Uma noite havia reunião em casa de Valentim. Era puramente familiar. Meia dúzia de amigos e meia dúzia de parentes formavam toda a companhia. Às onze horas essa companhia estava reduzida a muito pequeno número.
Armou-se (para usar da expressão familiar), armou-se uma mesa de jogo em que Valentim tomou parte. Ernesto ao princípio não quis, estava amuado... Por quê? Parecia-lhe ver em Clarinha uma frieza a que não estava acostumado. Finalmente aceitou; mas procurou tomar lugar em frente da mulher de Valentim; ela, porém, ou fosse por indiferença ou fosse adrede, retirou-se para a janela com algumas amigas.
Abriu-se o jogo.
Em pouco tempo estavam os jogadores tão animados que as próprias senhoras foram-se aproximando do campo da batalha.
Os mais empenhados eram Valentim e Ernesto.
Tudo estava observando um curioso, mas tranqüilo interesse, quando de repente Valentim pára o jogo e diz para Ernesto:
— Não jogo mais!
— Por quê? perguntou Ernesto.
Um primo de Valentim, de nome Lúcio, olhou igualmente para Ernesto e disse:
— Tens razão.
— Por quê? insistiu Ernesto.
Valentim levantou-se, atirou as cartas para o lugar de Ernesto, e disse com um tom de desprezo:
— Por nada!
Lúcio e mais um dos presentes disseram:
— É caso de duelo.
Houve profundo silêncio. Lúcio olhou para Ernesto e perguntou-lhe:
— Que faz o senhor?
— Que faço?
— É caso de duelo.
— Ora, isso não está nos nossos hábitos... o que eu posso fazer é abandonar aquele senhor ao meu desprezo...
— O quê? perguntou Valentim.
— Abandoná-lo ao desprezo, porque o senhor é um...
— Um... quê?
— O que quiser!
— Há de dar-me uma satisfação!
— Eu?
— Decerto, disse Lúcio.
— Mas, os nossos hábitos...
— Em toda a parte vinga-se a honra!
— Sou o ofendido, tenho a escolha das armas.
— A pistola, disse Lúcio.
— Ambas carregadas, acrescentou Valentim.
Durante este tempo as senhoras estavam trêmulas e embasbacadas. Não sabiam o que se presenciava. Enfim, Clarinha pôde falar, e as suas primeiras palavras foram para o marido.
Mas este parecia não atender a nada. Em poucos minutos redobrou a confusão. Ernesto insistia contra o emprego do meio lembrado para resolver a questão, alegando que ele não estava nos nossos hábitos. Mas Valentim não queria, nem admitia outra coisa.
Depois de larga discussão admitiu Ernesto o sanguinolento desenlace.
— Pois sim, venha a pistola.
— E já, disse Valentim.
— Já? perguntou Ernesto.
— No jardim.
Ernesto empalideceu.
Quanto a Clarinha, sentiu faltar-lhe a luz e caiu desfalecida no sofá.
Aqui nova confusão.
Imediatamente prestaram-se-lhe os primeiros socorros. Tanto bastou. No fim de quinze minutos ela voltava à vida.
Estava então no quarto, onde só haviam o marido e um dos convivas que era médico.
A presença do marido lembrou-lhe o que se passara. Deu um leve grito, mas Valentim tranqüilizou-a imediatamente, dizendo:
— Nada houve...
— Mas...
— Nem haverá.
— Ah!
— Foi brincadeira, Clarinha, foi tudo um plano. O duelo há de haver, mas só para experimentar o Ernesto. Pois cuidas que eu faria semelhante coisa?
— Falas sério?
— Falo, sim.
O médico confirmou.
Valentim contou que as duas testemunhas já se entendiam com as duas do outro, tiradas todas dentre os que jogavam e que entravam no plano. O duelo teria lugar pouco depois.
— Ah! não acredito!
— Juro... juro por esta bela cabeça...
E Valentim inclinando-se para a cama beijou a testa da mulher.
— Oh! se tu morresses! disse esta.
Valentim olhou para ela: duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Que mais queria o marido?
Interveio o médico.
— Há um meio para crê-lo. Venham duas pistolas.
Clarinha levantou-se e foi para outra sala, que dava para o jardim e onde se achavam as outras senhoras.
Aí foram ter as pistolas. Carregaram-nas à vista de Clarinha e dispararam depois, a fim de assegurar à pobre senhora que o duelo era pura brincadeira.
Valentim desceu para o jardim. As quatro testemunhas levaram as pistolas. As senhoras, prevenidas do que havia, ficaram na sala, onde olhavam para o jardim, que foi iluminado de propósito.
Marcaram-se os passos e entregou-se a cada um dos combatentes uma pistola.
Ernesto, que até então parecia alheio à vida, mal viu diante de si uma arma, apesar de ter outra, mas tendo-lhe as testemunhas dito que ambas se achavam armadas,[1] começou a tremer.
Valentim apontou sobre ele. Ernesto fazia esforços, mas não conseguia levantar o braço. Estava ansiado. Fez sinal para que Valentim se detivesse, e tirou um lenço para enxugar o suor.
Tudo contribuía para assustá-lo, e de mais a mais as seguintes palavras que se ouviam em roda:
— O que ficar morto há de ser enterrado aqui mesmo no jardim.
— Está claro. Já se foi fazer a cova.
— Ah! que seja profunda!
Enfim, soaram as pancadas. À primeira Ernesto estremeceu, à segunda caiu-lhe o braço, e quando lhe diziam que apontasse o alvo para soar a terceira pancada, ele deixou cair a pistola no chão e estendeu a mão para o adversário.
— Prefiro dar a satisfação. Confesso que fui injusto!
— Como? prefere? disseram todos.
— Tenho razões para não morrer, respondeu Ernesto, e confesso que fui injusto.
As pazes foram feitas.
Uma gargalhada, uma só, mas terrível, porque foi dada por Clarinha, soou na sala. Voltaram todos para lá. Clarinha tomando as pistolas, apontou-as para Ernesto e disparou-as.
Houve então uma gargalhada geral.
Ernesto tinha o rosto mais enfiado deste mundo. Era um lacre.
Clarinha largou as pistolas e lançou-se nos braços de Valentim.
— Pois tu brincas com a morte, meu amor?
— Com a morte, pelo amor, sim!
Ernesto arranjou daí a dias uma viagem e nunca mais voltou.
Quanto aos nossos esposos, amaram-se muito e tiveram muitos filhos.