VIII. NA FAZENDA
A essa hora, já a viagem era mais agradável. Corria uma viração suave. Animavam-se os campos; e viam-se, de quando em quando, ao longo do caminho, rebanhos pastando. A cada instante, da relva que atapetava a senda, ou das árvores que a bordavam, voava um pássaro, espantado com a aproximação dos animais.
Agora, os viajantes, depois de subir uma pequena ladeira, chegaram a um tabuleiro alto, plano, extenso, por onde a estrada se estendia quase em linha reta. A subida fora por um terreno áspero, avermelhado, semeado de pedrinhas brancas, alisadas e redondas, como as que forram o leito dos rios. De distância em distância, via-se uma moita mais elevada, um capão de mato, algumas árvores secas: tudo mais era capim rasteiro, enfezado, de folhas duras e peludas. Os animais marchavam num passo seguro e igual; e o bater das suas ferraduras no chão duro produzia um ruído cadenciado.
Iam calados os três viajantes. Benvindo esticava o pescoço, e olhava para a frente, como quem quer descobrir alguma cousa. Alfredo, entretido, contemplava o campo, e o céu coberto de nuvens vermelhas. Carlos, pensando sempre na moléstia do pai, ia concentrado e apreensivo.
Foi o camarada quem, de repente, rompeu o silêncio:
— Estamos perto!
O sol acabava de desaparecer no horizonte. Os viajantes acharam-se defronte de uma cancela ou porteira de bater. Benvindo adiantou o animal, abriu-a e ficou a segurá-la, enquanto os dois irmãos passavam.
— Estamos no pasto do capitão Paulo, — disse ele. — Ali, naquela casa, é que vamos pousar.
A casa ficava a uns trezentos metros de distância, bem visível, ao fundo do terreno chato.
Logo ao entrar, Alfredo assustou-se, e não pôde disfarçar o susto. O terreno estava cheio de bois, uns deitados, outros de pé, ruminando. Mas os animais ficaram como estavam, limitando-se a acompanhar os recém-chegados com os seus grandes olhos pensativos e mansos. Dez minutos depois, os três viajantes batiam à porta da casa. Era um casarão de aspecto feio, largo e baixo, com um telheiro ao lado, e um copiar na frente. Apareceu uma criada, que, reconhecendo Benvindo, foi logo chamar o dono da casa, que se não demorou, — um homem de fisionomia franca e agradável, apesar da sua aparente severidade, — e ainda robusto, apesar dos cinqüenta e tantos anos que devia ter. Entrou, dando as boas noites e, olhando Carlos, pareceu logo reconhecê-lo. O rapaz, por sua vez, assim que o viu, exclamou:
— Oh! Senhor Silveira! O senhor não é pai do Ramiro e do Afonso?
— Sim, sim... Agora reconheço que já o vi no Recife... O senhor não é um mocinho que o Ramiro me apresentou, em Março, quando estive no colégio?
— Sou eu mesmo. Sou muito amigo do Ramiro.
— E é seu irmão, este? E que é que fazem por aqui?
Carlos contou-lhe então toda a dolorosa história da sua viagem. Mas antes que ele acabasse, já o capitão Paulo da Silveira tinha mandado recolher os animais, e dera todas as providências para que os rapazes e o camarada fossem bem hospedados. Mostrando uma verdadeira solicitude, um grande interesse, chamou a mulher, e a filha já moça, e apresentou-lhes os rapazes:
— São colegas e amigos dos meninos... Vocês hão de ter fome, vamos comer alguma cousa!
Por mais que alegassem falta de apetite, Carlos e Alfredo tiveram de sentar-se à mesa farta onde ficaram conversando. A mulher do capitão, assim que soube que eles não traziam bagagem, e vinham sem outra qualquer roupa além da que vestiam, foi procurar, entre os vestuários dos filhos, alguns que lhes pudessem servir. Felizmente, Ramiro e Afonso eram quase da mesma idade de Carlos e Alfredo: de maneira que cada um destes recebeu duas mudas de roupa.
O aspecto sério e tristonho de Carlos inquietava o capitão , que começou a conversar com ele, como se conversasse com um homem feito, — impressionado pelo seu bom senso e pelas suas maneiras polidas. Pedia-lhe notícias dos filhos, informava-se sobre o seu adiantamento e sobre o seu proceder. Ficava satisfeito com as novas que Carlos lhe dava; via-se bem que tanto ele, como a mulher, estavam cheios de saudade dos pequenos. Enquanto conversavam os dois, Alfredo, que nunca até então se metera em cavalarias altas de viagem, já cabeceava, tomado de fadiga e sono. Mas, de repente, estremeceu, e espertou, ouvindo o som de uma viola, e logo depois o ruído de um pandeiro e vozes que cantavam.
— Que é isto? Onde é?
— É algum samba que o Benvindo já está arranjando lá em baixo! — disse o capitão. — O Benvindo morre por um samba... Querem ver? Vamos até lá. Eu confesso que não gosto muito disso, porque é brincadeira que às vezes acaba em barulho... Ainda há pouco tempo, teve de vir aqui um delegado da Limeira, para fazer o corpo de delito num rapaz que saiu ferido do samba... Mas, coitados! É o único divertimento que têm!
E levou consigo os dois meninos.
Por trás da casa da fazenda, corria uma fila de casinhas da taipa, com uma só porta. Em frente a elas, num terreiro batido e limpo, estavam reunidas umas vinte pessoas, quase todos homens, — pretos, caboclos e mulatos. Formavam círculo, uns sentados no chão, outros sobre os calcanhares, ou firmando na terra os joelhos e as pontas dos pés. No centro do círculo, o Benvindo sentado sobre uma pedra, empunhava a viola. Ao lado, de pé, um mulato, talvez de vinte anos de idade, rufava o pandeiro. Os dois cantavam em desafio. Uma fogueira, acesa a pequena distância, espancava as trevas, e alumiava a cena pitoresca.
O mulato cantou:
Já chegou, já está cantando:
Canta no seco e na lama;
Caboclo, tome sentido!
Quero ver a sua fama!
Benvindo respondeu logo, na mesma toada:
Quero ver a sua fama,
Diz você; pois há de ver:
Mulato, chegou seu dia,
Você tem de padecer.
E o mulato continuou, torcendo-se todo, caindo para um e outro lado, e acompanhando com o corpo o compasso do pandeiro:
Você tem de padecer...
Quem de nós padecerá?
Caboclo a mim não me espanta,
Nem mesmo do Ceará!
— Oh! José! — gritou o capitão. — Então vocês não dançam? Dancem um pouco, que estes moços querem ver!
— Formem a roda! — bradou o José — formem a roda!
— Quem tira? — perguntou um outro.
— Teresa! Teresa, tira o samba!
Levantaram-se todos. O Benvindo acomodou-se a um lado, com a sua viola. Formaram uma larga roda. No meio, apareceu uma crioula, moça e franzina, bonita, e começou a cantar com uma vozinha fraca, mas afinada:
Eia, negro ateimoso:
O boi é preto, valeroso, guadimá,
Fui ao mato, tirei pau fiz um bodoque,
Mandei balas a galope
No peito do sabiá...
Todos responderam, em coro, cantando a mesma trova. A crioula cantava dançava, dentro da roda, sapateando, com um passinho miúdo, acompanhando o ritmo da música, dando voltas e reviravoltas e castanholando com os dedos. Quando ela acabava de cantar uma trova, o coro a repetia. Depois a dançarina aproximou-se de um dos parceiros da roda, dançando sempre, chamando-o, vindo os dois dançar no centro do círculo, um defronte do outro, — e retirou-se, cedendo o lugar a outra pessoa.
— Bem! — disse Carlos. — Já vimos bastante. Vamos dormir, Alfredo, que devemos partir cedinho...
Dormiram. E, quando nasceu o sol, já estavam prontos para partir, levando roupas, um farto farnel, e muitos abraços e desejos de felicidade.