Últimos risos palermas, últimos escancaramentos de bocas parvas nos fins destroçados de um carnaval, por tarde ardente e nevoenta. Massas de nuvens torvas tumultuam no firmamento, sob múltiplas conformações fabulosas. Raios derradeiros de sol em poente languescem do alto, mornamente crepusculares.
Um tédio enorme espreguiça, estremunha no ar, lânguido, letárgico, invencível, indefinível...
Por uma rua estreita, sombria e lôbrega como um prolongado corredor de convento ou uma infecta galeria subterrânea, vem desfilando, aos pinchos, saracoteando toda, desconjuntando-se toda, uma turba miserável de carnavalescos, impondo aos últimos raios tristes do sol as suas carantonhas mais horrivelmente tristes ainda, as suas vestimentas funambulescas, fazendo lembrar diferentes aspectos de loucura, graus de imbecil demência, angulosidades de crime, estados primitivos de ignorância amassados numa embriaguez mórbida, selvagem e sinistra.
Os pinchos, os saracoteios, os ziguezagues dos quadris elásticos das mulheres, com os moles seios bambos e as nádegas proeminentes, num deboche nu de Inferno relaxado onde vinhos alucinantes entrassem como oceano canalizado para as bocas; os perfis ósseos, anfratuosos dos homens, mascarados de sapo, de gorila, de serpente, de crocodilo, de dragão de cornos, de morcego, de monstro bifronte, de urso, de elefante e de mentecapto, dão à turba carnavalesca a sensação formidável do descaro final, do pandemonium derradeiro, da nudez lúbrica, desbragada, bestial, da cega hediondez dos instintos soltos na hora eclíptica do aniquilamento do mundo!
Mas, eis que do centro do desprezível bando, vestida em farrapos, boçal, congestionada de bestialidade, urrante de chascos, destaca-se uma terrível figura mais grotesca do que as outras, trazendo na cabeça, em forma de troféu, uma trunfa alta, feita de cobras emaranhadas, com as caudas em pé, semelhando uma coroa de vícios em convulsão. E no meio do círculo que as outras formam e ao som de palmas cadenciadas e batuques selvagens, através de risadas aparvalhadas do público, fica então a dançar alucinadamente. Nas suas pernas magras, espectrais, de esqueleto ironicamente esquecido pela cova, dir-se-á que lhe puseram azougue e lhe puseram também rodízios nos pés.
E ela fica então a rodar, a rodar, macabra, doida, numa febre, num delírio, como se fosse esse todo o extremo esforço das suas faculdades de dançarina. E ela roda, roda, vai rodando, em vertigens e vertigens, em giros esquisitos, fazendo flutuar os dourados farrapos da veste, dentre uma saraivada grossa de risos e aclamações, gozando triunfos na miséria daquilo tudo, como a rainha da lama humana. E a grotesca figura roda, mascarada de múmia verde — alucinação que ondula, desvairamento que serpenteia — a exemplo de urna cousa amorfa, de um bicho inconcebivelmente estranho que se tivesse ao mesmo tempo absurdamente tomado de uma epilepsia nervosa e da dança de São-Guido...
De vez em quando piparoteiam-lhe a pança, as nádegas moles e ela então, ignóbil animal aguilhoado por essa baixa carícia, saracoteia mais, espaneja-se toda no seu lodo como num leito de volúpia.
Ah! daquela momice cínica, daquela desordenada bebedeira d'instintos erguiam-se, hórridos fantasmas de sangue, de lama e lágrimas, o Asco e a Dor!
Eu para ali me arrastara, no amargo tédio da tarde, na ânsia crepuscular do sol, que lembrava um palhaço senil e lúgubre, sem mais alegria, vestido de ouro e morrendo, só, desamparado até mesmo das ovações ou dos apupos da rota garotagem, no fundo de um beco imundo...
Levaram-me para ali não sei que desencontrados sentimentos, que emoções opostas, que vagos pressentimentos... A verdade é que eu para ali fora, talvez fascinado por certo encanto misterioso dessa miséria cega: para embriagar-me de asco, para envenenar-me de asco e tédio e desse tédio e desse asco talvez arrancar os astros e ferir as harpas de alguma curiosa sensação. A verdade é que eu para ali fora, quase hipnotizado, de certo modo mesmo impelido pela extravagante turba carnavalesca, pela sua monstruosa miséria.
Mas, agora, todo esse misto de animalidade, de suinice, esse hibridismo mascarado, de paixões rastejantes, vermiculares, essas formas humanas que atrozmente se convulsionavam como feras devorando, todo esse ambulante sabbatt foi então desfilando por outras ruas, seguindo o seu rumo de calcetas do ridículo, bambamente, aos boléus sob o fim torvo da tarde que parecia, também mascarada de feiticeira, rindo urna risada de augúrio feral aos últimos bamboleios carnavalescos que se afastavam, finalizando como a tarde finalizava, dispersando-se, desaparecendo pelos oblíquos becos tortos num tropel de manadas de gado estropiado que uma peste assolou...
E enquanto a multidão, vesga, atordoada, tonta, azoinada de calor, de rumor, de carnaval e de poeira, aplaudia com gritos e zumbaias delirantes, ensurdecedoras, aquela turba vil, incaracterística, a minh'alma sentia-se como que pendida de um cadafalso que a estrangulava, acorrentada a um asco mortal, a uma dor tremenda que não tinha linhas de unidade, de conjunto e de entendimento com as outras dores; dor ingenitamente original, que não participava, em nenhuma das suas fibras, em nenhuma das suas interpretações sensacionais, das outras dores do mundo! Dor legitimamente outra, que não tinha limites no limite da dor comum; dor que me parecia cobrir o céu de luto, enegrecer tudo, aumentando-me o asco de tal sorte que o ar, os horizontes enublados, as árvores, as pedras da rua, as paredes dos edifícios, a multidão que burburinhava, tudo me parecia estar possuído do mesmo asco e da mesma dor. Dor sem raízes conhecidas, sem ritmos definidos, sem origens encontradas nem na vida, nem na morte, fora das correntes eternas, das correlações das esferas, das circunvoluções do pensamento! Dor inaudita, cujas partículas sagradas eram formadas da flamejante constelação de um anseio transcendental, da luz misteriosa das espiritualizações supremas, de sentimentos fugidios, sutis, de sensações que volteavam e ondulavam em torno da minha cabeça, corno auréolas psíquico-estesíacas, por paragens ultraterrestres.
Asco que era para mim como se eu me sentisse coberto de lesmas, lesmas fazendo pasto no meu corpo, lesmas entrando-me pelos ouvidos, lesmas entrando-me pelos olhos, lesmas entrando-me pelas narinas, pela boca asquerosamente entrando-me lesmas. Um asco feito de sangue, lama e lágrimas, composto horrível de um sentimento inexplicável, hediondo, donde brotava a flor de fogo e veneno de uma dor sem termo.
Asco daquelas postas de carne que além obscenamente se rebolavam numa mascarada infernal, bêbadas, bambas, fora da razão humana, a toda a brida no Infinito do deboche, sem fé e sem freios, na confusão dos instintos como na confusão do caos.
Dor e asco dessa salsugem de raça entre as salsugens das outras raças. Dor e asco dessa raça da noite, noturnamente amortalhada, donde eu vim através do mistério da célula, longinquamente, jogado para a vida na inconsciência geradora do óvulo, como um segredo ou uma relíquia de bárbaros escondida numa furna ou num subterrâneo, entre florestas virgens, nas margens de um rio funesto...
Dor e asco desse apodrecido e letal paul de raça que deu-me este luxurioso órgão nasal que respira com ansiedade todos os aromas profundos e secretos para perpetuá-los através da mucosa; estes olhos penetradores e lânguidos que com tanta volúpia e mágoa olham e assinalam as amarguras do mundo; estas mãos longas que mourejam tanto e tão rudemente; este órgão vocal através do qual sonâmbula e nebulosamente gemem e tremem veladas saudades e aspirações já mortas, soluçantes emoções e reminiscências maternas; este coração e este cérebro, duas serpentes convulsas e insaciáveis que me mordem, que me devoram com os seus tantalismos.
Dor e asco dessa esdrúxula, absurda turba bruta que além, sob a tarde, uivava, desprezivelmente ridícula, na infrene mascarada, com os seus ínfimos vultos sinistros transfigurados em crocodilos, em serpentes, em sapos, em morcegos, em monstros bifrontes, todos, todos da mesma origem tenebrosa de onde eu vim, negros, sob a lua selvagem e sonolenta dos desertos, no seio torcido das areias desoladas...
Asco e dor dessa ironia que para mim vinha, que para mim era, que só eu estava compreendendo e sentindo assim particular e exótica — ironia gerada nos lagos langues do Letes, fundida nas perpétuas chamas do Abstrato das Esferas, ironia para mim só, só para mim descoberta nas camadas infinitas da Vida, ironia só para o meu Orgulho mortal, só para aminha Ilusão humana, só para o meu insatisfeito Ideal, ironia! ironia! ironia rindo às gargalhadas no fim da tarde pelas máscaras obtusas e pela boca parva da multidão que aplaudia truanescamente como o supremo truão eterno.
E, ó Dor maior! Asco mais estranho ainda!
Daqueles círculos mômicos, daqueles círculos de chacota e de zumbaias, daqueles requebros de quadris obscenos, daquelas vertigens mórbidas e redomoinhos de corpos lassos, entorpecidos, suarentos, empoeirados, esfalfados; daquelas caras bestialmente cínicas, ignaras e negras, sem máscaras algumas, pintalgadas a cores vivas, a tatouages grosseiras; daqueles langores mornos e doentios de olhos suínos, de todos esses grilhões medonhos, de todo esse lodoso cárcere fatal eu ficava como uma sombra irremediavelmente presa dentro de outra sombra, querendo fugir dali por esforços inauditos e vãos, debatendo-me no vácuo contra esse golfo sem fundo, contra esses vórtices tremendos da matéria, de onde, no entanto, a minh'alma viera, cristalizada em essência, requintada numa imaculabilidade d'estrelas purificadas nos cadinhos celestes.
E a minh'alma circunvagava, ia e vinha alucinada, através de adormecidas zonas de sonho, oscilante como um pêndulo de pesadelos, numa aflita ondulação de nevroses, meio dividida entre a bárbara turba mascarada e meio dividida entre a natureza, circundante, cá e lá, guilhotinada misteriosamente pela mesma dor e pelo mesmo asco, cá e lá misturada, amalgamada e perdida em iguais misérias de sangue, lama e lágrimas, ainda e para sempre com o mesmo asco e com a mesma dor...