O nobre defensor lá se ia, e a mucama escrava ficava ao pé da vítima.

Frederico mal podia pesar o grau imenso da sabedoria do segundo e último conselho que deixara a Cândida.

Lucinda estava sendo junto de sua senhora o demônio tentador, a guarda avançada que preparava o assalto da sedução.

Dedicada a Souvanel, pelo vício alimentado no presente, pelo vício esperançoso do futuro, esquálida amante sem ciúmes, a mucama escrava comprada pelos favores lascivos do francês, contando com a emancipação prometida, e com a sua fortuna feita por ele apaixonado de seus desen­freados transportes, ou por outros sucessivos libertinos ricos e depravados, assediava sua senhora com os sofismas rudes, mas sempre sinistros e for­midáveis quando falam ao amor inflamado por violentos ardores.

Frederico o não pensava, e Lucinda uma hora em cada noite, muitas vezes em cada dia, lançava em rosto a Cândida a frieza do seu amor, a ofensa que a sua virtude exagerada irrogava à confiança que merecia o seu amado, quando lhe negava a noturna conferência, que ele pedia teimoso, e já ressentido, ou antes artificialmente ressentido.

Frederico o não pensava, e a mucama escrava predispondo a conferên­cia reclamada, exigida em duas e três cartas vulcânicas por dia, encoraja­va, excitava Souvanel, recebendo-o em desoras por mais de uma vez no quarto do pajem, o fiel de Florêncio, e vendido a Souvanel, no quarto do escravo, por onde se mostrava caminho aberto para se ir ter ao quarto da donzela.

E quem sabe o que já imaginava o pajem, quando, abrindo a janela em horas mortas da noite saltava para fora, e Souvanel saltava para den­tro do quarto, onde a negra o recebia?...

Cândida tinha ao menos triunfado até então das ciladas e dos sedutores invites da mucama e do francês, e não tinha idéia das escandalosas rela­ções de um e outra; mas desde a última noite de festa prevenida por Lu­cinda contra Frederico, e dele desconfiada ainda mais por certo quê de triste, desgostoso, e contrafeito, que achava no trato de sua mãe, presumira-se atraiçoada em seu segredo pelo irmão adotivo, pagando fingimento por fingimento, e amando em dobro Souvanel pelo impulso da reação, pressentia a falsidade na lealdade, e supunha encontrar a dedica­ção na traição.

A desgraçada vítima duvidava de Frederico e o enganava com as mais suaves e meigas demonstrações de seguridade, e atendia perdida de amor às instigações tentadoras e traiçoeiras de Lucinda, que sublimavam a paixão ardentíssima de Souvanel.

Frederico punha condições ao amor de Cândida; Lucinda lisonjeava-o plena e absolutamente; é claro, pois, que Lucinda se faria ouvir mais fácil e agradavelmente do que Frederico.

Entretanto Cândida cogitava perplexa e inquieta na recomendação que recebera para resguardar-se da sua mucama: não podia crer que Frederico se abaixasse a mover intriga contra uma escrava e, em sua consciência, lembrando os maus conselhos e insistência de Lucinda no empenho de fazê-la prestar-se a conferências com Souvanel, estava reconhecendo a sa­bedoria da recomendação.

Mas que motivo teria inspirado a seu irmão adotivo o mau conceito em que ele tinha a sua mucama? Cândida perdia-se em vagas conjecturas, e prometendo a si mesma acautelar-se, prevenindo-se contra Lucinda, mos­trou-se como até então desacautelada, julgando que não podia prescindir dos serviços dela, para continuar a entreter sua correspondência amorosa com Souvanel.

Foi assim que na noite do mesmo dia em que Frederico lhe anunciara a sua viagem, e o fim que o levava à Corte, ela, que tinha-se já abalança­do a escrever a Souvanel para consolá-lo das negativas de conferência, relatou-lhe em minuciosa carta o fato que a ambos devia interessar tanto.

Lucinda, recebendo a carta de sua senhora, e habituada às mais íntimas confidências do seu amor, não hesitou em perguntar se sobreviera alguma novidade.

Cândida não quis alvoroçar a mucama com reservas a que ela não estava acostumada, e referiu-lhe o objeto da viagem de Frederico,

– Ah! – disse a escrava. – Espere minha senhora pelas boas informações que hão de vir: o moço francês vai ter todos os vícios, e será bem feliz se não lhe imputarem alguns crimes.

– Como? Frederico é incapaz de aleives.

– Minha senhora, o senhor Frederico é hipócrita.

Cândida olhou severamente para Lucinda e disse-lhe:

– Não quero que fales de meu irmão por esse modo.

A escrava curvou a cabeça.

Passados alguns momentos, a senhora, adoçando a voz, perguntou:

– Quando poderá Souvanel receber a minha carta?

– Amanhã, minha senhora.

– E a resposta?... Tê-la-ei amanhã mesmo?

– Talvez

– Ah, Lucinda! Tu não sabes, como é grata e suave a leitura de uma carta do homem a quem se ama!

A mucama animou-se de novo.

– Faço idéia – respondeu. – Há, porém, coisa ainda mais grata e suave.

– O quê?

– Ouvir da própria boca do amado, em conversação secreta, isso mes­mo que ele escreve e muito mais que ele não pode escrever.

– Lucinda! Que teima!...

– Pois se minha senhora está com vergonhas e medos de menina tola! É coisa do outro mundo uma moça conversar em segredo com o moço que há de ser seu marido?... E ele que a não vê mais, e deseja tanto vê-la?

– Não insistas mais nisto; eu to proíbo.

– O moço francês há de pensar que minha senhora tem medo dele, e de si...

Cândida corou, e revoltou-se; não se conteve e disse:

– Frederico tem razão... devo acautelar-me de ti!

A mucama recuou um passo perturbada; mas logo depois satanica­mente inspirada, perguntou:

– Ele disse a minha senhora, que desconfiasse de mim?

– Disse-me.

Lucinda levou à boca ambas as mãos como para conter uma risada.

– Que é isso?...

– Minha senhora, o senhor Frederico não tem razão; mas tem moti­vo...

– Dizes que tem motivo?...

A escrava sorriu-se ignobilmente e murmurou, abaixando os olhos:

– A gente às vezes é má e ofende sem querer...

– Como?...

– Era possível que ele viesse a casar com minha senhora...

– E então?

– Eu fiel a minha senhora, e ele... tão feio...

Cândida tinha já compreendido; mas estouvada e louca, prelibando o ridículo, desejando rir, e acostumada a divertir-se com os casos lúbricos que lhe contava a mucama, disse, fingindo-se enleada:

– Explica-te, Lucinda.

– A explicação foi mentira indecente e escandalosa, em que a negra de­vassa se ostentou esquiva, relutante, e recatada principalmente em respeito e por fidelidade à sua senhora.

Cândida que começava a ouvir a improvisada história, rindo-se, acabou, voltando o rosto com repugnância e nojo de Frederico, que todavia nunca se lembrara de abaixar os olhos sobre a negra, que aliás era amante de Souvanel.