braço do Barbudo, levou-o para longe da venda e fez ampla confidência dos seus turvos e sinistros segredos, em que o rancor, a ingratidão, o abatimento, a baixeza aviltante de sua condição, arrojo indigno de insensatas imaginações se misturavam confusa, mas tempestuosamente.
Prolongou-se depois a conferência até a noite e enfim, tornados à venda que começava a encher-se dos costumados fregueses, Simeão e o Barbudo pediram vinho e cartas.
O crioulo tinha crédito na venda onde já era devedor, e como andava pouco endinheirado, obteve sem dificuldade novo empréstimo do vendelhão.
O jogo dá asas ao tempo: as horas fugiram velozes e mal sentidas pelos jogadores que experimentavam as emoções selvagens das sortes muitas vezes obrigadas pela empalmação rude ou pelo furto de cartas.
Era meia-noite, e Simeão irritado pela má fortuna teimava em jogar e pediu mais dinheiro ao vendelhão que contra o costume lho negou.
O crioulo altanado proferiu uma injúria obscena.
O vendelhão, paciente por sistema, respondeu simplesmente:
– Já me deves trinta mil-réis: é muito.
Simeão furioso machucou entre as duas mãos as cartas e atirou-as ao credor, que fechava a bolsa
O vendelhão ofendido agarrou-se com o agressor, os escravos e mais fregueses presentes tomaram partido por um e por outro dos brutais atletas, o Barbudo entrou na contenda em prol do camarada, e travou-se desenfreada desordem com escandaloso acompanhamento de blasfêmias e torpezas em grita.
Mas de súbito bateram à porta da venda, e uma voz afadigada e ansiosa gritou de fora:
– Simeão! Simeão!
Os golpes se repetiam à porta que ameaçava ceder arrombada.
O medo da intervenção da polícia local, que às vezes por exceção acordava, separou os desordeiros.
A porta abriu-se, e um negro escravo da fazenda de Domingos Caetano, entrou precipitado, bradando:
– Simeão! Simeão!
— Que é lá? – perguntou este, arranjando as vestes despedaçadas.
– O senhor morreu.
Simeão, sem mais ouvir nem perguntar, lançou-se de um salto fora da venda e deitou a correr para a fazenda.
Nem um movimento de piedade, nem uma lágrima pelo bom senhor, pelo pai que perdera!
A escravidão gasta, caleja, petrifica, mata o coração do homem escravo.