XXXVII. QUEM NÃO PODE TRAPACEIA
Ia alto o dia, quando entrou no quarto um dos criados, trazendo um pequeno pedaço de carne, um pouco de farinha, e uma banana; — já Juvêncio estava completamente transformado, calmo, e quase alegre. Espantou-se o criado, ao verificar aquela mudança, e ia abrir a boca para interrogar o rapaz, quando este lhe disse, no tom mais natural:
— Ouça! Diga ao seu patrão que estou disposto a confessar tudo. Ele que venha cá, se quer saber onde estão os seus cavalos.
— Mas, menino! — exclamou o homem, indignado — você ainda agora não jurava que era inocente?!
Doeu-se Juvêncio, vendo-se assim tratado por mentiroso e hipócrita: esteve para contar o que pretendia fazer — todo o seu plano de salvação. Mas receou perder-se, e suportou com resignação a imerecida ofensa.
Momento depois, entrava no quarto o coronel, sempre áspero e antipático, mas com a fisionomia denotando a mais viva curiosidade.
— Ah! Velhaco! Sempre te decidiste a confessar? Ora vamos a isso! Então, os meus cavalos?
— Sr. Coronel! — começou o rapaz, procurando dar à voz um tom natural — confessarei; mas peço-lhe que me proteja, porque aqueles malvados, se sabem que eu os traí, são capazes de matar-me...
— Não tenhas medo!
— Não sou filho de algum daqueles homens...
O coronel franziu a testa...
— ...Sou sobrinho de um deles.
E estavas em companhia deles, quando me furtaram os cavalos?
— Não, senhor. Eu estava guardando outros dois cavalos, perto do Angico, e esperando um outro companheiro, que tinha ido a Vila Nova.
Já se interessava o coronel...
Juvêncio prosseguiu:
— Nós somos de Pernambuco. Já andamos por aqui três vezes. Eles são quatro...
— São quatro? — interrogou, ansioso, o fazendeiro.
Juvêncio, obedecendo ao plano que formara, continuou a contar o seu romance, todo inventado:
— São quatro. Quando aqui estiveram, das outras vezes, furtaram seis cavalos, passaram o rio São Francisco, abaixo de Juazeiro, e foram vender os animais em Pernambuco, lá para os lados do Triunfo. Agora, naturalmente, vão fazer o mesmo. Andamos por estas bandas há uns dez dias...
e descreveu minuciosamente a viagem, de Juazeiro até ali, para provar que dizia a verdade. Depois:
— Chegando aqui, trataram de saber quais os animais que poderiam furtar. O primeiro animal furtado foi uma besta muito boa, que encontraram no Angico. Saíram com ela, mas a besta fugiu. Seguiram então dois, o Pedroso e o Texugo, para os lados de Vila Nova. Viram bem o que podiam roubar aí, e voltaram para combinar com os outros o ponto de encontro.
“Enquanto esses andavam por lá, meu tio e o Zé Mano escolheram no mato um lugar em que pudessem armar um rancho; o lugar escolhido fica légua e meia para cá do Angico, junto do caminho que vai do Riachinho para o Angico e segue depois para o Juazeiro.
Ao dizer isto, Juvêncio não falava no ar; referia-se ao caminho por onde viera e descrevia lugares que bem conhecia. Lembra-se daquele mato em que entrara, havia dois dias, para beber, e via na memória todo o local: a grande volta do caminho, o trilhozinho por onde viera até o ribeirão, o passo que aí havia, a clareira, e o outro trilho por onde saíra até a estrada.
— E você não foi com eles? — perguntou o fazendeiro.
— Desta vez fui. Depois de escolhido o lugar para o rancho, voltaram para o Angico, e lá esperaram os outros que tinham ido a Vila Nova. Chegaram no dia seguinte, trazendo dois cavalos: um é o que está aqui, e o outro é um “ruço”, em que meu tio ia montado. Meu tio, que é o chefe do banco, indicou-lhes bem o lugar em que tinha feito o rancho; separamo-nos, anteontem, pela madrugada. Meu tio e o Zé Mano vieram furtar os animais daqui, enquanto o Pedroso e o Texugo foram ver se furtavam mais alguns adiante de Vila Nova.
— E você?
— Fiquei, com os dois cavalos já furtados, em uma capoeira alta, que há perto do Riachinho. Meu tio e o Zé Mano foram Ter comigo na noite de anteontem para ontem. E íamos recolher os animais ao rancho, quando fomos apanhados na estrada...