Paulo Borges chorou compungido a morte de sua honestíssima esposa, de quem fora bárbaro algoz. A suspeita de envenenamento revoltou-o, e embora visse Esméria desfeita em lágrimas a lamentar o passamento da senhora, esperou obumbrado o seu sábio curandeiro, e apenas o viu chegar, correu a ele, levou-o a examinar o cadáver, e disse por fim:
– Minha mulher morreu envenenada, não é verdade? O senhor tem obrigação de dizê-lo: fale! Em nome de Deus, diga-me a verdade.
O curandeiro turbou-se: de novo e com absurdo processo fez o exame do triste e enregelado corpo da vítima, e incapaz de compreender os sintomas que haviam escapado à sua ignorância, incapaz de apelar para os meios científicos que vingam a sociedade, reconhecendo no cadáver as provas irrecusáveis do crime do envenenador, o curandeiro charlatão, vaidoso do seu diagnóstico, acabou por dizer com desfaçada impostura:
– Envenenada!... Quem o disse, mentiu.
– Está absolutamente certo disso?
– Juro-o...
– Que Deus perdoe a quem tal suspeitou!
– Quem foi?
– A defunta.
– Delírio de moribunda: ela morreu da febre que eu disse.
– Antes assim.
Paulo Borges tranqüilizou a revolta de seu ânimo, e concentrou-se na dor da viuvez recente.
Esméria ficou inocente a seus olhos, e quase que mais mereceu em compensação da suspeita que o curandeiro declarara infundada.
O marido adúltero supôs enganar a Deus e aos homens, e talvez mesmo a si, dando aos restos mortais de sua santa mulher honras fúnebres suntuosas, esmolas aos pobres, missas, e aparatoso ofício do sétimo dia.
Deus, que recebeu a mártir, desprezou sem dúvida as oblações sacrílegas do pecador incontrito e obstinado.
O romance tem contra o seu legítimo fim comprometer a lição da verdade pelas prevenções contra a imaginação que deve ser exclusivamente a fonte de ornamentos da forma e de circunstâncias acessórias e incidentais que sirvam para dar maior interesse ao assunto; no seu fundo, porém, o romance precisa conter e mostrar a verdade para conter e mostrar a moral.
Alto o proclamamos: também neste nosso romance há no fundo plena, absoluta verdade.
Há envenenamentos propinados por escravos que desapercebidamente ou apenas de leve suspeitos, escapam impunes aos senhores e à autoridade pública.
Há curandeiros ignorantes espalhados pelo interior dos municípios mais civilizados das mais civilizadas províncias do império que involuntariamente, sem malícia e só por incapacidade intelectual favorecem, apadrinham a impunidade de semelhantes crimes, deixando-os esconderem-se nos segredos das sepulturas.
E ainda mais afirmamos, com a segurança que resulta do estudo e da observação:
Enquanto no Brasil houverem escravos, estarão nossas famílias facilmente expostas a envenenamentos e a tentativas de envenenamentos por eles propinados.
E, o que é mais, em dez casos desses crimes ou de tentativas desses crimes dois serão contra o senhor, oito contra a senhora.
E quando dizemos tentativa de envenenamento, queremos referir-nos principalmente ao emprego de certas substâncias que, aplicadas grosseiramente, ofendem pelo contacto físico e dilacerante, sendo de pronto descobertas, e propinados em pó sutil são inocentes ou inertes.
Nem é preciso adiantar, esclarecer mais; pois que neste caso o forte escudo dos senhores contra o ódio dos escravos é principalmente a ignorância e a bruteza destes.