Havia na fazenda de Paulo Borges uma escrava que, ao anúncio de cada uma daquelas calamidades, se tornava apreensiva, não podendo acreditar que o acaso ou a absurda infelicidade fosse quem as produzisse.
Era Esméria.
A crioula tinha visto a imagem do rei das serpentes nas flamas destruidoras do canavial e na mortandade dos animais; ela porém não sentia os danos sofridos pelos senhores, e que deles se doesse, nem por isso externaria suas suspeitas, provocando a vingança de Pai-Raiol que tanto podia sobre ela pelo medo que lhe inspirava.
Entretanto alguns meses passaram sem outros infortúnios: Teresa dera felizmente à luz um terceiro filho, e a consolação e a esperança sorriram também na abundância e no viço das novas sementeiras: um berço de amor na família e os berços da riqueza nos campos fizeram voltar a alegria ao coração do fazendeiro.
Restabelecera-se na fazenda a vida igual e serena.
Esméria não pensava mais nas suspeitas que tivera da ação maléfica do Pai-Raiol; este porém lembrou-se da crioula exatamente quando ela começava a esquecê-lo mais.
Uma noite e já tarde, o Pai-Raiol foi bater de manso à porta da senzala de Esméria que, ou ainda não dormia, ou acordando fácil, estremeceu, reconhecendo a voz do negro terrível, mas apressou-se a recebê-lo.
A lua plena estava clara e brilhante, e inundada por seus raios mostrou-se a figura sestra do africano aos olhos da crioula que aliás nunca o repugnara, mas que principalmente o temia.
– Pai-Raiol! – disse Esméria, como admirada.
O negro apertou-lhe a mão e sentou-se à porta da senzala: a crioula imitou-o sentando-se a seu lado.
Depois de breve silêncio, o Pai-Raiol falou. Por negação, incapacidade ou enfim por amor de sua língua ou dialeto selvagem, mas pátrio, o rancoroso escravo apesar de trazido ao Brasil há cerca de vinte anos, exprimia-se mal e deformemente em português, introduzindo muitas vezes na sua agreste conversação juras e frases africanas. O leitor deve ser poupado à interpretação dessa algaravia bárbara.
– Pai-Raiol vive triste e só... – disse o negro. – De dia tem a roça que arranca os braços... de noite sozinho na senzala... não tem nada...
– É porque foge dos parceiros... – respondeu Esméria.
– Os sapos?... – tornou ele, batendo com o pé, como se quisesse esmagar os nojentos animais, de que se lembrara. – Os sapos?... – e pronunciou em seu dialeto uma jura que devia ser esquálida.
Esméria riu-se e respondeu.
– Eu também sou sapo.
As carícias do escravo são ultrajes escandalosos na vida civilizada. Pai-Raiol acariciou desse modo a crioula que fácil se abandonava.
– Dantes era melhor – disse o negro, sossegado. – Dantes Esméria ia sempre à senzala do Pai-Raiol... depois deixou de ir lá, e vai às de todos... Esméria é má.
A crioula nem se defendeu da acusação.
– Pai-Raiol, foi você que se aborreceu de mim... bem sabe...
O negro sacudiu com a cabeça, e tornou com voz comprimida e alterada:
– Pai-raiol teve raiva de Esméria que andava como garrafa de cachaça no fado... teve raiva, e quis matá-la... para não matá-la... empurrou-a...
A crioula tremeu.
– Pai-Raiol gosta de Esméria...
A crioula passou-lhe o braço pelo pescoço, mas não pôde falar.
– Escuta – continuou o africano – , Pai-Raiol não quer bulha, nem inveja: os sapos fazem bulha e têm inveja; depois vem a surra.
E ele bateu com força nas nádegas que guardavam profundas cicatrizes de açoites repetidos, e riu-se hediondo e feroz a bater nas nádegas.
– Como então? Como então?... – perguntava a crioula.
O negro serenou e disse:
– De dia Pai-Raiol não vê Esméria; de noite, e tarde, como agora, Esméria vai ver Pai-Raiol.
– Para que isso?...
– Os sapos dormem bêbados a essa hora...
E acrescentou falando com os dentes cerrados:
– E na terra do cativeiro os tigres não atacam de noite.
Tudo isso foi dito com a palavra estropiada e bárbara do escravo africano boçal e rancoroso.
Esméria não respondeu: aterrada, mas por hábito e por organização libidinosa, esperava o fim da brutal conferência.
Pai-Raiol que calara, levantou-se de repente, fitou por alguns momentos seus olhos vesgos no rosto de Esméria, que ao clarão do luar viu-lhe alvejando as escleróticas, e as pupilas quase sumidas nos ângulos internos das pálpebras, donde sentiu que partiam e se entranhavam em seu rosto raios visuais cheios de um calor, como de um bafo morno que perturbava seus sentidos e a ia subjugando com um influxo poderoso.
O negro,em seguida a esse breve olhar, disse:
– Vem.
E encaminhou-se para a sua senzala solitária.
A crioula o seguiu de perto.