Aspiração (Machado de Assis, 1864)


ASPIRAÇÃO.
A F. X. de Novaes.
(1862.)



Sinto que ha na minh'alma um vacuo immenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que ha de triste e de real em mim;
Muita voz, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ella é,

E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes commoções da verde mocidade,
E responde sorrindo á cruel realidade.

Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nú, como a consciencia, abro-me aqui comtigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ella ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa communhão, sem carcere, sem veus,
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a gloria apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escriptas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,
Chora a patria celeste, o fóco, o centro, a luz,
Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz
No dia festival do grande livramento;
Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,
O torvo azar, e mais, a torva solidão,

Embaciam-lhe n'alma o espelho da illusão.
O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas
Da verde primavera as flores tão cuidadas;
Rasga, como Jesus, no caminho das dores,
Os lassos pés; o sangue humedece-lhe as flores
Mortas alli, — e a fé, a fé mãe, a fé santa,
Ao vento impuro e máo que as illusões quebranta
Na alma que alli se vae muitas vezes vacilla...

Oh! feliz o que póde, alma alegre e tranquilla,
A esperança vivaz o as illusões floridas,
Atravessar cantando as longas avenidas
Que levam do presente ao secreto porvir!
Feliz esse! Esse póde amar, gozar, sentir,
Viver emfim! A vida é o amor, é a paz,
É a doce illusão e a esperança vivaz;
Não esta do poeta, esta que Deus nos poz
Nem como inutil fardo, antes como um algoz.

O poeta busca sempre o almejado ideal...
Triste e funesto affan! tentativa fatal!
Nesta sede do luz, nesta fome de amor,
O poeta corre á estrella, á brisa, ao mar, á flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrella peregrina,


Quer-lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,
Ó inutil esforço! ó improbo lotar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,
Acha-se o nada, o torvo, o impassivel algoz!

Onde te escondes, pois, ideal da ventura?
Em que canto da terra, em que funda espessura
Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar?
Dos homens esquecido, em ermo recatado,
Que voz do coração, que lagrima, que brado
Do somno em que ora estás te virá despertar?

A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?
Jorra elle ainda além deste fundo horisonte
Quo a mente não calcula, e onde se perde o olhar?
Que azas nos déste, ó Deus, para transpôr o espaço?
Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:
Onde encontrar a mão que o venha desatar?

Creio que só em ti ha essa luz secreta,
Essa estrella polar dos sonhos do poeta,
Esse alvo, esse termo, esse mago ideal;

Fonte de lodo o ser e fonte da verdade,
Nós vamos para ti, e em tua immensidade
É que havemos de ter o repouso final.

É triste quando a vida, erma, como esta, passa;
E quando nos impelle o sopro da desgraça
Longe de ti, ó Deus, e distante do amor!
Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:
Succederá a gloria á salutar provança:
O que a terra não deu, dar-nos-ha o Senhor!