Instintivamente Cândida reprovou o delírio, com que duas ou três moças indiscretas e repreensíveis, mentindo a sua educação, ou por infelicidade mal-educadas, provocavam censuras, pela franca vanglória de seus namoros fáceis: nesse alarde louco de imodéstia, que chega a ofender a decência, ela viu impressa a marca da desestima geral; mas, além do escândalo agreste do galanteio desatinado, que aliás é raro nas boas companhias, havia o galanteio apurado, sutil, ou mal patente, o galanteio elevado à arte de gozo de vaidade, e esse transviou-lhe a razão e a empurrou para o erro.
Até então Cândida fora louvada, incensada, cortejada com fervente empenho, ouvira confissões de amor apenas dissimuladas nas reservas do receio, da dúvida e do respeito, e que prorromperiam ostentosas e veementes à mais leve animação, ou a um simples sinal de condescendência; ela, porém, continha os ímpetos apaixonados; intimidava, e fazia hesitantes os adoradores de suas graças com o fingimento daquela perfeita inocência, que ainda não compreendia, nem sabia sonhar amor; mas daí em diante modificou o sistema que se impusera, e com habilidade, cuidado, e delicadeza prestou-se ao culto dos seus turificadores, deixo-se requestar e amar por elegantes cavalheiros, sem prender-se a nenhum deles prendendo-os a todos por esperanças vagas que alimentava sagaz e que podia negar mais tarde, e por esses mil, rápidos, e fugazes incentivos que a galanteadora artista acende ligeiramente, deixando sempre incompleto o estímulo, e a nuvem de uma dúvida para defesa futura, falando menos com a voz, do que com os olhos e os sorrisos, com artificial mas silenciosa comoção, e com aparências de enleio ao escutar suave juramento parecendo prometer muito, e não prometendo coisa alguma, não dando, mas perdendo oportunamente, ou esquecendo na cadeira a flor que pediram, e fugindo a uma resposta instantemente exigida com a graça de um gesto que enfeitiça e que pode significar sim e não.
Cândida reputava-se superior a todos os riscos do galanteio, procedendo assim; e pouco a pouco embriagada pelos cultos que recebia, pelas suaves emoções que experimentava e pelo numeroso cortejo de escravos que se curvavam ante a majestade de sua beleza, tornou-se a mais ativa, a mais hipócrita e disfarçada namoradeira.
Não tardou que um pressuroso apaixonado desejasse escrever à formosa e suposta esquiva donzela, tentando seduzir um dos pajens de Florêncio da Silva, para fazê-lo misterioso portador das suas cartas.
O escravo não precisava ser seduzido para encarregar-se da comissão: não tinha em estima o recato de sua senhora-moça; não quis, porém, receber a carta antes de entender-se com Lucinda.
A inteligência entre o pajem e a mucama foi fácil, e baseou-se no segredo e na partilha das gratificações.
Cândida recebeu a primeira carta de amor mais curiosa do que perturbada; entretanto abriu-a com as mãos trêmulas, leu-a para si três vezes; mas logo depois riu-se e fê-la ouvir à mucama.
A essa, outras cartas seguiram; como esse namorado, ou sincero e amoroso pretendente à mão da donzela, outros escreveram também suas cartas de amor, e nem todos tomaram por portador o mesmo pajem; Lucinda porém, foi sempre a única e exclusiva medianeira junto de sua senhora.
Cândida recebia indiferentemente, mas sem repugnância, todas as cartas; fazia delas vangloriosa coleção, como se fossem louros de vitórias; e considerava-se a coberto de todo reparo, porque não respondia à nenhuma.
A donzela se enganava: a sua reputação devia sofrer por tolerância tão repreensível.
Somente ao noivo, ou ao homem digno de confiança e com quem espera casar é dado à donzela permitir que lhe escreva em segredo: ainda em semelhante tolerância há imprudência, e no segredo desobediência aos pais, que têm direito sagrado ao perfeito conhecimento das ações da filha; mas este erro, que o amor desculpa, o casamento absolve depois.
A donzela é flor que tem por matiz o recato e o pejo: uma carta de amor de seu próprio noivo alvoroça-lhe o pudor, e não acontece assim somente quando ela é apenas fisicamente donzela, e já traz profanado o sentimento. O amor é para a senhora honesta sentimento-religião, culto puríssimo da alma, vida de sua vida, céu branco que a mais tênue nuvem obscurece; deve haver no amor da mulher a virgindade da unicidade: para a mulher do amor puro e sublime o amor não tem plural, porque ela o não sente nunca por mais de um homem. Cartas amorosas que se recebem, são contactos morais e físicos que se toleram: mais de um homem a escrever que ama, e uma donzela a ler esses atrevimentos de amor vero ou fingido, a tolerar, a receber esses contactos de amor no coração, que significam?... significam um escândalo, um opróbrio, cujas proporções a leviandade não mede: significam, é preciso dizê-lo, a prostituição do sentimento, menos vergonhosa do que a prostituição do corpo, só porque é recôndita; e muito mais profunda, porque é a corrupção do que a mulher tem de mais nobre, a corrupção do princípio que não pertence à terra, e que anima a mulher como o homem com a flama, cujo foco está no céu.
E ao pé do grande erro de Cândida a primeira punição estava no protervo juízo dos escravos portadores das cartas que lhe mandavam e que ela não repelia. Os escravos não compreendem o amor platônico, nem os limites que as moças hábil ou rudemente namoradeiras, impõem ao galanteio dos seus namorados: para eles não há intriga amorosa, nem cultos rendidos por cavalheiro à senhora sem reservado cálculo físico, que somente a falta de ocasião contrasta; e a língua dos escravos é lima surda de murmuração e de aleive, que, não sentida, mas ativa, adianta o seu trabalho de estrago e destruição.
Os escravos de Florêncio da Silva foram os primeiros a propalar na cozinha, e logo depois nas vendas, a multiplicidade dos namorados de Cândida, e a extraordinária sagacidade com que esta entretinha, encorajava, e enganava a todos eles.
As revelações dos escravos na cozinha e nas vendas espalharam-se além, e Cândida sem o suspeitar teve em breve estabelecida e firmada a sua fama de astuta e consumada namoradeira.
E ao pé de Cândida, impune, constante e inseparável dela volteava, como serpente, Lucinda, a mucama escrava, a fonte maldita, onde bebera a água da desmoralização desde seus anos de menina, a pobre donzela que incauta se adiantava por aqueles desvios, que podiam conduzi-la até o abismo da extrema degradação.
A escrava já tinha feito da menina inocente, donzela maliciosa e sabida de mais do que para sua glória podia ignorar ainda por alguns anos.
Da donzela maliciosa fizera depois moça hipócrita e falaz.
Da moça hipócrita acabara por fazer indômita namoradeira.
Matara-lhe a inocência, destruíra-lhe a virgindade do sentimento, viciara-lhe o coração, sensualizara-lhe os sentidos, desvirtuara-lhe a educação, e já lhe atirava o nome e o crédito aos insultos das murmurações e da maledicência.
A influência da mucama escrava produzia seus naturais resultados. A árvore da escravidão envenenava com seus frutos a filha dos senhores.
A vítima era por sua vez algoz.