Uma personalidade fundamental

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O moço Sandálio dos Santos ficou impressionado quando ouviu o ronco de um Ford Bigode bastante maltratado no pátio da casa comercial de Pouso Alegre, no interior do Município de Guarapuava, a cuja proprietária, uma viúva, auxiliava no inventário objetivando a cobrança de uma dívida ao engenheiro Francisco Natel de Camargo, para quem Santos trabalhava.

O carro, conduzido por um homem de estatura mediana e uma personalidade magnética, não era, na verdade, o que mais impressionava à medida que o veículo cessava sua marcha, perto de uma dezena de cavalos e burros o cercavam, tocados por vários homens.

Tratava-se de José Silvério de Oliveira, o Nhô Jeca, no momento em que chegava a Pouso Alegre com seu séquito de parentes e trabalhado res (“camaradas”, como se dizia), para adquirir a casa comercial que a viúva colocara à venda.

“Em 1928, numa certa ocasião eu me encontrava num lugar chamado Pouso Alegre, (...) e umas horas tantas chegou na mesma casa e viajando num fordeco um senhor que cheguei a saber na ocasião se tratava de Nhô Jeca Silvério. Conhecia outros irmãos desse senhor Nhô Jeca. Vinha ele com o intuito de arrendar a propriedade da viúva, negócio que mais tarde se realizou. Nhô Jeca vinha de Porto Santa Maria, no Iguaçu, isto dos lados de Candói. Logo ele e eu fizemos amizade. O mesmo se ocupava de safra, criações e engorda de porcos e comércio de balcão. Nessa andança fazia acompanhar-se por um grupo de trabalhadores que conduziam tudo o que tinham” (Sandálio dos Santos, Memórias).

Aquele encontro entre Sandálio dos Santos e José Silvério de Oliveira teria uma extraordinária importância para o futuro nascimento do povoado de Encruzilhada, cerca de dois anos depois, porque a amizade que surgiu entre os dois homens e a observação por Silvério da capacidade intelectual de Sandálio levaram o patriarca a reiteradas vezes convidá-lo a se estabelecer no vilarejo de Encruzilhada.

Sandálio, porém, satisfeito com o trabalho a serviço do engenheiro Francisco Natel de Camargo, relutava.

Quando, entretanto, sobreveio a campanha da Aliança Liberal que pretendia levar Getúlio Vargas à Presidência da República, Nhô Jeca liderava o movimento em Pouso Alegre, onde efetivamente comprara a casa comercial pretendida, levando Sandálio dos Santos a abraçar a mesma causa em Colônia Mallet, futura Laranjeiras do Sul, onde residia.

Trajetória movimentada

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Sandálio dos Santos nasceu em Quaraí, no Rio Grande do Sul, em 12 de outubro de 1902, filho de Sandálio dos Santos Harra e Xista Lima.

Desenvolveu os primeiros estudos em escolas uruguaias e viveu parte de sua infância naqueles limites imprecisos de fronteira existentes no princípio do século. Quando seu pai morreu, entre 1915 e l917 (as memórias de Sandálio Santos não precisam a data correta), o destino de Sandálio dos Santos foi traçado pela família: recolheria seus pertences e arranjaria dinheiro para se estabelecer em Montevidéu, prosseguindo os estudos.

A Providência reservaria outros caminhos ao menino. Como grande parte de seus contemporâneos, Sandálio se extasiava com as narrativas fantasiosas de gaúchos e viajantes que apareciam na fronteira com seus belos cavalos, riso aberto e com a prosperidade desenhada no rosto, contando maravilhas do Alto Paraná, onde era possível enriquecer aproveitando a maré da erva-mate, atividade explorada por companhias argentinas e inglesas em toda a área.

O menino, assim, decidiu subir o rio Paraná e tentar a fortuna. Na Argentina, embarcou rumo a Porto Mendes. Em uma das escalas, porém, quando passeava no porto, foi detido pela polícia argentina e tomado por um menino paraguaio em razão de seu linguajar fronteiriço. Teve seus bens seqüestrados ­– a mala com as roupas e o dinheiro – e remetido preso a Porto Mendes, de onde, supunha-se, havia fugido.

As fugas de empregados – na verdade, escravos – da companhia obragera do argentino Júlio T. Allica mostravam-se freqüentes, uma vez que os jovens guaranis eram aliciados por grupos argentinos que lhes prometiam grandes vantagens.

Nos campos de coleta do mate espalhados pelo Oeste do Paraná, entretanto, a realidade era bem diferente. Os paraguaios aliciados logo eram submetidos a trabalhos forçados, sob a vigilância de feitores armados.

Muitos empregados, tomados de revolta, escapavam à vigilância dos feitores e se internavam pela mata, onde eram caçados pelas comissiones, grupos de soldados do exército particular de Allica encarregados de recuperar os foragidos.

Em Porto Mendes, onde foi entregue aos feitores argentinos, Sandálio dos Santos conseguiu fazer valer sua cidadania brasileira, sendo por isto mesmo entregue em Foz do Iguaçu às autoridades locais. Perambulando pela Colônia Militar do Iguaçu em pleno final de 1911, despojado de roupas e dinheiro, Sandálio estava desesperado.

Foi quando tomou a decisão de penetrar mata adentro, seguindo a trilha pioneira, já estrada aberta pela missão militar de José Joaquim Firmino. Fugiu ao ataque das feras que povoavam a mata e conseguiu escapar milagrosamente das patrulhas realizadas pelas comissiones, que, em caso de resistência, poderiam até disparar suas armas.

Trabalho pesado para um menino

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Na jornada, inúmeras vezes parou à porta de choupanas de colonos criadores de suínos e plantadores de milho, onde recebia alimentos e pouso, mas não o trabalho que pretendia: os colonos viviam em paz com os argentinos, aos quais serviam carne e cereal, hesitando em recolher como empregado um jovem “paraguaio”, que o portunhol do menino Sandálio parecia denunciar.

Sandálio logrou, desta forma, alcançar Catanduvas, onde terminava a Estrada Estratégica Federal. Lá, narrou seu drama ao proprietário de uma bodega, que se condoeu devido à situação do menino, em trapos e exausto, dando-lhe alimento, descanso e muitos conselhos. O principal deles, procurar emprego numa das turmas de trabalhadores que construíam a Estrada Federal.

Não seria simples obter o emprego. Para muitos, o menino Sandálio era um paraguaio. Não havia como provar o contrário. A intercessão de um colono que simpatizou com o jovem Sandálio junto ao capataz de uma turma de trabalhadores na construção da estrada, empreitada pelo engenheiro Francisco Natel de Camargo, acabou resolvendo o problema: o menino foi aceito, abaixo das dúvidas dos trabalhadores mais velhos de que daria conta do serviço.

Tratava-se de um trabalho pesado, que um menino, embora robusto e decidido, dificilmente poderia fazer. Com efeito, Sandálio adoeceu. Por interferência do feitor Alípio de Souza Leal conseguiu, após sua recuperação, o cargo de cozinheiro da turma.

Logo, porém, o engenheiro Francisco Natel de Camargo percebeu que o garoto possuía uma inteligência viva e certa cultura, destinando-lhe oficio mais elevado. Sandálio dos Santos passou então a fazer a contabilidade dos negócios de Natel e em breve passaria a secretariar estas atividades, tornando-se um especialista na indústria ervateira.

Não quis ficar rico

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Poderia ficar muito rico nessa atividade. Afinal foi o mate que povoou os sonhos do menino em Quaraí, na fronteira uruguaia. Mas a fidelidade que devotava a Camargo e a consciência do dever o impediam de lançar-se por sua própria conta ao trabalho de empresário.

A história tem seus próprios desígnios. Foi um alvoroço, em março de 1930, quando Júlio Prestes derrotou Vargas. Em Pouso Alegre, os inimigos de Nhô Jeca articulavam represálias, levando o patriarca a arrematar o negócio comercial e a levar os parentes e seu grupo de trabalhadores até um distante acampamento de trilhas ervateiras chamado Encruzilhada dos Gomes, onde arrendara terras outrora pertencentes a Francisco Natel de Camargo e à Companhia Braviaco, então sob a posse do colono catarinense Antônio José Elias, o Antônio Diogo, estabelecido no local hoje conhecido como Cascavel Velho.

Com a instalação de Getúlio no poder, Nhô Jeca assegurou a posse das terras arrendadas, tendo em vista a ligação de seu antigo proprietário com o governo deposto. Silvério via crescer em si o sonho de fazer da promissora Encruzilhada uma cidade –o que lhe interessava, pois negociava com os militares, os colonos e os paraguaios empregados das companhias ervateiras.

Este projeto de Nhô Jeca, se contava com o apoio integral de Othon Mäder, influente personagem do novo governo e homem diretamente ligado ao interventor Manuel Ribas, era motivo de riso para os cidadãos de Guarapuava, Colônia Mallet e até mesmo Catanduvas.

A reação do jovem Sandálio dos Santos à derrota foi impetuosa. Reminiscências de seu pai, um gaúcho vigoroso que combatera na Revolução Constitucionalista de 1894, levaram-no a reunir um grupo de moços, que arranjaram armas e cavalos, apressando-se a procurar a capital paulista. Quando lá chegaram a revolução já havia deposto a República Velha e o grupo de inflamados guarapuavanos não chegou a combater.

Depois da revolução de 1930 permaneceu pouco tempo em Colônia Mallet (Laranjeiras do Sul), passando a residir em Cascavel, cidade da qual foi o mentor intelectual dando forma a um sonho que Tio Jeca jamais poderia realizar, mesmo com seu agudo espírito de desbravador e comerciante, sem o apoio da grande inteligência do amigo.

Casou-se com dona Josefa Fogaça dos Santos, natural de Laranjeiras do Sul (nascida a 10 de fevereiro de 1941) e dessa união nasceram 11 filhos, todos naturais de Cascavel. Santos morreu em 21 de agosto de 1964.

Cascavel, acertadamente, homenageia a memória desse grande homem com a denominação de sua Biblioteca Pública Municipal. Homenagem justa a quem amava os livros e exerceu conscientemente a missão de ensinar

.... (Fonte: Alceu A. Sperança, jornal O Paraná, seção dominical Máquina do Tempo)