Florêncio da Silva tinha dado a seus hóspedes um dia para descanso da viagem antes de fazê-los entrar na vida de festas e passeios; mas o jovem francês era incansável e também apressado em recomendar-se.
Acabavam apenas de levantar-se do almoço, quando Souvanel, vendo na sala um magnífico piano, correu a ele e executou de cor e com perícia magistral uma peça brilhante: depois, e enquanto o aplaudiam, examinou os livros de música, e exclamou:
– Quem canta estas músicas? Sem dúvida mademoiselle...
A pergunta e a observação eram como um convite para cantar: Florêncio e Leonídia desejaram muito naturalmente, que o notável mestre apreciasse o talento musical de sua filha, que eles supunham cultivado com esmero.
Cândida cantou, acompanhada ao piano por Souvanel, a ária final da Safo.
O mestre para quem todos olhavam depois dos cumprimentos de cortesia, ou de sincero louvor, teve de enunciar o seu juízo de autorizada competência.
– É uma voz admirável! – disse ele. – Uma suavíssima e ao mesmo tempo volumosa, extensa e afinada!
Cândida pareceu encantada do elogio.
– Não te desvaneças, Cândida – acudiu Liberato, rindo-se. – Repara que Souvanel encareceu somente a tua voz, mas deixou de elogiar teu canto: pode-se ter boa voz, e cantar mal.
A donzela olhou para Souvanel, que perturbara-se ou fingira perturbar-se um pouco.
– Fale o mestre, e não o cavalheiro, que por cortês é menos franco – disse Florêncio da Silva.
Leonídia instou, Cândida pediu; Souvanel falou.
– Com a voz que possui, e a prática severa que tem do solfejo, mademoiselle em duas horas de estudo bem dirigido, cantaria esta mesma ária de modo a fazer acreditar que é outra.
– Opera esse milagre, Souvanel! – disse Liberato.
– Se mademoiselle quer perder duas horas...
A experiência conveio a todos.
– Esqueçam-se de nós; porque o estudo é enfadonho, e esgota a paciência.
Ninguém se afastou.
Souvanel compreendeu todo o partido que poderia tirar daquela exposição viva do seu método de ensino e extremou-se na lição: fez Cândida repetir dez e mais vezes cada compasso, explicando nota por nota a idéia contida em cada uma, revelando os segredos da expressão e do sentimento, desde o gemido até o grito, desde o murmúrio e o soluçar do trêmulo até a perfeita segurança na graduação da tenuta, ensinando a respirar na ocasião competente, e encher de ar as amplidões pulmonares para o arrojo veemente das paixões em música.
A bela discípula, rica de inteligência e de voz, ávida de saber, vaidosa para mais ardentemente desejar ser admirada, absorveu-se na lição, admirou o mestre, e admirou ao mestre; porque, no fim de pouco mais de duas horas, cantou com efeito a ária quase com perfeição, e, como Souvanel o dissera, de modo a fazer acreditar que era outra.
Souvanel acabava de fundar a sua reputação de mestre exímio.
É claro que desde esse dia, sempre que as conveniências da sociedade o permitiam, antes ou depois dos passeios, na manhã, ou na tarde, que mediavam entre as folganças gerais, Cândida tomava a Souvanel uma ou duas horas para preparar as árias que devia logo depois executar.
Mas Souvanel também cantou e fez furor.
Naturalmente as vozes quiseram combinar-se, diversas senhoras cantaram duetos com Souvanel; Cândida desejou cantá-los, e apelou para o mestre que se exaltava, achando na discípula uma adivinhadora dos segredos mais sutis da arte.
Raramente embora, Souvanel e Cândida ficavam uma ou outra vez a sós no piano.
Em uma dessas ocasiões o jovem francês disse com fingido ou real entusiasmo.
– Que voz! Penetra e fica no coração de quem a ouve!
Cândida interrompeu o canto.
– Prossiga! – exclamou o mestre.
– Oh! Não – respondeu a moça com enlevamento. – Eu quero que a minha voz repita três vezes ainda este allegro...
E ela o repetiu três vezes requintando a doçura e o sentimento que comovida e inspiradamente dava ao canto.
– Isto faz esquecer de que se vive na terra, e imaginar que se está no céu, ouvindo um anjo! – murmurou Souvanel.
– Anjo! – respondeu em voz baixa a imprudente donzela. – Anjo! Como, se nem tenho asas para voar e fugir?
– Oh! Mas para mim, pobre proscrito, está tão alta, que nem posso chegar com os meus lábios a seus pés!...
Nesse momento Leonídia se aproximava.
Souvanel apontou com o dedo o sinal de um compasso e disse imperturbável:
– Perfeitamente, mademoiselle! Agora aqui a respiração, e depois o sentimento contraído pelo receio; mas transpirando no trêmulo, e preparando-se para a expansão sublime...
Não havia nem receio no sentimento do canto, nem trêmulo na música, nem expansão a preparar...
E todavia Cândida não se mostrou surpreendida, e continuou a lição, improvisando um trêmulo mal cabido, que Souvanel não corrigiu.
A filha enganava a mãe.
O mestre começava a enganar a todos.