A obra seguinte foi representada ao excelente Príncipe e muito poderoso Rei Dom João III, endereçada às matinas do Natal, na era do Senhor, 1534.
Figuras:
- A Virgem
- Paio Vaz
- Prudência
- Pessival
- Pobreza
- Mofina Mendes
- Humildade
- Braz Carrasco
- Fé
- Barba Triste
- Anjo Gabriel
- Tibaldinho
- S. José
- Anjos.
Entra primeiramente um Frade, e a modo de pregação diz o que se segue:
Frade:
- Três coisas acho que fazem
- ao doido ser sandeu:
- uma ter pouco siso de seu,
- a outra, que êsse que tem
- não lhe presta mal nem bem:
- e a terceira,
- que endoidece em grã maneira,
- é o favor (livre-nos Deus)
- que faz do vento cimeira,
- e do toutiço moleira,
- e das ondas faz ilhéus.
- Diz Francisco de Mairões,
- Ricardo e Bonaventura,
- não me lembra em que escritura,
- nem sei em quais distinções,
- nem a cópia das razões;
- mas o latim
- creio que dizia assim:
- Nolite vanitatis debemus con lidere de
- his, qui capita sua posuerunt in
[manibus ventorum etc.
- Quer dizer êste matiz
- entre os primores que traz:
- não é sisudo o juiz
- que tem jeito no que diz
- e não acerta o que faz.
- Diz Boécio - de consolationis,
- Origines - Marci Aureli,
- Sailustius - Catilinarium,
- Josefo - speculum beili,
- glosa interliniarum;
- Vicentius - scala coeli,
- magister sententiarum,
- Demosthenes, Calistrato;
- todos êstes concertaram
- com Scoto, livro quarto.
- Dizem: não vos enganeis,
- letrados de rio torto,
- que o porvir não no sabeis,
- e quem nisso quer pôr péis
- tem cabeça de minhoto.
- O bruto animal da serra,
- ó terra filha do barro,
- como sabes tu, bebarro,
- quando há-de tremer a terra,
- que espantas os bois e o carro?
- - pelos quais dixit Anselmus,
- e Seneca, - Vandaliarum,
- e Plinius - Choronicarum,
- et ta,nen glosa ordinaria
- et Alexander - de aliis,
- Aristoteles - de secreta secretorum:
- Albertus Magnus,
- Tuilius Ciceronis,
- Ricardus, Ilarius, Remigius,
- dizem, convém a saber:
- se tens prenhe tua mulher
- e por ti o compuseste,
- queria de ti entender
- em que hora há-de nascer,
- ou que feições há-de ter
- êsse filho que fizeste.
- Não no sabes, quanto mais
- cometerdes falsa guerra,
- presumindo que alcançais
- os secretos divinais
- que estão debaixo da terra,
- pelo qual diz Quintus Curtius,
- Beda - de religione christiana,
- Thomas - super trinitas alternati,
- Agustinus - de angelorum choris,
- Hieronimus - d'alphabetus hebraice,
- Bernardus - de virgo assumptionis,
- Remigius - de dignitate sacerdotum.
- Êstes dizem juntamente
- nos livros aqui alegados:
- se filhos haver não podes,
- nem filhas por teus pecados,
- cria dêsses enjeitados,
- filhos de clérigos pobres.
- Pois tens saco de cruzados,
- lembre-te o rico avarento,
- que nesta vida gozava
- e no inferno cantava:
- água, Deus, água,
- que lhe arde a pousada.
- Mandaram-me aqui subir
- neste santo anfiteatro,
- para aqui introduzir
- as figuras que hão-de vir
- com todo seu aparato.
- É de notar
- que haveis de considerar
- isto ser contemplação
- fora da história geral,
- mas fundada em devoção.
- A qual obra é chamada
- os mistérios da Virgem,
- que entrará acompanhada
- de quatro Damas, com quem
- de menina foi criada:
- a uma chamam Pobreza,
- outra chamam Humildade;
- damas de tanta nobreza,
- que tôd'alma que as preza
- é morada da Trindade.
- À outra, terceira delas,
- chamam Fé por excelência;
- à outra chamam Prudência,
- e virá a Virgem com elas,
- com mui formosa aparência:
- será logo o fundamento
- tratar da saüdação,
- e depois dêste sermão
- um pouco do nascimento;
- tudo por nova invenção.
- Antes disto que dissemos,
- virá com música orfea
- Domine labia mea,
- e Venite adoremus
- vestido com capa alhea.
- Trará Te Deum laudamus
- d'escarlata uma libré:
- Jam lucis orto sidere
- cantará o benedicamus,
- pela grã festa que é.
- Quem terra, pontus, aethera
- virá muito assossegado
num sendeiro mal pensado
- e num gibão de tafetá
- e uma gorra de orelhado.
Neste passo entra Nossa Senhora, vestida como rainha, com as ditas donzelas, e diante quatro anjos com música: e depois de assentadas, começam cada uma de estudar por seu livro, e diz
Virgem:
- Que ledes, minhas criadas?
- Que achais escrito aí?
Prudência:
- Senhora, eu acho aqui
- grandes coisas inovadas,
- e mui altas para mi.
- Aqui a Sibila Ciméria
- diz que Deus será humanado
- de uma virgem sem pecado,
- que é profunda matéria
- para meu fraco cuidado.
Pobreza:
- Erutea profetisa
- diz aqui também o que sente:
- que nascerá pobremente,
- sem cueiro nem camisa,
- nem coisa com que se aquente
Humildade:
- E o profeta Isaias
- fala nisto também cá:
- eis a Virgem conceberá
- e parirá o Messias,
- e flor virgem ficará.
Fé:
- Cassandra deI-rei Priamo
- mostrou essa rosa frol
- com um menino a par do sol
- a César Otaviano,
- que o adorou por Senhor
Prudência:
- Rubum quem viderat Moïsen
- sarça, que no êrmo estava,
- sem lhe pôr lume ninguém;
- o fogo ardia mui bem,
- e a sarça não se queimava.
Fé:
- Significa a Madre de Deus:
- esta sarça é ela só;
- e a escada que vio Jacó,
- que subia aos altos céus,
- também era de seu vó.
Prudência:
- Deve de ser por razão
- de tôdas perfeições cheia
- tôda, quem quer que ela é.
Num.:
- Aqui a chama Salomão
- tota pulebra arnica mea,
- et macula non est in te.
- E diz mais, que é porta coeil
- et electa ut sol,
- bálsamo mui oloroso,
- pulchra ut lilium gracioso
- das flôres mais linda flor,
- dos campos o mais formoso:
- chama-se plantatio rosa,
- nova oliva speciosa,
- mansa columba Noe,
- estrêla a mais lumiosa.
Prudência:
- Et acies ordinata,
- formosa filha d'el-rei
- de Jacó, et tabernacula
- speculum sine macula,
- ornata civitas Dei.
Fé:
- Mais diz ainda Salomão:
- Hortus conclusus, fios hortorum,
- medecina peccatorum,
- direita vara de Arão,
- alva sôbre quantas foram,
- santa sôbre quantas são.
- E seus cabelos polidos
- são formosos em seu grado
- como manadas de gado,
- e mais que os campos floridos
- em que anda apacentado.
Prudência:
- É tão zeloso o Senhor,
- que quererá o seu estado
- dar ao mundo por favor,
- por uma Eva pecador,
- uma virgem sem pecado
Virgem:
- Oh! se eu fôsse tão ditosa
- que com êstes olhos visse
- senhora tão preciosa,
- tesouro da vida nossa,
- e por escrava a servisse!
- Que onde tanto bem se encerra,
- vendo-a cá entre nós,
- nela se verão os céus,
- e as virtudes da terra
- e as moradas de Deus.
Neste passo entra o anjo Gabriel, dizendo:
Gabriel:
- Oh! Deus te salve, Maria,
- cheia de graça graciosa,
- dos pecadores abrigo!
- Goza-te com alegria,
- humana e divina rosa,
- porque o Senhor é contigo.
Virgem:
- Prudência, que dizeis vás?
- que eu muito turbada sou;
- porque tal saüdação
- não se costuma entre nós.
Prudência:
- Pois que é auto do Senhor,
- senhora, não esteis turbada;
- tornai em vossa color,
- que, segundo o embaixador,
- tal se espera a embaixada.
Gabriel:
- Ó Virgem, se ouvir me queres,
- mais te quero inda dizer:
- benta és tu em mereceres
- mais que tôdas as mulheres,
- nascidas e por nascer.
Virgem:
- Que dizeis vós, Humildade?
- - que êste verso vai mui fundo,
- porque eu tenho por verdade
- ser em minha qualidade
- a menos cousa do mundo.
Humildade:
- O Anjo, que dá o recado,
- sabe bem disso a certeza.
- Diz Davi, no seu tratado,
- qu'êsse esprito assim humilhado
- é cousa que Deus mais preza.
Gabriel:
- Alta Senhora, saberás
- que tua santa humildade
- te deu tanta dignidade,
- que um filho conceberás
- da divina Eternidade.
- Seu nome será chamado
- Jesus e Filho de Deus;
- e o teu ventre sagrado
- ficará horto cerrado,
- e tu - Princesa dos Céus
Virgem:
- Que direi, Prudência minha?
- a vós quero por espelho.
Prudência:
- Segundo o caso caminha,
- deveis, Senhora Rainha,
- tomar com o Anjo conselho
Virgem:
- Quomodo fiat istud,
- quoniam virum non cognosco?
- porque eu dei minha pureza
- ao Senhor, e meu poder,
- com tôda minha firmeza
Gabriel:
- Spiritus sanctus superveniet in te;
- e a virtude do Altíssimo,
- Senhora, te cobrirá;
- porque seu filho será,
- e teu ventre sacratíssimo
- por graça conceberá.
Virgem:
- Fé, dizei-me vosso intento,
- que êste passo a vós convém.
- Cuidemos nisto mui bem,
- porque a meu consentimento
- grandes dúvidas lhe vêm.
- Justo é que imagine eu,
- e que estê muito turbada:
- querer quem o mundo é seu,
- sem merecimento meu,
- entrar em minha morada,
- e uma suma perfeição,
- de resplendor guarnecido,
- tomar para seu vestido
- sangue do meu coração,
- indigno de ser nascido!
- E aquêle que ocupa o mar,
- enche os céus e as profundezas,
- os orbes e redondezas;
- em tão pequeno lugar
- como poderá estar
- a grandeza das grandezas!
Gabriel:
- Porque tanto isto não peses,
- nem duvides de querer,
- tua prima Elisabete
- é prenhe, e de seis meses.
- E tu, Senhora, hás-de crer
- que tudo a Deus é possível,
- e o que é mais impossível,
- lhe é o menos de fazer.
Virgem:
- Anjo, perdoai-me vós,
- que com a Fé quero falar:
- pedirei sinal dos Céus
Fé:
- Senhora, o poder de Deus
- não se há-de examinar.
- Nem deveis de duvidar,
- pois sois dêle tão querida
Gabriel:
- E d'abinitio escolhida,
- e manda-vos convidar,
- para madre vos convida
Virgem:
- Ecce ancilia Domini,
- faça-se sua vontade
- no que sua Divindade
- mandar que seja de mi,
- e de minha liberdade
Neste passo se vai o Anjo Gabriel, e os anjos à sua partida tocam seus instrumentos, e cerra-se a cortina. Juntam-se os pastôres para o tempo do nascimento. Entra primeiro André e diz:
André:
- Eu perdi, se s'acontece,
- a asna ruça de meu pai.
- O rasto por aqui vai,
- mas a burra não parece,
- nem sei em que vale cai.
- Leva os tarros e apeiros,
- e o surrão cos chocalhos,
- os samarros dos vaqueiros,
- dois sacos de páes inteiros,
- porros, cebolas e alhos.
- Leva as peas da boiada,
- as carrancas dos rafeiros,
- e foi-se a pascer folhada,
- porque bêsta despeada
- não pasce nos sovereiros.
- E se ela não parecer
- até por noite fechada,
- não temos hoje prazer,
- que na festa sem comer
- não há i gaita temperada.
Entra Paio Vaz e diz:
Paio Vaz:
- Mofina Mendes é cá
- c'um fato de gado meu?
André:
- Mofina Mendes ouvi eu
- assoviar, pouco há,
- no vale de João Viseu
Paio Vaz:
- Nunca esta môça sossega,
- nem samica quer fortuna:
- anda em saltos como pêga,
- tanto faz, tanto trasfega,
- que a muitos importuna.
André:
- Mofina Mendes quanto há
- que vos serve de pastôra?
Paio Vaz:
- Bem trinta anos haverá,
- ou creio que os faz agora;
- mas sossêgo não alcança,
- não sei que maleita a toma:
- ela deu o saco em Roma
- e prendeu el-rei de França;
- agora andou com Mafoma
- e pôs o turco em balança.
- Quando cuidei que ela andava
- co meu gado onde soia,
- pardeus! Ela era em Turquia,
- e os turcos amofinava,
- e a Carlos César servia.
- Diz que assim resplandecia
- neste capitão do céu,
- a vontade que trazia,
- que o turco esmoreceu
- e a gente que o seguia.
- Receou a guerra crua
- que o César lhe prometia;
- entonces per aliam viam
- reverte sunt in patria sua
- com quanta gente trazia.
Entra Pessival.
Pessival:
- Achaste a tua burra, André?
André:
- Bofá não.
Pessival:
- Não pode ser.
- Busca bem, deixa o fardel,
- que a burra não era mel,
- que a haviam de comer.
André:
- Saltariam pêgas nela
- por causa da matadura.
Pessival:
- Pardeus! Essa seria ela!
- E que pêga seria aquela
- que lhe tire a albardadura?
Paio Vaz:
- Mas crê que andou por aí
- Mofina Mendes, rapaz;
- que, segundo as cousas faz,
- se isto não fôr assi,
- que não seja eu Paio Vaz.
- Ora chama tu por ela,
- e aposto-te a carapuça
- que a negra burra ruça
- Mofina Mendes deu nela.
André:
- Mofina Mendes! Ah Mofina Men!
Mofina Mendes:
- Que queres, André? Que hás?
(de longe)
André:
- Vem tu cá, e vê-lo-ás;
- e se hás-de vir, logo vem,
- e acharás aqui também
- a teu amo Paio Vaz.
Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz:
Paio Vaz:
- Onde deixas a boiada
- e as vacas, Mofina Mendes?
Mofina Mendes:
- Mas, que cuidado vós tendes
- de me pagar a soldada
- que há tanto que me retendes?
Paio Vaz:
- Mofina, dá-me conta tu
- onde fica o gado meu.
Mofina Mendes:
- A boiada não vi eu,
- andam lá não sei por u,
- nem sei que pacigo é o seu.
- Nem as cabras não nas vi,
- samicas cos arvoredos;
- mas não sei a quem ouvi
- que andavam elas por i
- saltando pelos penedos.
Paio Vaz:
- Dá-me conta rês e rês,
- pois pedes todo teu frete.
Mofina Mendes:
- Das vacas morreram sete,
- e dos bois morreram três.
Paio Vaz:
- Que conta de negregura!
- Que tais andam os meus porcos?
Mofina Mendes:
- Dos porcos os mais são mortos
- de magreira e má ventura.
Paio Vaz:
- E as minhas trinta vitelas
- das vacas, que te entregaram?
Mofina Mendes:
- Creio que i ficaram delas,
- porque os lobos dizimaram,
- e deu ôlho mau por elas,
- que mui poucas escaparam.
Paio Vaz:
- Dize-me, e dos cabritinhos
- que recado me dás tu?
Mofina Mendes:
- Eram tenros e gordinhos,
- e a zorra tinha filhinhos
- e levou-os um e um.
Paio Vaz:
- Essa zorra, essa malina,
- se lhe correras trigosa,
- não fizera essa chacina,
- porque mais corre a Mofina
- vinte vêzes que a raposa.
Mofina Mendes:
- Meu amo, já tenho dada
- a conta do vosso gado
- muito bem, com bom recado;
- pagai-me minha soldada,
- como temos concertado.
Paio Vaz:
- Os carneiros que ficaram,
- e as cabras, que se fizeram?
Mofina Mendes:
- As ovelhas reganharam,
- as cabras engafeceram,
- os carneiros se afogram,
- e os rafeiros morreram.
Pessival:
- Paio Vaz, se queres gado,
- dá ao demo essa pastôra:
- paga-lhe o seu, vá-se embora
- ou má-hora, e põe o teu em recado.
Paio Vaz:
- Pois Deus quer que pague e peite
- tão daninha pegureira,
- em pago desta canseira
- toma êste pote de azeite
- e vai-o vender à feira;
- e quiçais medrarás tu
- o que eu contigo não posso.
Mofina Mendes:
- Vou-me à feira de Trancoso
- logo, nome de Jesu,
- e farei dinheiro grosso.
- Do que êste azeite render
- comprarei ovos de pata,
- que é a coisa mais barata
- que eu de lá posso trazer;
- e êstes ovos chocarão;
- cada ovo dará um pato,
- e cada pato um tostão,
- que passará de um milhão
- e meio, a vender barato.
- Casarei rica e honrada
- por êstes ovos de pata,
- e o dia que fôr casada
- sairei ataviada
- com um brial de escarlata,
- e diante o desposado,
- que me estará namorando:
- virei de dentro bailando
- assim dest'arte bailado,
- esta cantiga cantando.
Estas cousas diz Molina Mendes com o pote de azeite à cabeça e, andando enlevada no baile, cai-lhe, e diz:
Paio Vaz:
- Agora posso eu dizer,
- e jurar, e apostar,
- que és Mofina Mendes tôda.
Pessival:
- E s'ela bailava na boda,
- qu'está ainda por sonhar,
- e os patos por nascer,
- e o azeite por vender,
- e o noivo por achar,
- e a Mofina a bailar;
- que menos podia ser?
Vai-se Molina Mendes, cantando.
Mofina Mendes:
- Por mais que a dita me enjeite,
- pastôres, não me deis guerra;
- que todo o humano deleite,
- como o meu pote de azeite,
- há-de dar consigo em terra?
Entram outros pastôres, cujos nomes são: Braz Carrasco, Barba Triste e Tibaldinho; e diz:
'Braz Carrasco:
- O Pessival meu vizinho!
Pessival:
- João Carrasco, dize, - viste
- a burra dêsse outeirinho?
Braz Carrasco:
- Pergunta tu a Tibaldinho,
- ou pergunta a Barba Triste,
- ou pergunta a João Calveiro.
Joã.:
- O fato trago eu aqui,
- e a burra eu a meti
- na côrte do Rabileiro.
- Nós deitemo-nos por ai.
- Andamos todos cansados,
- O gado seguro está:
- e nós aqui abrigados
- durmamos senhos bocados,
- que a meia-noite vem já.
Neste passo se deitam a dormir os pastôres; e logo se segue a segunda parte, que é uma breve contemplação sôbre o Nascimento.
- O cordeiro divinal,
- precioso verbo profundo,
- vem-se a hora
- em que teu corpo humanal
- quer caminhar pelo mundo.
- Desde agora
- sairás ao campo mundano
- a dar crua e nova guerra
- aos imigos,
- e glória a Deus soberano
- In excelsis et in terra
- pax hominibus.
- Sairá o nobre Leão,
- rei da tribo de Judá,
- Radix David;
- o duque da promissão
- como espôso sairá
- do seu jardim.
- E o Deus dos anjos servido,
- sanctus, sanctus, sem cessar
- lhe cantando,
- vereis em palhas nascido
- suspirando.
- E porque a noite é quase meia,
- e são horas que esperemos
- seu nascer,
- ide, Fé, por essa aldeia
- acender esta candeia,
- pois outras tochas não temos
- que acender; e sem serdes perguntada,
- nem lhes vir pela memória,
- direis em cada pousada
- qu'esta é a vela da glória.
Neste passo José e a Fé vão acender a candeia, e a Virgem com as Virtudes, de joelhos, a versos rezam êste
SALMO
Virgem:
- Ó devotas almas félis,
- para sempre sem cessar
- Laudate Dominum de coelis,
- Laudate eum in excelsis,
- quanto se pode louvar.
Prudência:
- Louvai, anjos do Senhor,
- ao Senhor das altezas,
- e tôdalas profundezas,
- louvai vosso criador com tôdas suas grandezas.
Humildade:
- Lauda te eum, Sol et Luna,
- laudate eum, stella et lumen,
- et lauda Hierusalem,
- ao Senhor que te enfuna
- neste portal de Belém.
Virgem:
- Louvai o Senhor dos céus,
- louvai-o, água das águas,
- que sôbre os céus sois firmadas;
- e louvai o Senhor Deus,
- relâmpagos e trovoadas.
Prudência:
- Laudate Dominum de terra,
- dracones et onnes abyssi,
- e tôdas adversidades
- de névoas e serra,
- ventos, nuvens et eclipsi,
- e louvai-o, tempestades.
Humildade:
- Bestiae et universa
- pecara, volucres, serpentes,
- louvai-o, tôdalas gentes,
- e tôda a cousa diversa
- que no mundo sois presentes.
Vem a Fé com a vela sem lume, e diz:
José:
- Não vos anojeis, Senhora,
- pois estais em terra alheia,
- ser o parto sem candeia,
- porque as gentes d'agora
- são de mui perversa veia.
- Todos dormem a prazer,
- sem lhes vir pela memória
- que por fôrça hão-de morrer;
- e não querem acender
- a santa vela da glória.
Humildade:
- Deviam ter piedade
- da Senhora peregrina,
- romeira da Cristandade,
- que está nesta escuridade,
- sendo Princesa divina,
- para exemplo dos senhores,
- para lição dos tiranos,
- para espelho dos mundanos,
- para lei aos pecadores,
- e memória dos enganos.
Fé:
- Não fica por lho pregar,
- não fica por lho dizer,
- não fica por Ibo rogar;
- mas não querem acordar
- com pressa de adormecer.
- Dêles fazem que não ouvem,
- e ôles ouvem muito bem;
- dêles fazem que não vêem,
- e dêles que não entendem
- o que vai nem o que vem.
- Sem memória nem cuidado
- dormem em cama de flôres,
- feita de prazer sonhado:
- seu fogo tão apagado
- como em choça de pastôres;
- e vossa divina vela,
- vossa eternal candeia,
- feita da cera mais bela,
- em cidade nem aldeia
- não há aí lume pra ela.
- Todo mundo está mortal,
- pôsto em tão escuro porto
- de uma cegueira geral,
- que nem fogo, nem sinal,
- nem vontade; tudo é morto.
Virgem:
- Prudência, i vós com ela,
- que nas horas há aí mudança:
- e acendei essoutra vela,
- que se chama da esperança,
- e lhes convém acendê-la.
- E dizei-lhe que o pavio
- desta vela é a salvação,
- e a cera o poderio
- que tem o livre alvedrio,
- e o lume a perfeição.
José:
- Senhora, não monta mais
- semear milho nos rios,
- que queremos por sinais
- meter coisas divinais
- nas cabeças dos bugios.
- Mandai-lhe acender candeias,
- que chamem ouro e fazenda,
- e vereis bailar baleias,
- porque irão tirar das veias
- o lume com que se acenda.
- E à gente religiosa
- manda-lhes velas bispais;
- a cera, de renda grossa;
- os pavios, de casais;
- e logo não porão grosa.
Prudência:
- Senhora, a meu parecer,
- para esta escuridade
- candeia não há mister;
- que o Senhor que há-de nascer
- é a mesma claridade:
- lumem ad revelationem gentium
- é profetizado a nós,
- e agora se há-de cumprir,
- pois para que é ir e vir
- buscar lume para vós,
- pois lume haveis de parir?
- Nem deveis de estar aflita,
- para lhe guisar manjar,
- porque é fartura infinita,
- chamado Panis vita,
- não tendes que desejar.
- E se para seu nascer
- tão pobre casa escolheu,
- não vos deveis de doer,
- porque onde êle estiver
- está a côrte do Céu.
- Se cueiros vos dão guerra,
- que os não tendes porventura,
- não faltará cobertura
- a quem os céus e a terra
- vestiu de tal formosura.
Neste passo chora o Menino, pôsto num berço; as Virtudes cantando o embalam, e o Anjo vai aos pastôres e diz cantando:
Anjo:
- "Recordai, pastôres !"
And.:
- Ou de lá, que nos quereis?
Anjo:
- "Que vos levanteis."
And.:
- Para que, ou que vai lá?
Anjo:
- "Nasceu em terra de Judá
- um Deus só, que vos salvará."
And.:
- E dou-lhe que fôssem três:
- eu não sei que nos quereis.
Anjo:
- "Que vos levanteis."
And.:
- Quero-m'eu erguer, entanto
- veremos que isto quer ser.
- Sempre me esquece o benzer
- cada vez que me levanto.
(Os Anjos cantando)
Anj.
- "Ah pastor! Ah pastor !"
And.
- Que nos quereis, escudeiros?
Anjo:
- Chama todos teus parceiros,
- vereis vosso Redentor."
And.
- Não durmais mais, Paio Vaz,
- ouvireis cantar aquilo.
Paio Vaz:
- Ora tu não vês que é grilo?
- Vai-te daí, aramá vás,
- que eu não hei mister ouvi-lo.
And.:
- Pessival, acorda já.
Pessival:
- Acorda tu a João Carrasco.
João Carrasco:
- Não creio eu em São Vasco,
- se me tu acolhes lá.
And.:
- Levanta-te, Barba Triste.
Barba Triste: Tu que hás, ou que me queres?
And.:
- Que vamos ver os prazeres,
- que eu nem tu nunca viste.
Barba Triste:
- Pardeus, vai tu se quiseres,
- salvo se na refestela
- me dessem bem de comer;
- senão, deixa-me jazer,
- que não hei-de bailar nela;
- vai tu lá embora ter.
- Acorda a Tibaldinho,
- e ao Calveiro e outros três,
- e a mim cobre-me os pés;
- então vai-te teu caminho,
- que eu hei-de dormir um mês.
Anjo:
- Pastôres, ide a Belém.
And.:
- Tibaldinho, não te digo
- que nos chama não sei quem?
Tibaldinho:
- Bem no ouço eu, porém
- que tem Deus de ver comigo?
And.:
- Isso é parvoejar:
- levantai-vos, companheiros,
- que por vales e outeiros
- não fazem nego chamar
- por pastôres e vaqueiros.
Anjo:
- Para a festa do Senhor
- poucos pastôres estais.
Paio Vaz:
- Vós bacêlo quereis pôr,
- ou fazer algum favor,
- que tanta gente ajuntais?
Anjo:
- Vós não sois oficiais
- senão de guardardes gado.
João Carrasco:
- Dizei, Senhor, sois casado?
- Ou quando embora casais?
And.
- Oh como és desentoado!
Anjo:
- Quisera que fôreis vós
- vinte ou trinta pegureiros.
Paio Vaz:
- Antes que vós deis três vôos,
- bem aqjuntaremos nós
- nesta serra cem vaqueiros.
Anjo:
- Ora trazei-os aqui,
- e esperai naquela estrada,
- que logo a Virgem sagrada
- a Hierusalém vai por i
- ao templo endereçada.
Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes, cantando, e o pastôres, bailando, se vão.
LAUS DEO