De acordo com o que deve estar estabelecido no Manual do Perfeito Engrossador , jamais perdi de vista as pessoas poderosas influentes cujo conhecimento ia travando no curso da vida. Se as encontrava na rua, procurava todos os meios para que elas me vissem e lhes prestava a homenagem do meu cumprimento humilde; se faziam anos ou morria-lhes algum parente, mandava-lhes cartões; se faziam rezar missas na intenção da alma de defunto da família, lá estava eu na igreja, inteiramente de preto e cheio de dor; e, se o conhecimento era mais estreito, não deixava, pelo menos, de fazer-lhes uma visita por semana. Esse ritual de salamaleques foi observado por mim com cega obediência de uma imposição da natureza.
Tendo assim me resolvido a proceder, de quando em quando visitava o poderoso Senador Sofônias, no seu palacete, maravilhosamente situado em um dos mais pitorescos arrabaldes da cidade.
Vivo há muitos anos no Brasil e tenho visto nele coisas bem misteriosas e surpreendentes, uma delas é o prestígio do Senador Sofônias; Nunca lhe encontrei qualidade superior, nem de inteligência, nem de sentimento, nem de caráter. Privei com ele e só lhe notei uma elementar astúcia e uma ferocidade descuidada de papua.
Na sua vida não havia nada de brilhante nem de grande. Soube que se fizera notável por ter armado uma pequena força e se batido à frente dela contra os revolucionários. Fora um condotierre, mas um condotierre sul-americano a quem a incultura da terra não podia dar os toques de beleza de um Colleone, de um Francisco Storza, ou mesmo de um Wallestein. A bravura e a cupidez não alternavam nele com o gosto das altas coisas e gestos de homem superior. Era um Araribóia com a paixão do lucro e das posições, um Araribóia do nosso tempo.
Penso que foi esse halo de bravura e ferocidade que lhe deu o grau de ascendência que tinha sobre todos; e ele, dentro de uma grande cidade civilizada, o mantinha astutamente.
Procurava divertimentos ferozes, corridas de touros, brigas de galos; ia às matanças de Santa Cruz e, segundo me disseram, chegou a carnear uma rês num piquenique diante das damas em faniquitos e dos cavalheiros amedrontados. A sua casa tinha armas por todos os cantos, revólveres, pistolas, carabinas, lanças, alfanjes, facões, sabres. Lembrava muito Tartarin, mas havia também nele um pouco de Artigas e outros caudilhos sul americanos.
Todo o país obedecia-lhe e eu me resolvi a ter também uma grande admiração por esse manipanso brasileiro.
Depois que fui nomeado Diretor da pecuária Nacional, nunca deixei de visitá-lo. Naquela semana, fui recebido no seu gabinete de trabalho. Era a primeira vez que entrava naquele santuário, donde o poderoso senador Sofônias Antônio Macedo da Costa ditava ordens ao Brasil todo.
Havia uma mesa rica, cheia de gavetas, com incrustações de marfim e sobre ela, além de objetos próprios para escrever, um galo de bronze, um touro no ato de dar a marrada, também de bronze, e os pesos para papel eram atributos de cavalariça e corridas de cavalos; ferraduras, chicotes, "bonets" de jóquei, etc.
Olhei o armário envidraçado meio cheio de livros. A obra mais importante que lá havia era a História dos Girondinos, de Lamartine, uma tradução portuguesa da casa de David Corrazzi. Além destas, vi O Galo, O Cavalo, O Boi, monografias de baixo valor e preço baixo; muitos relatórios e alguns trabalhos sobre o Direito Público Brasileiro. Não havia trinta volumes na biblioteca daquele homem poderoso que dirigia os destinos de um povo. Não vi nelas senão livros em português.
Encontrei-o concentrado, sentado a uma "voltaire", fumando um cigarro de palha, que parecia sempre apagado, mas que, a menor aspiração, se acendia logo.
— Entra, menino — disse-me com aquele seu falar especial.
Após os cumprimentos e sentar-me, encolhi-me em respeitosa reserva, temendo perturbar a marcha dos pensamentos daquele guia de povos. Certamente, ele imaginava coisas poderosíssimas para a grandeza do Brasil; certamente, pensava em algum problema nacional, atinente à agricultura, à indústria, ou mesmo às relações internacionais do país; certamente, naquele instante, pesavam no seu pensamento as condições de felicidade de toda uma população, e eu me calei para que as minhas parvas palavras não fossem de qualquer forma estragar a maravilhosa solução que ele ia encontrar. Fiquei assim alguns minutos, olhando os dois quadros que havia na sala. Eram duas oleogravuras baratas em molduras caras, representando o "Nascente" e o "Poente" no alto mar.
O Senador tirou uma longa fumaça do seu teimoso cigarro de palha e a sua fisionomia dura perdeu o ar de concentração. Disse-me então:
— Ah! Menino! Esta política!
Repetiu depois de algum tempo, com uma lamentável expressão de desânimo, senão de desgosto, abanando a cabeça.
— Esta política! Esta política!
Não nego que tivesse no momento uma certa admiração pelos homens de Estado. Apesar das minhas secretas idéias anarquistas, com a visão que me veio das suas responsabilidades, das suas dificuldades, da necessidade do emprego, de inteligência e imaginação que necessitavam as medidas que punham em prática, veio-me também por eles um respeito que nunca se tinha aninhado em mim. Sinceramente, disse-lhe por aí:
— O senador tem razão em estar preocupado, mas um homem dos seus recursos não pode desanimar. As questões mais difíceis se resolvem à custa de muito pensar nelas. Se não for hoje, será amanhã ou depois e o povo brasileiro não perde por esperar uns dias.
Sofônias não me respondeu logo. Levantou-se da cadeira e respirou com força como se de há muito a preocupação não lhe deixasse respirar. Era alto e fino de corpo, mas sem flexibilidade, "souplesse", que lhe desse uma elegância natural . Debaixo daquelas roupas muito justas, via-se sempre o homem do campo mal habituado àquelas roupagens e cioso de se mostrar elegante e majestoso. Foi até a uma janela, atirou a ponta do cigarro fora e respondeu-me:
— Ah! Bogoloff! Se fosse só o povo, não me preocupava tanto. Ele está habituado a esperar; mas se trata do Chiquinho e as eleições estão na porta.
Calou-se um pouco e eu não encontrei nada que lhe dizer. Após instantes, continuou, com voz lastimosa:
— Pobre Chiquinho! Tão amigo, tão dedicado, tão leal! Quer ser deputado e eu lhe prometi que o faria; mas não sei por onde! Pelo meu Estado não é possível, o Chico diz que a vaga que vai haver é para o Xisto. O Chico é muito caprichoso e eu não gosto de contrariá-lo. Já falei ao Machado, mas mostrou-me a impossibilidade de servir-me. A vaga do Castrioto, eleito governador, já tinha sido prometida ao Nunes. O Nogueira disse-me que ia ver... Qual, menino! Esta política é uma burla. Sirvo todos e, quando quero que me sirvam, não me atendem.
Eu já estava há muito tempo sem dizer nada e não é conveniente calarmo-nos diante dos poderosos. O silêncio é sempre interpretado mal. Conhecia muito pouco o Chiquinho, ou, antes: o Dr. Francisco Cotiassu, bacharel em Direito, com um emprego qualquer, e mais nada. Assim mesmo e sabendo o motivo da pressa em fazê-lo deputado, adiantei:
— Talvez ele pudesse esperar...
O senador respondeu quase irritado:
— Esperar! Como? Pois se vai casar dentro de quatro meses, como pode esperar? A fortuna dele é insignificante e o emprego que tem rende a ninharia de novecentos mil réis. Preciso fazê-lo deputado quanto antes... Veremos
Estivemos falando um pouco e saímos juntos. Vim até o seu carro e, por toda a parte por onde passávamos, todos olhavam o poderoso Senador Sofônias Antônio Macedo da Costa, o homem encarregado pela soberania da nação de lhe fazer a felicidade e respeitar sua vontade e conquistas liberais.
A arte de governar é de fato uma coisa dificílima e, como eu estava em posição propícia, resolvi estudá-la mais de perto, examinando os seus órgãos e analisando as suas funções.
Desde o dia em que encontrei o Senador Sofônias tão intensamente concentrado no problema de fazer o Chiquinho deputado, tomei o alvitre de procurar ver como funcionava o mecanismo político do Brasil. Ele me pareceu, por aquela espantosa manifestação do Senador, tão maravilhoso e tão sábio, que não esperei mais tempo e pus-me à obra. Pedi uma licença e tracei meu plano. A minha idéia era vê-lo funcionar nos Estados e, depois então, na Capital. A época era maravilhosa, porque se aproximavam as eleições federais para deputado e o terço do Senado e, em alguns Estados, ia ter lugar as eleições de governadores. Como não tinha predileção por este ou aquele, tirei a sorte. Pus dentro da copa do chapéu vinte pedaços de papel com os nomes deles muito bem enrolados e mandei que o meu criado tirasse um dos tais pedaços. Caiu por sorte o Estado dos Caranguejos, para onde parti em breve tempo.
Antes de lhes contar as minhas aventuras pelos Estados, convém que lhes diga o que fiz como Diretor da Pecuária Nacional.
Logo que tomei posse tive uma conferência com o Ministro, no qual lhe mostrei a necessidade de darmos começo às experiências de meu processo.
— Não há dúvida, Doutor, organize o seu plano e exponha o que necessita, que aqui estou para fornecer-lhe os meios. O Doutor compreende que tenho o máximo empenho em levar avante esse empreendimento, não só porque é de um valor científico extraordinário, como também oferece aspectos práticos de alcance transcendente. Sou pela prática, pela atividade útil. Hoje, por exemplo, tenho que assinar 2069 decretos e levo ao Presidente 400 regulamentos, ente os quais um sobre a postura das galinhas que lhe vai agradar muito. Não se dedica à avicultura, Doutor?
— Não; mas os meus processos são gerais, destinam-se a toda espécie da criação de animais. Havemos de experimentá-los, se V. Exa. me fornecer os meios necessários.
— Não há dúvida. Faça o orçamento.
Não me demorei muito em organizá-lo com todo o capricho. Nele, além de muitas coisas, exigia dez auxiliares hábeis, práticos e sabidos na bioquímica, os quais deviam ser contratados na Europa; exigia uma fazenda à minha disposição; pedia um numeroso pessoal subalterno e uma grande verba para material. O orçamento ia a quase oitocentos contos anuais. Apresentei-o ao Ministro que não o examinou logo:
— Não lhe posso dar resposta já, meu caro Doutor. Estou muito atrapalhado... Nesse país está tudo por prover e eu trabalho dia e noite. Nunca teve ministros e um que vem com disposições de trabalho, esgota-se em pouco tempo... Imagine, que não pude tomar hoje o meu banho de frio, tanto estou atrasado!... Um dia em que não o faço, volto a ser o brasileiro mole que os senhores conhecem... Assim mesmo já assinei 382 decretos e organizei 49 regulamentos... Ah! Doutor! Esse Brasil precisa de frio, muito frio!
Despedi — me de homem tão ativo e voltou ao meu gabinete. Durante um mês o Ministro não me deu resposta e o meu trabalho, na Direção da Pecuária Nacional limitava-se tão somente assinar os registros de estábulos e vacarias da cidade.
Houve um dia em que o ministro me chamou e falou-me a respeito da minha Pecuária intensiva:
— Li o seu orçamento e a sua exposição. Muito bons, ambos! O orçamento está um pouco salgado. Por que o senhor quer um laboratório de química tão completo?
— V. Exa. compreende — disse-lhe eu — que os nossos processos se baseiam na bioquímica; daí essa necessidade.
— Não há dúvida, concordo; mas o Doutor podia bem dispensar a fazenda.
— E os meus bois onde viveriam? Não acha V. Exa. necessário pastagens?
— O seu método não se baseia na alimentação artificial, Doutor?
— Baseia-se na superalimentação química.
— Pois então? O seu gado podia até ser criado em uma sala.
— Isto podia dar-se se fosse um ou dois, mas muitos não é possível.
— Não há dúvidas, Doutor! O senhor sabe que o governo está em economias e não pode atendê-lo. Em todo o caso o Estado tem uma casa disponível com um razoável quintal, à rua Conde de Bonfim, e, em pequena escala, o senhor podia experimentar. Vá ver a casa.
Inútil é dizer que eu não tinha nenhum interesse em por em prática as minhas fantásticas idéias. Fui ver a casa e fiz um relatório completamente desfavorável. Nem outro podia ser. A casa era um pardieiro arruinado e o quintal tinha para pastagem algumas touceiras desse capim que se chama "pés de galinhas". O Ministro aconselhou-me por essa ocasião:
— Doutor, não se aborreça. Ninguém mais do que eu conhece as vantagens do seu processo, a barateza que ia trazer para um gênero de primeira necessidade, mas o governo está em apuros. Aconselho que se ocupe do expediente ordinário e espere um pouco.
Levei quase um ano a assinar licenças e registros das vacarias da cidade e tanto isso me aborreceu que, quando vi a dolorosa preocupação política do Senador Sofônias, resolvi atirar-me ao exame da política do Brasil, colhendo dados nos Estados.
Não julguem, pois, que foi um estado dalma de "pícaro" e vagabundo que me lançou nessa peregrinação. Não sou absolutamente um Guzman dAlfarrache, um Lazarilho de Tormes, nem um Gil Blas ; tenho ânsia de certeza e de verdade, e quis, provocado pelo espetáculo pungente que o alto Senador Macedo da Costa me deu, examinar bem o que era política, quais as suas vantagens, quais as suas belezas e qual a sua importância.
Já lhes disse como escolhi o Estado dos Caranguejos para começar o meu exame. Parti para ele, a bordo de um vapor do Lóide, em fins do ano. O paquete estava com a partida marcada para 26 de dezembro; mas, como o governo queria número na Câmara e temia que muitos deputados fugissem nele para os Estados, adiou-a para o dia 30.
Embarquei às 10 horas da manhã, pois os anúncios diziam que o navio levantava ferros ao meio dia. Havia congressistas passageiros e, tendo as sessões da Câmara se prolongado até tarde, o vapor só deixou as amarras às nove horas da noite.
Foi, portanto, vendo a cidade iluminada, a se mirar nas águas negras da baia, que atravessei a barra em demanda ao Estado dos Caranguejos.
Navegávamos num mar calmo sob um céu negro em que as estrela faiscavam como diamantes nas trevas.
A linha da costa era de longe em longe marcada por fracas luzernas à altura das águas. As águas estavam negras e o mar tinha de noite menos atração e aparentava mais segurança. A luz manifestava toda a sua fascinação e esclarece os perigos e as suas perfídias.
De quando em quando, o jorro luminoso do farol da Rasa cobria um instante o navio. Não havia quase fosforescência e, na coberta. só ouvia o ritmo das máquinas e o escachoar das hélices.
Havia poucos passageiros na tolda e, entre eles, não se estabelecera conversa. Todos se tinham mergulhado no insondável mistério daquela noite de trevas sobre o oceano imenso. De repente, um grito quebrou aquele augusto silêncio:
— Meu binóculo! Ó comandante! Pare! Pare!
Todos nós acudimos para ver o que era e topamos com um senhor envolto em roupas de dormir que gesticulava possesso e gritava furiosamente:
— Ó comandante! Meu binóculo! Pare! Pare!
A todas as nossas perguntas de explicação, ele se limitava a responder:
— Onde está o comandante?
Vindo o capitão, entre o tom de pedido e o de ordem, ele disse:
— "Seu" comandante, é preciso voltarmos ao Rio. Esqueci-me do meu binóculo.
O comandante fez-lhe ver que isso era impossível e tal coisa iria causar graves prejuízos à companhia e aos passageiros. O homem enfureceu-se e gritou:
— Sabe com quem está falando?
O comandante disse que não sabia, mas que não havia necessidade de sabê-lo, pois se tratava de medida de suas atribuições, sendo ali a sua autoridade em tudo soberana.
— Pois bem — disse o homem — tenho imunidades; sou o senador Carrapatoso.
O comandante retorquiu no mesmo tom de voz:
— Vossa Excelência há de perdoar-me, Sr. Senador, mas não posso voltar.
Nisso apareceu um sujeito alto e espadaúdo, acaboclado, com um bambolear de corpo expressivo e foi dizendo:
— Volte essa joça. Vá! O senador está mandando.
O comandante ainda recalcitrou, tentando convencer o homem que havia muitos binóculos a bordo, mas o senador intimou:
— Quero o meu binóculo. Não quero outro. Ou o senho volta e eu voto a autorização para o empréstimo da companhia, ou não volta e eu e a minha bancada faremos uma guerra tremenda ao projeto.
À vista disso, o comandante que sabia das dificuldades da empresa, tanto assim que não recebia os seus vencimentos havia três meses, virou de bordo e voltamos para o Rio de Janeiro.
Só levantamos de novo o ferro, na madrugada do dia seguinte e penosamente o navio levou-me a Tatui, capital do Estado dos Caranguejos.
Como os senhores sabem, esse Estado não é dos maiores do Brasil, nem mesmo dos médios, mas não é o menor deles.. Tem uma população de pouco mais de meio milhão de habitantes e uma lavoura de cana de açúcar que se arrasta através de dolorosas crises. A não ser a indústria do fabrico do açúcar, quase sempre em crise como a lavoura em que se baseia, não havia no Estado outra indústria de vulto.
A sua capital, a cidade de Tatui, tem uns trinta mil habitantes. Era uma desgraciosa cidade de casas baixas, quase sem calçamento, sem esgotos e com pouca iluminação elétrica.
Nos primeiros dias que lá passei espantou-me a quantidade de mendigos e pobres, além da grande quantidade de gente que exerce ofícios miseráveis, como baleiros, carregadores, vendedores de água, (não havia água encanada) e outros.
Possuía uma linha de bondes preguiçosos, servida por um único veículo, que só parte dos pontos quando estava pela metade de passageiros.
Quando nos afastávamos da zona urbana, o espetáculo era mais miserável ainda. Só há palhoças de sapé, cercadas de pobres roças desanimadas; pelos caminhos encontravam-se mulheres públicas meio rotas, carregando as esteiras em que realizavam os seus tristes amores.
Construía-se um teatro majestoso, num estilo compósito e abracadabrante.
Não dava um passo sem que os moleques me fizessem oferecimento de levar-me a lugares equívocos.
Esse Estado já estava "salvo". Sabem os senhores o que isso quer dizer. Chama-se, "salvar um Estado", entregar a sua governança a um militar. Para isso contribuem duas coisas: a fome de grandes e pequenas posições dos civis e a vaidade demasiada de alguns militares. O Dr. Fulano e o chefe político Fuão não tinham sido até ali satisfeitos nas suas pretensões pelo governador. Que fazer? Dizem-se em oposição, arranjam meia dúzia de asseclas, publicam um jornaleco e apresentam candidatos à sucessão governamental o general Z. ou o coronel B.
O general Z. ou o coronel B., como coronéis ou generais que são, muito convencidos das suas virtudes excepcionais, aceitam logo a coisa e tecem os pauzinhos de forma a encher o Estado com batalhões, cujos oficiais lhes são dedicados inteiramente.
Ao chegar a ocasião das eleições, oprimem os adversários, enchem-se de votos falsos e verdadeiros e, depois, obrigam os respectivos Congressos a reconhecê-los.
Eles mesmos se intitulam Césares e Marcos Aurélios, jactam-se de puros, sapientes e imaculados.
Em geral são tipos inteiramente desconhecidos, não só do país como dos Estados que vão "salvar", mas não trepidam em tomar os mais altissonantes pseudônimos e em dizer-se escolhidos do povo.
Um é César porque é um general de talentos nunca postos à prova e um péssimo escritor; o outro é Marco Aurélio porque nunca furtou dez tostões.
Este deixa de lado aquela sede de perfeição do imperador romano, a sua profunda piedade e a sua ânsia de bondade e fraternidade; aquele, abandona os talentos do grande Júlio e cobre a sua modéstia notória com o nome do autor dos Comentários .
Não dizem quais sejam as suas idéias de governo, o que pretendem fazer, quais as medidas que vão empregar. Mandam os batalhões, chamam os adversários de gatunos, proclamam-se honestos e fazem-se presidentes, governadores, custe o que custar.
De posse do governo, esbordoam, empastelam jornais, degolam, matam, procedem, enfim, mais como Domiciano ou Cômodo do que como Marco Aurélio ou mesmo Júlio César.
Esta palhaçada já tinha tido lugar no Estado dos Caranguejos e estava à sua frente o General Contreiras.
Foi engraçado como apresentaram a candidatura desse general, então coronel. Era um oficial obscuro, que tinha subido posto a posto pelos processos comuns. Um belo dia, o repórter de um jornal levantou a sua candidatura à presidência, porque era filho do venerando Frutuoso. Ninguém mais se lembrava desse herói, que morrera havia dez anos, e, nas ruas, não era raro ouvir-se a seguinte conversa:
— Quem é esse Contreiras?
— É filho do venerando Frutuoso.
— Quem foi esse Frutuoso?
— Não me lembro bem
Tudo marchava nessa conformidade e era com tão fortes títulos que se conflagravam os Estados, causando mortes e violências de toda ordem sobre as propriedades e as pessoas.
O Estado de Caranguejos já estava portanto "salvo", pois tinha à frente do seu governo o general Contreiras
Contreiras, logo que tomou conta do governo, mandou empastelar o jornal da oposição e, em seguida, fez um inquérito em que o seu delegado procurava demonstrar que haviam sido os proprietários do jornal os autores do empastelamento.
Para isso, além do seu cinismo em afirmar, o tal delegado empregou a coação e a ameaça sobre os depoentes, pobres operários que eram obrigados a dizer tudo o que convinha à autoridade.
Não contente com isso, dividiu o Estado em vários distritos agrícolas, à frente dos quais pôs um inspetor e meia dúzia de auxiliares; todos capangas seus, que se encarregavam de esbordoar aqueles que demonstrassem de qualquer modo não concordarem com "o salvador".
As reclamações choviam e os delegados policiais faziam inquéritos onde diziam que não havia nos casos coisa alguma de política, mas simples rixas por questões de mulheres ou de família.
Reparei que havia nesses ditadores todos um terror extremo diante da lei que violavam. Não tinham coragem de fazê-lo francamente, claramente, ousadamente; mascaravam as suas violências, os seus assassinatos, com subterfúgios legais e outros, falando sempre em liberdade, em ordem, em paz e prosperidade.
Tive vontade de visitar o governador e pedir-lhe uma audiência, mesmo porque, se não o fizesse, corria perigo a minha segurança.
Já começavam a desconfiar "daquele estrangeiro". isto é, de mim, mas o estrangeiro não significava estranho ao país. mas ao Estado.
Vi-me muitas vezes seguido por tipos suspeitos, e à vista disso, declarei a minha qualidade de oficial e pedi uma audiência ao governador. Ele ma deu sem demora e pude conversar com ele.
Não se imagina homem mais comum, de feições e inteligência. Não lhe pode sacar nem uma idéia sobre a administração e o governo. Ele só me dizia:
— Este Estado tem sido muito roubado. Agora a coisa vai entrar nos eixos. Sou honesto e não consinto que ninguém roube à minha sombra.
Quando lhe falei sobre a miséria da população, na lamentável impressão que isso fazia a quem vinha de fora, ele me disse:
— É... É... São uns madraços. Estou tratando de fundar uma colônia correcional.
Aquele homem não via que era o próprio governo quem criava aquela situação; que era, além de outras coisas, a quantidade formidável de impostos cobrados pelos governos municipal, estadual e federal?
Perguntou-me então pela política central, se o Sofônias era muito poderoso, se faziam muita oposição a ele, governador. Disse-lhe que os jornais do Rio atacavam-no muito e ele observou:
— Sei... Sei.... A culpa é do Simplício (o presidente) que não os faz calar...
Tomou por aí uma expressão feroz que trouxe à lembrança do russo Tamerlão e Gengis Khan.
Despedi-me governador, e, no dia seguinte, para completar as minhas notas, fui assistir a uma sessão da Câmara dos Representantes.
A Constituição do Estado, moldada na Federal, estabelecia a independência e a harmonia dos poderes estaduais, que eram o judiciário, o executivo e o legislativo.
O Estado não tinha Senado e o órgão do seu poder legislativo era unicamente a Câmara dos Representantes, que funcionava numa ala do palácio do governador.
A sala não era apropriada ao seu destino, mas era ampla e bem iluminada; e, como já fosse conhecida a minha qualidade, deram-me uma espécie de camarote, ao nível do recinto, a que chamavam de tribuna.
Cheguei cedo e pode ver a entrada dos deputados. Havia alguns jovens bacharéis e tenentes, muito pimpantes nos seus trajes à última moda, e havia também aqueles curiosos tipos de coronéis de roça, que vinham às sessões em terno de brim, com botas de montar e a açoiteira de couro cru, pendendo na mão esquerda, presa por uma corrente ao respectivo pulso.
Eles chegavam e se espalhavam pelas bancadas, conversando e fumando. Junto a mim, havia dois, uma dos quais lia, à meia voz, um artigo de jornal para o outro ouvir.
Não passavam de vinte e tantos e eu perguntei a alguém se era aquele o número exato de representantes. Foi-me dito que não, que eram quarenta e cinco, mas que só pouco mais da metade freqüentavam as sessões. Os outros, acrescentou o meu informante, ficavam nas suas fazendas e mandam unicamente receber o subsídio por seus procuradores bastantes.
A sessão custou a ter começo. Afinal o presidente e secretários tomaram seus lugares e a chamada foi feita.
Notei que, quase em frente a mim e ao lado da mesa, um pouco distante, havia uma ampla cadeira de balanço, cujo destino ali era difícil atinar.
Lida a ordem do dia, foi anunciado o expediente, e um deputado gritou do fundo da sala:
— Peço a palavra.
No mesmo instante, a cadeira de balanço foi ocupada. Imaginem por quem? Pelo presidente do Estado, o General Contreiras. Estava muito simplesmente vestido, com uniforme de cor cáqui, sem colarinho, em chinelas de marroquim e até o dólmã estava desabotoado. Acudindo o pedido do deputado, o presidente da Câmara falou:
— Tem a palavra o deputado Salvador da Costa.
O deputado não abandonou a bancada e começou com voz cantante:
— Senhor presidente — A cidade de Cubangoisolada do resto do atal, são absolutamente desanimadoras. A inspetoria de obras no seu habitual relaxamento...
Por aí, o orador foi interrompido por um vibrante grito do governador:
— Senta-te, Salvador! Fala agora o João.
O deputado Salvador, abandonando o fio do seu discurso, desculpou-se:
— Há de perdoar-me, Senhor General Doutor Governador. Trato pura e simplesmente de uma questão administrativa. Não há política.
O governador não lhe deu ouvidos e continuou a gritar lá da cadeira de balanço:
— Senta-te, Salvador! Não prestas pra nada! Fala agora o João!
Salvador ainda esteve uns minutos em pé sem saber o que fazer, olhando aqui e ali; porém, um berro mais enérgico do presidente fê-lo cair sentado sobre a cadeira, como se tivesse sido derrubado por um raio.
Assisti todo o resto da sessão. Não houve mais a intervenção enérgica do general doutor presidente. Por fim, um deputado apresentou uma moção de congratulação com o coronel Firmino, chefe político em Caxoxó, por fazer anos naquele dia.
Inteirado do funcionamento dos dois poderes do Estado, tendo a respeito tão excelentes notas, quis observar em outra unidade política da Federação a marcha de sua administração. Embarquei para o Estado dos Carapicus, que fica muito ao sul do dos Caranguejos.
Pouco tinha a mais que ver, pois o que me fora dado assistir nos domínios do General Contreiras me pareceu ser o resumo da política estadual; contudo, dispus-me a ver como se passavam as coisas em outro Estado, porquanto podia tomar nota de um ou outro detalhe expressivo.
Não tinha muita esperança nisso, à vista da parecença estreita que têm as partes do Brasil entre si.
Todas as cidades se parecem, tem a mesma fisionomia, possuem casas edificadas da mesma forma e até as ruas têm os mesmo nomes e os apelidos das lojas de comércio são os mesmos.
Um país tão vasto, que se desenvolveu através de climas e regiões tão diferentes, é, entretanto, nos seus aspectos sociais, monótono e uno.
Tinha verificado isso na minha viagem para o Estado dos Caranguejos e certifiquei-me da verdade dessa verificação quando voltei.
Imaginei que a coisa também se desse nos aspectos políticos, mas não quis ficar em suposição e tratei de certificar-me da verdade, vendo os fatos que eram objeto dos meus estudos.
Cheguei a capital do Estado dos Carapicus num domingo à tarde. No logradouro de desembarque, tocava uma fanhosa banda de música e as moças do lugar, muito enfunadas nos seus vestidos domingueiros, passeavam pelo largo com uma satisfação de prisioneiras em temporária liberdade.
Vista Alegre, essa capital, é uma pequena cidade de vinte mil habitantes, muito montuosa, sem monumentos, nem mesmo as velhas igrejas de estilo jesuítico que se encontram pelo Brasil todo. O Estado dos Carapicus é dos mais pobres do Brasil; não tem uma produção característica e importante. Vive de magras culturas estritamente indígenas e possui riquezas florestais de difícil aproveitamento.
Saltei na sua capital com o nome trocado e isso havia feito após as maçadas que o meu nome estrangeiro e a minha qualidade de diretor da Pecuária me haviam dado em Tatui.
Quando lá souberam que eu tinha tão elevado cargo na administração nacional, não me deixaram fazer consultas, a respeito das moléstias de bois e cavalos.
Vi-me sempre em sérias atrapalhações para resolvê-las e, quase sempre, receitei e aconselhei drogas que mais matavam os animais que a própria moléstia.
Tendo sido tão terrível exemplo do quanto custa ser-se diretor da Pecuária Nacional, troquei de nome, adotando um bem português, e fiz chamar-me de Dr. Manoel da Silva.
Eu falava já muito bem português, sem o mais leve acento estrangeiro, de forma a poder iludir perfeitamente os nacionais sob o meu disfarce de Silva. Abandonado os meus nomes russos, conservei, porém, o Doutor, título indispensável para se ter no Brasil a consideração que os hoteleiros, os copeiros, os catraieiros etc., dispensam a qualquer cavalheiro em todas as partes do mundo, com ou sem títulos.
Saltando em Vista Alegre, dirigi-me logo a um hotel, Hotel Barbosa, onde pedi um quarto. Reparei que, quando dava o meu nome português ao hoteleiro, o homem fez uma careta e olhou-me com espanto. Tomei banho, mudei de roupa e fui jantar. Logo que me pus à mesa, o meu hospedeiro veio sentar-se ao meu lado e falou-me cheio de atenções e delicadezas.
—Então, Doutor, resolveu-se a vir, não foi?
Não atinava com o motivo dessa pergunta, porquanto, por mais que me lembrasse das minhas tenções, não achava nas minhas recordações hesitação em vir ou deixar de vir ao Estado dos Carapicus; entretanto, por complacência, respondi:
— Pensei muito e resolvi-me.
O Sr. Barbosa fez-se mais blandicioso e continuou:
— Já temos aqui dois batalhões.
— É útil — disse-lhe eu — sempre traz lucros para o comércio.
— É, mas demoram pouco. Ainda se ficassem....
— Quem sabe lá? Aqui é lugar saudável e talvez o governo os deixe ficar.
— Nós estimaríamos bem , porque assim ficávamos mais garantidos, a não ser que...
Por aí, como que teve medo de adiantar-se muito, calou-se, mas em breve recomeçou:
— V. Exa. sabe que não sou político, mas há certas coisas que a gente não pode ver sem protestar. O governador parece que perdeu a cabeça e está dando por paus e pedras... Não sou político, mas há certas coisas que fazem a gente ficar indignado.
Não respondi ao hoteleiro e ele não sei como interpretou o meu mutismo. Calou-se e se foi. Dormi maravilhosamente aquela noite e bem cedo saí pela cidade.
Uma cidade, como aquela, sem fábricas de qualquer espécie, não tem, ao amanhecer, movimento de espécie algum. Encontram-se, a espaços, vendedores de pão, uma carroça ou outra e mais nada. Após o passeio, voltei a almoçar e reparei que os meus companheiros d hotel olhavam-me de uma forma indecentemente insistente. Que teria eu? Almocei à pressa e saí logo à passeio.
Não tinha a cidade muito onde ir; não possuía arrabaldes nem sítios pitorescos, mas descobri uma fábrica de cerveja, num dos seus extremos, com um botequim anexo, onde me deixei ficar por algumas horas.
Voltei ao centro, ao entardecer, e procurei o lugar de mais movimento. Procurei um café e entrei para tomar cerveja. Olhando ao derredor, verifiquei que continuavam a olhar-me da mesma forma que no hotel. Que teria eu? Levantei-me resolvido a ir-me no dia seguinte. Quem sabe se não me tomavam como espião, como político adversário da situação e não premeditavam alguma violência contra mim? A situação nos Estados do Brasil era tão confusa que tudo era possível. Levantei-me amedrontado e, cheio de temor, atravessei por entre as mesas. Atravessando-as, ouvi que partiam dos grupos nela sentados frases destacadas como estas:
— É ele.
— Não é.
— É. Tem o mesmo nome e é louro.
Não tive logo certeza que se tratasse de minha pessoa, mas em caminho do hotel, nas ruas por onde passei, continuei a ouvir:
— É ele.
— Não é.
— É. É louro.
Não imaginam o pavor que fiquei possuído e foi apressado que entrei no hotel. Que diabo queriam aqueles homens comigo? Fui ao quarto, fiz a minha "toilette" de jantar e abanquei-me à sala respectiva.
Dei começo à refeição e, ainda estava no meio dela, quando um capitão, inteiramente fardado, veio ao pé de mim e me disse:
— É com o Dr. Manoel da Silva que tenho a honra de falar?
— Um seu criado — disse-lhe eu.
— Desejava ter uma conferência reservada com o senhor.
— Para já?
— Não. Pode jantar e depois, então, falaremos.
Fiz o possível para conservar o meu sangue frio, mas não consegui comer mais nada e dei-me por satisfeito antes de acabar as iguarias do sr. Barbosa. Dirigi-me logo para o quarto e o capitão seguiu-me. Lá chegando, ele me foi dizendo á queima roupa:
— Está tudo pronto! Não há tempo a perder.
— Como? Que é?
— Não tenha medo. A força garante.
— Garante o quê?
— A sua posse.
— Que posse?
— No lugar do governador. Não é o senhor o Doutor Manoel da Silva?
Não tive outro remédio senão dizer quem era e o capitão insistiu:
— Então, prepare-se. Tenho ordem do Bonifácio. Aqui está o telegrama. Leia!
Passou-me o telegrama e eu li o seguinte: "Dê posse ao Manoel da Silva, custe o que custar. Bonifácio".
De há muito não lia jornais e não sabia que havia para o Estado de Carapicus um candidato, com o nome que eu usava, à sua governança. Esse candidato era inteiramente desconhecido no Estado e fora apresentado porque mantinha estreita amizade com esse tal Bonifácio, espécie de mordomo do Presidente da República, sobre cujo ânimo tinha esse serviçal uma dominação sem limites.
Depois de muitos disparates, consegui saber tudo isso e protestei ao capitão que não era o tal Manoel da Silva que ele pensava; o homem, porém, não acreditou e julgando-me cheio de medo, intimou-me:
— É o senhor, por força. Disseram-me que era louro; o senhor é louro, é por força ele. Temos "trabalhado" muito e ou o senhor aceita e nós o pomos no palácio, ou foge às suas responsabilidades e eu o mato.
Estava em séria colisão e tinha que escolher entre essas duas pasmosas coisas: ser governador do Estado de Carapicus ou morrer.
Levei toda a noite a pensar, a imaginar um meio de sair-me daquela atrapalhação. Quis fugir, mas certamente, desconhecendo inteiramente a cidade, seria pior, pois logo cairia nas mãos de um ou de outro partido, e o meu fim seria o mesmo.
De manhã, muito cedo, chegou-me o tal capitão que me mostrou um outro telegrama: "Emposse o homem, custe o que custar. Bonifácio."
— Então — perguntou-me ele — aceita ou não?
— Aceito.
— Fez bem, Doutor, porque senão o senhor não voltaria mais ao Rio. Prepare-se para receber uma manifestação.
Não saí do hotel naquele dia e, à tardinha, apareceu-me na rua uma charanga militar, seguida de algumas centenas de pessoas, parando na frente do estabelecimento do Sr. Barbosa.
— Viva o Dr. Manoel da Silva! Viva! — gritavam.
Estava cheio de medo, mas o hoteleiro e mais o tal capitão empurravam-me para a janela, de onde comecei a ouvir os oradores.
Dizia um, na peroração:
" Dr. Manoel da Silva, salvai-nos, libertai-nos desse monstro que nos devora, que mata os nossos filhos, que nos furta, que nos esmaga! Sede o nosso Moisés! Levai-nos à terra da Promissão, à Canaã sonhada!"
Os outros repetiam a mesma coisa e eu estava diante daquilo tudo completamente besta. Não haveria um remédio, um meio de esclarecer aqueles tolos todos de que eu não tinha tais predicados. Os oradores acabaram e vivas foram erguidos.
— Viva o Dr. Manoel da Silva! Viva o nosso salvador! Viva!
Quando acabaram, o capitão intimou-me ferozmente:
— Fale!
Não tive outro remédio senão gaguejar qualquer coisa, que foi ouvida no maior silêncio. Não saí mais do hotel e, à noite, ouvi o espocar de fuzis, tropel na rua, uma bulha de grosso motim.
No dia seguinte, soube que haviam empastelado o jornal da jornal do governo, destroçado a polícia, atacado o palácio e o governador renunciara.
O capitão não tardou a procurar-me prazenteiro:
— O patife do Bastos saiu. Agora o governo está com o Guedes que é nosso. A sua posse é depois de amanhã.
Recebia aquelas notícias cheio de terror, de medo que semelhante aventura não resultasse na minha morte. Se soubessem que eu não era o tal "salvador", certamente matavam-me.
Aquilo me parecia um mero sonho, um pesadelo ou senão um capítulo de um romance jocoso. Onde iria parar, meu Deus?
O hoteleiro continuava com as suas zombarias e, durante a véspera da posse, não tive mãos a medir para atender às visitas. Dizia-me um: fui eu quem lançou a sua candidatura; dizia-me outro: fui eu quem o defendeu nos jornais. Os próprios situacionistas me procuravam, propunham acordos, "modus vivendi". Não lhes respondia coisa com coisa e partiam fazendo uma triste idéia do seu "salvador"; entretanto continuavam a buzinar nos seus jornais que eu era um homem de raro talento, extraordinário.
Chegou o dia da posse e, quase arrastado pelo tal capitão, levaram-me ao Congresso e me dispus a acabar com a farsa. Um paquete entrava na baía despejando pelas chaminés grossas baforadas de fumaça.
Reuniram-se os congressistas e, quando eu ia prestar o compromisso, entra pela sala um sujeito pequeno e louro, que gritava:
— Não é este o Dr. Manoel da Silva; sou eu.
Os congressistas ficaram petrificados, ninguém sabia o que dizer e o tal sujeito continuou a gritar.
— Não é este, sou eu.
Na sala, logo se formaram dois partidos: um a meu favor, outro a favor do recém chegado.
Houve uma barafunda geral, gritos, palavrões, começo de discursos.
Daqui se gritou:
— É ele! É!
Dali se berrou:
— Não é! Sai usurpador!
No meio daquela barulhada, daquele berreiro, fiquei mais morto do que vivo. A bulha continuou e cada vez mais feroz. Por fim veio a calma e pude dizer:
— Deve ser esse senhor, porque eu não sou.
Houve propostas de morte, mas a maioria me protegeu e eu pude sair. E foi assim que escapei de "salvar" o Estado de Carapicus.