A sentença que Teresa acabava de proferir com tão desabrida concisão caiu como uma camada de gelo na alma de Paulo Borges que se afastou triste, mas ressentido.
O marido ofensor não quis compreender que oito dias eram prazo muito curto para o arrefecimento da lembrança da afronta recebida pela esposa e que lhe cumpria contemporizar com a dor ainda vivíssima do golpe recente e profundo.
Não era verossímil, porque não era natural, que o tempo e o perdão restabelecessem em toda sua plenitude o amor e a confiança da esposa: as feridas morais que o coração recebe em seus mais delicados sentimentos chegam a curar-se, mas deixam cicatrizes que nunca se desfazem de todo e que são como escabrosidades do passado que magoam a memória revivedora dos bens e dos males ainda mesmo já de muito pretéritos.
Mas Paulo Borges tinha na família os elementos poderosos, irresistíveis da sua reconciliação com Teresa, tinha os filhos que os unia a ambos pelo sangue, pelo amor, e pelos cuidados do presente e do futuro; tinha esses laços obrigados e santos da natureza e que não há ressentimento, conflito, desarmonia entre pai e mãe que eles não saibam anular e destruir pelas próprias condições de sua dependência de ambos e pela necessidade da proteção e da providência do pai e da mãe que precisam velar e operar de acordo em benefício dos filhos.
Sem dúvida o amor maternal acabaria, e não tarde, por conceder o perdão do adúltero que ultrajara a esposa e senhora em repugnante e sórdido favor por amante escrava recebido; mas para isso era indispensável que Paulo Borges provasse com honesto e solícito proceder o arrependimento de seu crime ou dos seus desvarios, que poupasse, que não despedaçasse as últimas fibras sãs ou apenas dolorosas que a lembrança dos filhos tinha salvado no coração de Teresa.
Mas não aconteceu assim: Paulo Borges, possesso da negra astuciosa e frenética, ainda mais exposto à sua influência satânica pela privação do leito da esposa; Paulo Borges, natureza fortemente animal e em dobro exigente pela vida rústica, vigoradora do corpo, exclusivamente material e sem o adoçamento da educação, e dos gozos do espírito, esqueceu o dever, o brio, a honra, a perspectiva do inferno da casa e do extremo desengano de Teresa, e entregou-se indômito à fúria de suas relações oprobriosas com Esméria.
Pouco e pouco os derradeiros e tenuíssimos véus de mal fingida reserva se rasgaram; quanto havia ainda de estragados restos de brio desapareceu, e Paulo Borges, o fazendeiro casado, atropelando a decência, insultando ampla e manifestamente a esposa, semeando a indisciplina e a mais perigosa desmoralização na fazenda, freqüentou de dia e aos olhos de todos a senzala de Esméria.
A escravidão regozijava-se em seus ferros da desgraça que forjava, levando a vergonha, a desonra, a infâmia e as torturas ao seio da família do senhores.
O sofisma acode, dizendo: para esse fazendeiro casado, mas homem sensual, haveria sempre uma mulher fácil, ambiciosa, ou pervertida que, por não ser escrava, não faria menos a infelicidade da esposa atraiçoada.
Haveria sim, mas não seria escrava amante de seu senhor, não seria a inimiga natural dos senhores elevada a rival da senhora, não seria esta a dilacerar-se em seu nobre orgulho esmagado ao ver a negra, sua escrava, usurpando-lhe amor, autoridade, direito, ao ver seus filhinhos expostos e sujeitos à influência maléfica, odienta, terrível da própria escrava deles, mulher inimiga pelos ressentimentos de sua condição, perversa e corrompida pelos costumes; ao ver a fortuna da família ameaçada pela escrava-rainha, sacerdotisa dos vícios imundos, estragadora da fazenda pelos desatinos do fazendeiro, pela conseqüente arrogância e desnorteamento dos escravos que escarnecem e aplaudem, aborrecem e exploram a elevação da parceira, e desrespeitam, apodam o senhor desmoralizado que desceu à baixeza deles, pelos ciúmes enfim das outras escravas que disputam o sultão à favorita, travam brigas indecentes que maculam a casa, ridicularizam e insultam a vítima infeliz, a senhora obrigada pelo marido a sofrer suplício que não merece.
E, não o esqueçais, felizmente não muitos, alguns exemplos dessa abjeção do senhor que é casado, e mais numerosos entre os senhores que o não são, têm sido bastantes para que quase todas as escravas acreditem na possibilidade de conseguir igual fortuna e visam em constante e latente conspiração contra a felicidade e a paz doméstica das senhoras.
Vivendo só de amor e pelo amor, tendo o seu presente e o seu futuro, a chave dos seus tesouros, o condão da sua dita, toda a perspectiva de seu destino dependentes do amor, a mulher, o mito do sentimento, é, nos países onde ainda se tolera a escravidão, condenada a viver entre escravas, inimigas que por meio de embustes, intrigas, calúnias contra ela, por meio de invites, provocações dos senhores maquinam dia e noite e incessantemente para envenenar-lhe o santo fogo da sua vida, o sentimento, para roubar-lhe sua única e exclusiva riqueza, – o amor!
Contra esse imenso mal procurai um recurso e acreditareis ter achado dois em extremos opostos.
Um: vencer a maldade dos escravos pelo mimo do trato e pela caridade e beneficência perseverantes: engano; o ressentimento lógico e natural da escravidão faz cedo ou tarde da protegida ingrata, que nunca lembra os benefícios, antes escusa o esquecimento deles, quando ao impulso do vício, da ambição calculista, ou do desejo de abater a senhora, levanta os olhos para o senhor, e desafia a sua sensualidade.
Outro: a severidade compressora e até mesmo cruel para desanimar o atrevimento e conter a audácia: novo engano, e pior que o outro: a compressão provoca a reação, a crueldade, a vingança feroz, e além da inconveniência do meio haveria em tal caso para os senhores um peso da consciência, a ofensa da lei de Deus e da humanidade na atribulação dos escravos.
Fora desses dois improfícuos recursos, nenhum mais: se fizésseis instruir vossos escravos na religião dos seus deveres, instrui-los-íeis também e necessariamente na religião de seus direitos de homens, e teríeis educado e preparado a resistência inteligente dos oprimidos.
Não há recurso pois: aquele imenso mal é, como outros muitos, conseqüência irrecusável da escravidão e só acabará com ela.
Paulo Borges, portanto, havia descido ao último grau da ignomínia, e era já ostensivamente o amante de Esméria, e trancava assim o caminho da prudência, e do arrependimento por onde podia chegar à reconciliação com a mãe de seus filhos.
Teresa afetava indiferença ou desprezo: ninguém lhe ouvia jamais uma queixa, ou uma imprecação; mas recolhida à solidão do seu gabinete, abraçava-se com os filhos e por eles chorava noites inteiras.