Chegou finalmente o dia marcado e esperado com impaciência por D. Mariana. Lucinda andava perturbada, e tanto que nem deu por um redobramento de tristeza que se tornava bem visível no rosto da sua amiga Adelaide, de quem ela se esquecia tanto. Adelaide primeiro fugira a escolhê-la para confidente, porque bem conhecia a sua índole sarcástica, e não queria expor os pobres passarinhos dos seus sonhos a terem a asa magoada por algum epigrama de Lucinda.
Mas pouco a pouco Adelaide sentiu-se despeitada, por ver que à sua boa amiga era tão completamente indiferente o estado do seu espírito. Adelaide, vendo isto, julgou-se a pessoa mais infeliz deste mundo; tinha na vida, negro o presente, o passado, e o futuro; o presente ensombrava-lho a ciosa preocupação da sua vida, o passado, onde ela se engolfava com júbilo quando a realidade da existência a torturava, enegrecera também com a indiferença de Lucinda, o futuro, esse devaneara-o ela bem dourado, e
bem cheio de luz, um sonho rápido e fragrante atravessara-lhe, e perfumara-lhe o viver... mas esvaíra-se bem ligeiro como sonho que era, tornando apenas com a sua luz fugitiva mais espessas as trevas, que voltaram de novo a enlutar-lhe a mocidade.
A amizade, que votava à sua companheira de colégio, e a profunda tristeza que a salteara, venceriam a resolução em que estava de conservar secreto tudo o que se passava no seu espírito, e o receio que tinha dos sarcasmos de Lucinda, se a indiferença desta não a ferisse mais do que todos os seus motejos. Mas Lucinda andava preocupada, Lucinda nem reparava na palidez da sua amiga. Vir ela passar um dia a sua casa, prometer ficar à noite; e não lhe dirigir durante esse tempo todo, mais de quatro ou cinco palavras, era uma coisa que a pobre Adelaidezinha não podia perceber, e ainda menos, a intimidade súbita que se estabelecera entre sua tia e a sua amiga. Nesse dia andou aquela toda azafamada a enfeitar-se, a pintar-se, a lustrar o cabelo, a dispor coquetemente a sala de visitas; Lucinda ajudava-a neste trabalho, e trocava com ela em voz baixa palavras misteriosas. Perguntou Adelaide, espantada de ver tantos preparativos, se se esperava alguém nessa noite, recebeu uma resposta seca das duas senhoras e a pobre menina, sufocada em soluços, e não podendo conter as lágrimas, refugiou-se, levando um livro, no seu caramanchão favorito. Aí desafogou, derramou prantos copiosos, nomeou-se, por decreto próprio, a mais infeliz de todas as mulheres, e pensou que estava abandonada por todos, e que, órfã desde a infância, era destino seu caminhar solitária no mundo.
Entretanto, descia a noite, e dia não pensava em voltar para casa. Lucinda, vagamente inquieta, não se tirava da janela. Apesar das palavras que Frederico dissera, ao receber a chave do jardim, Lucinda conhecia bastante a sua timidez orgânica (se assim podemos dizer) para supor que ele não ousaria nunca transpor o limiar da porta. Embebida nesses pensamentos, esquecera-se completamente de Adelaide, e do encargo que recebera de a entreter, enquanto durasse a entrevista. D. Mariana, enebriada por aquela inesperada aventura, colocava as velas de modo, que se conservasse na sala a tíbia luz, aconselhada por Garrett, a penumbra tão útil aos amantes, e duplamente útil, a quem só dispõe desse recurso para combater, com mais ou menos vantagem, os inconvenientes duma certidão de batismo, que já podia entrar na classe honrosa dos documentos históricos.
Lucinda, encostada à janela do seu quarto, cravava os olhos na escuridão, procurando distinguir o vulto elegante de Frederico. De vez em quando ia espreitar à porta da sala e ria-se. D. Mariana, sentada no canapé, vestida com o fato mais fresco e juvenil, esperava majestosamente a visita daquele a quem os seus encantos tinham rendido.
Afinal, Lucinda viu um homem que se dirigia, envolto numa capa escura, para a porta do jardim. As pulsações febris do seu coração indicaram-lhe, mais depressa do que a vista que era esse o vulto de Frederico.
A noite estava negra; mas um candeeiro de gás, iluminando em cheio a porta do jardim, permitia a Lucinda seguir todos os movimentos de Frederico. Viu-o hesitar, meter a chave na fechadura, tirá-la e afastar-se. Lucinda sorriu-se.
—Deita-a por cima do muro, e foge, murmurou ela.
Mas enganava-se: Frederico pareceu tomar uma resolução definitiva, tornou rapidamente a meter a chave na fechadura, abriu a porta e entrou no jardim.
— Está predestinado, murmurou Lucinda afastando-se da janela. Os seus tolos escrúpulos obrigam-no a enterrar-se até à cintura no tremedal do ridículo. E depois quem sabe? Talvez depois de reconhecer a qüinquagenária formosura da Calipso que vai abandonar, o punge mais os remorsos.
E Lucinda desatou a rir. Mas a reflexão veio, e uma sombra de melancolia se lhe espalhou no semblante.
—Esta minha índole zombeteira, murmurou ela, há de ser sempre um obstáculo à minha felicidade. Devo fazer penitência. O ridículo, a que expus os dois atores da cena que se vai passar na sala, é enorme. Eu não o perdoava. Perdoá-lo-á Frederico? Perdoa de certo, perdoa e com que júbilo, em sabendo o motivo que me guiou! Mas não devo deixar passar uma noite sobre o seu ressentimento. Agora mesmo, agora ando esse D. Quixote de donzelas cinqüentonas estar mal-ferido da sua justa cortês, farei como Altisidora, ousarei pôr de parte o pudor feminino para lhe dizer "Amo-te" e para o consolar com essa palavra só do encantamento da nova Dulcinéia.
E a travessa rapariga, desatando a rir, desceu a escada que ia ter ao jardim.
Não havia ainda luar como dissemos, porém, enquanto não surgia a rainha da noite no seu carro triunfal de madre-pérola, as estrelas cintilavam com vivíssima luz no céu azul, e insinuavam os seus raios d'ouro pálido por entre a folhagem das árvores, que a brisa meneava.
Lucinda esteve alguns instantes cismando tristemente. A coquettelamentava talvez o ter-se enleado, para conseguir o seu fim, nesse tão complicado enredo, que afinal a nada remediara, porque se via obrigada a dar o primeiro passo, exatamente como se não tivesse ideado tantas combinações maquiavélicas para obrigar esse tímido César, que podia chegar, ver e vencer, a passar o Rubicão.
Nisto um vulto de homem apareceu, vindo do lado da habitação, cosendo-se com os troncos d'árvores, mas fugindo ligeiramente. Devia ser Frederico.
Lucinda avançou para ele, com o coração a pulsar-lhe violentamente.
— Frederico! balbuciou ela.
O homem parou.
Sou eu, sou Lucinda, continuou a ousada menina nesse momento mais tímida do que ele, eu que venho expiar a minha culpa, e fazer-lhe a confissão que me absolve. Sim di-lo-ei, sem temer que me acusem de imodesta: "Amo-o".
E as suas mãos procuravam as de Frederico. Mas coisa notável, ou mãos deste se lhe esquivavam, ou D. Mariana, arranjando uma variante à mulher de Putifar, em vez de lhe arrancar a capa, lhe arrancara as mãos.
Mas quando Lucinda passava do espanto à cólera, recebeu um impulso violento que a fez ir, cambaleando, segurar-se a um ramo de jasmineiro, e ouviu uma voz grosseira e avinhada, que lhe dizia;
— Você, além de ser descarada, é ladra também? Dize-me ternuras, minha Filis, mas larga os tímidos voláteis.
Lucinda soltou um grito terrível, e fugiu como louca na direção de casa. A esse grito somaram-se passos precipitados, que vinham do fundo do jardim. Um outro homem lançou-se às goelas do interlocutor de Lucinda, e uma outra voz'juvenil de senhora começou a bradar por socorro.
A este barulho correram os criados e destrancaram-se as portas, o jardim inundou-se de luz. D. Mariana apareceu com esplendida toilette àporta de casa, o causador deste tumulto fugiu por cima do muro, deixando os seus despojos nas mãos do seu contendor, e Lucinda, que ficara ofegante à sombra de uma alta figueira que se aferrava ao muro, pode ver, com doloroso espanto, a seguinte cena.
Frederico vitorioso, mas vermelho de cólera e vergonha, tinha nas mãos, como troféus da sua glória, duas galinhas. A pouca distância estava Adelaide escondendo o rosto nas mãos. D. Mariana ficara como que petrificada, os criados riam e segredavam.