AOS NOSSOS LEITORES
I
Queremos agora contar-vos em alguns romances historias verdadeiras que todos vós já sabeis, sendo certo que em as já saberdes é que póde consistir o único merecimento que por ventura tenha este trabalho; porque na vossa sciencia e na vossa consciência se hão de firmar as verdades que vamos dizer.
Serão romances sem atavios, contos sem phantasias poeticas, tristes historias passadas á nossos olhos, e á que não poderá negar-se o vosso testemunho.
Não queremos ter segredos, nem reservas mentaes comvosco.
É nosso empenho e nosso fim levar ao vosso espirito e demorar nas reflexões e no estudo da vossa razão factos que tendes observado, verdades que não precizam mais de demonstração obrigando-vos deste modo á encarar de face, á medir, á sondar em toda sua profundeza um mal enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corroe à nossa sociedade, e á á que a nossa sociedade ainda se apéga semelhante a desgraçada mulher que, tomando habito da prostituição, á ella se abandona com indecente desvario.
E o empenho que tomamos, o fim que temos em vista adunão-se com uma aspiração generosa da actualidade, e com a exigencia im- placavel da civilisação e do seculo.
II
Sob as apprehensões de uma crise social imminente, infallivel que à todos ha de custar directa on indirectamente onerosos sacrificios o povo brasileiro e particularmente os lavradores esperão anciosos, entre receios por certo justificaveis e clamores que se explicão sem dezar, o pronunciamento legal e decisivo da solução do problema da emancipação dos escravos.
Este estado de duvidas afflictivas sobre o futuro, de lemor dos detrimentos que se hão de experimentar, e que o descostume e certa desconfiança, do trabalho livre ainda mais exagerão, este mal estar dos proprietarios de escravos, vendo cheio de nuvens o dia de amanhã, póde comparar-se a situação dos espiritos timidos e das pessoas de organisação sobremaneira nervosa, quando em negro horisonte e em atmosphera abafada começão a rasgarse os fuzis, e a rugir a trovoada que avança formidavel. Esta imagem se nos afigura tanto mais acertadamente applicada, quanto é sabido que depois das grandes trovoadas vem a pureza do ar, a bonança e a claridade.
Como quer que seja, máo grado os interesses que hão de padecer, á despeito das op-posições que se fazem e se farão sentir, embalde ás faceis objecções denunciadoras de indubitaveis inconveniencias e senões em quantos projectos e imaginaveis planos se engendrarem para que menos violenta e dolorosa se resolva a crise, e se opere a revolução social, é positivo que tocamos a vespera da emancipação dos escravos.
Ninguem se illuda, ninguem se deixe illudir. Não ha combinação de interesses, não ha partido politico, não ha governo por mais forte que se presuma, que possa impedir o procelloso acontecimento.
Nunca houve caso em que melhor assentasse a formula do fatalismo musulmano: — está escripto.
A famosa prophecia do Velho do Itajuru escripta quasi á meio seculo se realisou em nossos dias: a nuvem negra veio do Norte.
Havia uma grande potencia, uma republica soberba que em seu seio tolerava a escravidão, e tenaz a mantinha: a confederação Norte-Ame- ricana era barreira tremenda ante a qual estacava o movimento emancipador; mas a filha de Washington depois de uma luta formidavel que espantou o mundo, no fim de uma guerra de proporções descommumaes afogou para sempre a escravidão nas aguas ensanguentadas do Potomac que testemunhara as ultimas batalhas entre o Sul escravagista e o Norte emancipador. O Norte venceu: a nuvem negra nos veio do Norte.
Desde então só o Brasil e duas colonias da Hespanha mantem a escravidão aos olhos de todas as nações que protestão contra a excepção.
A voz de Deos, o brado do seculo da liberdade, a opinião do mundo, o pronunciamento dos governos, o espirito e a materia, a idéa e a força querem, exigem, e em caso extremo hão de impôr a emancipação dos escravos.
Nas duas colonias da Hespanha o problema vai resolver-se com expontaneo decreto da metropole.
O Brasil só, isolado, marcado com o sello ignominioso da escravidão diante do mundo, seria o escarneo e o maldito do mundo, e se exporia ao opprobrio da coacção pela força.
O patriotismo se revolta ao simpies imaginar do insulto á soberania nacional pela prepotencia estrangeira: mas a razão comprebende a possibilidade e a probabilidade do ultrage.
Tambem vos imbalarão com a tolerancia do trafico de africanos; tambem vos fizerão creditar que sem elle feneceria a agricultura; tambem vos fallarão da soberania nacional para resistir á prepotencia estrangeira, e em dias lugubres em que a patria envergonhada escondeo o rosto, lavrarão de subito e precipitadamente a sentença de morte do trafico de africanos ào som dos tiros dos canhões inglezes que cuspião injurias e afrontas nas faces de fortalezas nossas.
Então foi sómente a Inglaterra; e o Brasil teve de ceder.
Agora é o mundo, agora são todas as noções, é a opinião universal, é o espirito e a materia, a idéa e a força á reclamar a emancipação dos escravos.
Imaginaes resistencia possivel?
Não vos illudaes, não vos deixeis illudir: preparai-vos: a emancipação dos escravos ha de realizar-se dentro de poucos annos.
Está escripto.
III
Não se estirpa o cancro sem dôr.
A escravidão que é cancro social, abuso inveterado que entrou em nossos costumes, arvore venenosa plantada no Brasil pelos primeiros colonisadores, fonte de desmoralisação, de vicios e de crimes, é tambem ainda assim instrumento de riqueza agricola, manancial do trabalho dos campos, dependencia de innumeraveis interesses, immenso capital que representa a fortuna de milhares de proprietarios, e portanto a escravidão para ser abolida fará em seus ultimos arrancos de monstro cruelissima despedida.
A emancipação immediata e absoluta dos escravos, que aliás póde vir a ser um facto indeclinavel e subito na hypothese de adiamento teimoso do problema, e provocador do resentimento do mundo, seria louco arrojo que poria em convulsão o paiz, em desordem descommunal e em sossobro a riqueza particular e publica, em miseria o povo, em banca-rota o Estado.
A emancipação gradual iniciada pelos ventres livres das escravas, e completada por meios indirectos no correr de prazo não muito longo, e directos no fim desse prazo com indemnisação garantida aos senhores é o conselho da prudencia e o recurso providente dos proprietarios.
Ainda assim o costume e o interesse do senhor hão de disputar ao Estado a oppressão e o dominio do escravo: é explicavel a oppsição; é natural a repugnancia que apparece no campo invadido ao principio que invade: é a dôr que faz gemer na extracção do cancro.
Mas o governo e a imprensa devem esforçar-se por illuminar os proprietarios de escravos e convence-los de que está em seus proprios interesses auxiliar o Estdo na obra immensa e escabrosa da emancipação, para que ella que é infallivel, se effectue com a menor somma possivel de sacrificios.
A imprensa que o não fizes, mentirá á sua missão augusta; o governo que o não fizer, atraiçoará a causa publica.
IV
Pobre escriptor de acanhada intelligencia, rude o simples romancista sem arte, que sómente escreve para o povo, não nos animaremos a combinar planos de emancipação, nem presumidos de sciencia procuraremos esclarecer o publico sobre as altas conveniencias economicas, e as santas e irrecusaveis lições philosophicas que condemnão a escravidão.
Como, porém, é dever de cada um concorrer á seu modo, e nas suas condições, para o desenlace menos violento desse nó terrivel, e servir á causa mais melindrosa e arriscada, porém indeclinavel, que actualmente se offerece ao labor á dedicação do civilismo, pagaremos o nosso tributo nas proporções da nossa pobreza, escrevendo ligeiros romances.
Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a torpeza da escravidão, sua influeucia malvada, suas deformidades moraes e congenitas, seus instinctos ruins, seu horror, seus perigos, sua acção infernal é tambem contribuir para condemna-la e para fazer mais suave e sympathica a idéa da emancipação que a aniquila.
Seguindo dous caminhos oppostos, chega-se ao ponto que temos fitado, á reprovação profunda que deve inspirar a escravidão.
Um desses caminhos se estende por entre as miserias tristissimas, e os incalculaveis soffrimentos do escravo, por essa vida de amarguras sem termo, de arido deserto sem um oasis, de inferno porpetuo no mundo negro da escrɐvidão. É o quadro do mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao escravo.
O outro mostra a seus lados os vicios ignobeis, a perversão, os odios, os ferozes instinctos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, deixem-nos dizer assim, a syphilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a familia dos senhores, e a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente attentando contra a fortuna, a vida e a honra dos seus inconscios oppressores. É o quadro do mal que o escravo faz de assentado proposito ou ás vezes involuntaria e irreflectidamente ao senhor.
Preferimos este segundo caminho: é o que mais convém ao nosso empenho.
Esquecemos Buc-Jargal, o Toussaint, Louverture e o Pai-Simão; o escravo que vamos expôr á vossos olhos é o escravo de nossas casas e de nossas fazendas, o homem que nasceu homem, e que a escravidão tornou peste ou fera.
Contar-vos-hemos, pois, em pequenos e resumidos romances as historias que vós sabeis porque tendes sido dellas testemunhas.
Se pensardes bem nestas historias, devereis banir a escravidão, para que ellas não se reproduzão.
Porque estas historias veracissimas forão de hontem, são de hoje, e serão de amanhã, e infinitamente se reproduzirão, emquanto tiverdes escravos.
Lêde e vereis.