Em suas conferências de família, nesse dia em que Souvanel se abalançara a pedir Cândida em casamento, o que mais preocupou a Florêncio da Silva, Leonídia e Liberato não foi a pretensão do jovem francês, foi a evidente e prévia inteligência que havia entre este e a donzela.
Souvanel não vinha mais à chácara de Florêncio, Cândida não aparecia como dantes nos saraus e no teatro da cidade: como pois explicar o acordo de ambos, senão por meio de correspondência secreta?...
– Se temos inimigos de portas adentro! – exclamara Liberato.
– E quem são?
– Não se pergunta; são os escravos. Segurança e moralidade com a escravidão ninguém compreende.
– Mas eu trato paternalmente os meus escravos – observara Florêncio da Silva.
– Embora; nem é pai, nem eles são filhos; porque vossa mercê é senhor e eles são escravos: entre um e outros há um abismo cheio de ódio: escravos? Quem os educa?... São todos abandonados à perversão dos costumes: julga-se pai o que lhes dá pão, pano, e paciência de sobra; mas a alma e o coração desses desgraçados? Se lhes iluminassem as almas, adeus escravidão!... Nas trevas do espírito os corações escravos não podem abrir-se à virtude que é luz generosa, abrem-se à corrupção que tem embriaguez que olvida, noite que esconde gozos nefandos, consolação envenenada que é contraveneno dos martírios da escravidão. Guardamos em casa a peste, e pergunta-se donde vem o contágio?...
– Tens razão; mas esqueçamos a tese, e vamos ao fato: quem será dos nossos escravos o medianeiro atrevido?
– Lucinda talvez... a mucama...
– Lucinda não sai de casa – dissera Leonídia – , como pois falaria a Souvanel?...
– Não nos previnamos com suspeitas que podem ser injustas: cada um de nós que observe e espreite, e a verdade se descobrirá – concluíra Florêncio da Silva.
E o dia passou...
E a noite que chegara, adiantava-se...
A casa de Florêncio da Silva se fechara; as luzes apagaram-se todas... todas, exceto a do quarto de Cândida, que velava a tremer.
Todo o ruído que assinala a vida cessara, todo, exceto o tiquetaque da pêndula do relógio da sala de jantar, que marcava a marcha do tempo sempre em marcha...
O relógio anunciou três horas da madrugada...
Como um espectro a negra mucama, em camisa, avançou pé por pé para o leito da senhora, que chorava, e que a encarou tremendo e perguntando-lhe com o olhar desvairado o que havia...
Lucinda não falou; porém com eloqüentes gestos indicou que Souvanel esperava Cândida no quarto do pajem...
Cândida retorceu-se desesperada no leito...
A mucama fez com as mãos sinal de fuga e de morte...
A donzela saltou do leito vestida com simples roupão finíssimo, com os cabelos soltos, com os seios a palpitar entonados sob o véu transparente...
Os brancos lábios da senhora tocaram o ouvido negro da escrava e murmuraram:
– Vamos...
Mas a dois passos Cândida titubeou e seu corpo abandonou-se inerte nos braços da escrava.
Lucinda carregou a senhora que acabava de desmaiar e a depôs no leito: logo em seguida saiu diligente, mas cuidadosa e sutil...
A mucama escrava tinha refletido: o ensejo era oportuno: por onde ela ia, alguém podia vir...
Cinco minutos depois, Lucinda tornou a entrar no quarto, trazendo pela mão Souvanel, a quem mostrou a senhora estendida no leito...
Cândida tornava então a si e, vendo Souvanel, estremeceu toda... teve instintivamente a idéia de levantar-se e fugir; fez um movimento, um esforço, e achou-se, como paralítica... não ousou gritar... porque gritar era matar o amante... a custo dobrou os braços sobre o peito e pôs as mãos, implorando piedade...
Souvanel aproximou-se do leito virginal...
A escrava perversa apagou a luz.