II
Era em uma dessas vendas sinistras como a que acabamos de descrever.
O sitio era solitario; a estrada rompia pelo meio vasta floresta que cortava sinuosa, e, descendo declive suave, ia atravessar tenue corrente d'agua alimentada por brejal vizinho e de novo se perdia, como embebendo-se no seio do bosque.
A venda mostrava-se triste á beira da estrada, que em sua frente se alargava cerca de seis ou oito braças; tinha ao lado direito o brejal a estender-se para traz, e ao esquerdo e pegada á casa uma rude tranqueira de páo, dando entrada para um terreiro immundo, que se adiantava pouco além da cozinha. Não havia creação no terreiro; apenas a elle se recolhian á noute um porco, que chafurdava na lama, e um casal de de patos, que grasnavam no brejo.
A venda se isolava na solidão, mas não longe de fazendas e sitios, que se annunciavam de madrugada pelo cantar dos gallos, á tarde pelo mugir dos bois, á noute pelo latir dos cães.
Os cavalleiros e viandantes que passavani ás vezes durante o dia, não se lembravam nunca de chegar-se ou parar áquella venda desprezivel, onde em compensação faziam sempre estação demorada os escravos carreiros ou tropeiros que iam ou voltavam, conduzindo generos.
Entretanto, aquelle tecto miseravel, albergue de vicios e torpezas, jámais se achava em abandono de freguezes.
Ha poucos annos, em um dia calmoso do mez de Fevereiro, viam-se ás tres horas da tarde nessa venda certas figuras, formando um quadro quasi constantemente alli observado com insignificantes modificações até a hora do negro concurso nocturno.
Para dentro do balcão estava um menino de doze annos, de pés no chão, vestido de calças e camisa que desde um mez não mudava, e cuja cor e qualidade do pano escapariam ao mais teimoso exame; era o caixeiro mandrião, e já perdido pela desmoralisação, pela incontinencia da palavra e pela convivência com os vadios e os escravos. Á porta da venda via-se em pé a olhar a estrada um homem de meia idade, cabelludo, amarello, em mangas de camisa com o collarinho desabotoado, o peito á mostra, e calçando grandes tamancos: era o vendelhão.
Em uma extremidade do balcão sentava-se um homem avelhentado, tendo as pernas pendidas, os pés descalços, os vestidos remendados, um velho chapéo de palha na cabeça, e ao peito uma viola, em que tocava de continuo as musicas rudes dos fados. Na outra extremidade do balcão quatro sujeitos moços quasi todos, um ainda imberbe, todos quatro mais ou menos miseravelmente vestidos jogavam o pacao, rixando a todo momento, e não se poupando accusações de furtos e de fraude no jogo.
Um ultimo freguez emfim, figura sinistra, te"ndo olhos de tigre, boca, por assim dizer, sem lábios, e com immensa barba mal cuidada, parecia dormir estendido em um banco, de páo defronte do balcão
De espaço em espaço a aguardente inspirava o tocador de viola e animava os jogadores.
Ás quatro horas da tarde um cavallo, correndo á desfilada, veio estacar á porta da venda, pondo-se o cavalleiro de um salto no chão.
O cavalleiro era um crioulo escravo ainda muito joven.
— Oh !... o grande Simeão!... exclamou o vendelhão, abraçando o escravo.
— Uma pinga que estou com muita pressa; disse este, e correu para dentro da venda.
Simeão recebeu logo um cópo cheio de aguardente, que bebeu de uma vez, atirando o resto á cara do menino, que o servira.